Música para o Espírito

domingo, 16 de agosto de 2015

IV SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS SOCIAIS DEMOCRACIA E CIÊNCIAS SOCIAIS HOJE/UFG

IV SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEMOCRACIA E CIÊNCIAS SOCIAIS HOJE
11 A 14 DE NOVEMBRO DE 2015

GRUPO DE TRABALHO - MOVIMENTOS SOCIAIS, ESTADO E DEMOCRACIA

Proponentes: Dr. Cleito Pereira dos Santos/UFG
                            Me. Lisandro Braga/UFMS

Ementa: Este GT aceita trabalhos que tenham como foco as pesquisas e debates acerca dos movimentos sociais no contexto da sociedade contemporânea; a relação entre estado e movimentos sociais; os modos de regularização social e de controle estatal; os conflitos sociais e os movimentos sociais; as discussões sobre a democracia; o estado e as relações com os diferentes movimentos sociais contemporâneos. É objetivo, também, discutir as transformações dos movimentos sociais, o papel das redes sociais e internet na articulação de novas formas de mobilizações, manifestações, protestos e conflitos sociais.
PRAZO para envio de trabalhos: 14 de setembro de 2015.
As propostas de trabalho devem ser enviadas para o e-mail: cleitops@hotmail.com

Maiores informações no site: https://sicsufg.wordpress.com/

terça-feira, 11 de agosto de 2015

ANTON PANNEKOEK E A AUTO-ORGANIZAÇÃO OPERÁRIA


Lisandro Braga

 GT: Controle operário e autogestão

Resumo: Anton Pannekoek e todo o seu desenvolvimento teórico estão intimamente ligados ao processo histórico de desenvolvimento do movimento operário europeu e da luta de classes desencadeada por ele em alguns países europeus nas primeiras décadas do século XX. Esse período é marcado pela radicalização das lutas operárias que avançavam em direção à construção do comunismo, entendido como a autogestão social. É possível perceber que Pannekoek, assim como Marx e outros marxistas autênticos, não partiram de idéias pré-concebidas para explicar o real, mas pelo contrário, visualizava no desenvolvimento das lutas operárias em seu estágio autogestionário, no qual o proletariado emancipa-se das instituições burocráticas tais como sindicatos e partidos políticos, criando organizações autogeridas como os conselhos operários, o embrião da sociedade comunista.

Nascido na Holanda em 1873, Pannekoek iniciou, ainda jovem, seus estudos em ciências naturais se especializando em astronomia. Filiou-se ao Partido Operário Social Democrático da Holanda e desde cedo se posicionou ao lado da sua ala esquerda junto à Herman Gorter e Frank van der Goes. Juntamente com Gorter fundaram um jornal que expressava suas concepções esquerdistas que passava a implementar críticas aos dirigentes de partidos oportunistas. Posteriormente rompem com esse partido e formam o Partido Social Democrata que tão logo se alinhara às diretrizes bolcheviques levou Pannekoek a romper de uma vez por todas com as instituições partidárias, rejeitando o parlamentarismo como instrumento de transformação social. Em meados de 1905/1906 Pannekoek transfere-se para a Alemanha onde atuará diretamente nas lutas sociais locais proferindo conferências, palestras, produzindo diversos artigos e ministrando cursos na escola do SPD para os melhores estudantes oriundos dos quadros dos partidos e sindicatos que se formariam para assumir a direção de tais organizações. Devido à radicalidade de sua concepção, logo Pannekoek viria a incomodar a ala reformista dos partidos e sindicatos locais, assim como a polícia prussiana que decide interromper o curso sob a alegação de que Pannekoek não era de nacionalidade alemã. Após tal proibição Pannekoek passa a garantir sua sobrevivência e a da sua família escrevendo para vários jornais socialistas alemães, tal como o Neue Zeit. Na cidade de Bremen Pannekoek organizou ações junto à classe trabalhadora com o intuito de contribuir com sua educação teórica e política, porém mais uma vez a radicalidade de seu pensamento, a defesa da greve geral como uma das principais armas do proletariado e o crescimento da sua credibilidade junto às instituições operárias locais volta a gerar conflitos com os dirigentes sindicais. Segundo Mendonça, os anos em Bremen testemunharam uma sólida e constante radicalização do pensamento de Pannekoek que passou a exercer marcada influência não apenas sobre o partido local, mas sobre parcelas expressivas da social-democracia alemã e internacional [...] Cada vez mais impressionado pela iniciativa operária – que freqüentemente com ações inesperadas ultrapassava as instâncias do partido e dos sindicatos – desde meados de 1910 ele escreveu vários artigos na Bremer Bürgerzeitung sobre as questões do método e do modelo revolucionário, nos quais sempre sustentou a necessidade do uso da greve geral. Este posicionamento deixou-o mal visto junto a muitos no interior do partido, em especial sindicalistas e defensores da concepção segundo a qual a social-democracia deveria ampliar sua influência nas instituições e na sociedade alemãs de forma ‘responsável’ (2009, p. 37). Daí para frente, a ruptura de Pannekoek com a social-democracia tornava-se inevitável. As ações autônomas e espontâneas do operariado alemão influenciaram definitivamente o pensamento de Pannekoek que passava a ver nas ações coletivas da classe o caminho para a construção da nova sociedade. Diante do inevitável conflito bélico que as disputas imperialistas coagiam as nações capitalistas européias a enfrentarem, Pannekoek assume uma postura antibelicista. O apoio da social-democracia à guerra serviu para unir os vários grupos oposicionistas. Na Alemanha os oposicionistas se aglutinam em torno de Rosa Luxemburgo e Karl Liebneckt formando a Liga Spartacus que, posteriormente, junto com os comunistas internacionalistas formariam o Partido Comunista Alemão; na Holanda os oposicionistas à guerra imperialista se aglutinam em torno de Pannekoek, Gorter, Holand-Host. Nessa mesma época eclode a Revolução Russa e ao contrário da maioria dos comunistas desse período, Pannekoek, assim como Rosa Luxemburgo, não ofereceram apoio incondicional e acrítico a esse episódio histórico, demonstrando, assim, algumas discordâncias com a forma como ocorreu esse acontecimento e não deixando se levar pela euforia que atingiram vários militantes de esquerda que possuem uma necessidade inconsciente de se agarrar a experiências e movimentos em outros países para se sentirem ‘do lado do desenvolvimento histórico’, o que demonstra a insegurança psíquica de muitos revolucionários, que assim apelam para o modelo soviético, cubano ou ‘guevarista’, ou qualquer outro (VIANA, 2007, p. 10-11). A Revolução Russa foi encarada inicialmente como uma experiência revolucionária do proletariado, por isso saudada e apoiada pelos radicais alemães e holandeses, apesar das profundas discordâncias com os leninistas. Na prisão Rosa Luxemburgo já alertava para os riscos do autoritarismo bolchevique que irá se confirmar com as práticas de Lênin ao chegar ao poder em 1917, silenciando todo o movimento operário radical que firmava suas práticas na auto-organização da produção independente das imposições do partido bolchevique. Para Lênin era inaceitável o desenvolvimento de um movimento operário autônomo ao partido bolchevique. As práticas repressivas e contra-revolucionárias dos bolcheviques, juntamente com o desenvolvimento da consciência operária em direção à necessidade de ruptura completa com as instituições ditas representativas do operariado (partidos e sindicatos) possibilitarão a vários comunistas, tal como Anton Pannekoek, revisar teoricamente as práticas operárias que passavam a construir uma nova forma de produção material da vida através de organizações verdadeiramente democráticas no interior das fábricas: Os sovietes (conselhos operários). A partir das experiências dos sovietes na Rússia (1905), na primeira fase da Revolução Russa (fevereiro de 1917) e na Revolução Alemã (1917- 1921), Anton Pannekoek abstraiu do movimento operário a essência da sua prática revolucionária, ou seja, a auto-organização da luta operária contra a opressão do capitalismo e a construção de novas formas sociais a partir da autogestão da produção. Passava a concordar na íntegra com a máxima de Marx em relação à ação do sujeito histórico potencialmente revolucionário (proletariado) que assim afirmava: “A emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores”. No período que vai de 1920 a 1940 Anton Pannekoek realizou diversas atividades e produções intelectuais, porém todas elas completamente desligadas de qualquer atividade política “homogeneizada por Moscou”. Sistematizou inúmeras críticas ao reformismo kautskiano afirmando que tal ideologia foi responsável por dar ao marxismo uma forma mecanicista na qual sustentava que o socialismo seria atingido pela via pacífica e parlamentar. Escreveu diversos artigos de cunho epistemológico e, especificamente nos anos 20, dedicou-se às pesquisas científicas e às aulas de astronomia e física nas quais resultaram em trabalhos de surpreendente nível técnicocientífico. A partir de 1927 volta a se preocupar com uma produção teórica e política que buscasse melhor compreender o movimento operário, suas tendências e contra tendências. Nessa época consolida uma crítica sistematizada ao bolchevismo e escreve uma de suas principais obras intitulada Lênin filósofo (1938).1 Outra importantíssima obra de Pannekoek foi publicada em 1947 intitulada De arbeidersraden (Os Conselhos Operários). Essa obra foi produzida em um contexto de intensa adversidade para Pannekoek e sua família visto que a Holanda nesse período encontrava-se sob ocupação nazista, tornando-se um lugar extremamente miserável e com grande taxa de mortalidade, tanto por conta dos bombardeios quanto pela fome e pelo penoso frio do inverno de 1943/44. Segundo Mendonça, Mazelas de tamanha profundidade não deixaram os Pannekoek incólumes. Durante o último inverno da guerra, à exceção de sua filha Anneke que estava nos EUA com o marido, sua mulher Anna adoeceu e foi internada num hospital, seu filho Antoine Johannes – que havia se tornado um dos maiores geólogos holandeses – foi preso pelas tropas japonesas na Indonésia enquanto lá trabalhava e colocado num campo de concentração tendo sido libertado somente depois da rendição do Japão. E o próprio Anton, então com setenta anos, teria morrido de fome e frio sozinho em sua própria casa se não fosse encontrado moribundo por um colega professor da universidade que foi visitá-lo e o socorreu, tratou e assistiu até a recuperação de Anna (2009, p. 72) 1 De acordo com Malandrino em sua obra Scienza e socialismo: Anton Pannekoek (1873-1960), citado por Mendonça, a obra Lênin filósofo foi “escrita a partir do momento em que o holandês tomou conhecimento da obra de Lênin ‘Materialismo e empiriocriticismo’ (...) Em suas memórias, Pannekoek afirma que as razões que o levaram a escrever este livro foram: ter percebido que Lênin se colocou no campo do materialismo burguês e a conexão de tal posição filosófica com a Revolução Russa. Ele considerou necessário publicá-lo mesmo que, por causa da escassez de recursos financeiros, poucos exemplares pudessem ser impressos ‘para fazer emergir o verdadeiro caráter do partido comunista russo e para aprofundar as bases do marxismo” (Malandrino Apud Mendonça, 2009, p. 68). Enfim, Anton Pannekoek e todo o seu desenvolvimento teórico estão intimamente ligados ao processo histórico de desenvolvimento do movimento operário europeu e da luta de classes desencadeada por ele em alguns países europeus nas primeiras décadas do século XX. Esse período é marcado pela radicalização das lutas operárias que avançavam em direção à construção do comunismo, entendido como a autogestão social. Conforme afirmou Paul Mattick – teórico conselhista – a vida de Anton Pannekoek coincide quase inteiramente com a história do movimento operário. Conheceu o seu aparecimento enquanto movimento de protesto social, a sua transformação em movimento de reforma social, o seu eclipse como movimento de classe independente no mundo contemporâneo. Mas Pannekoek conheceu igualmente as suas possibilidades revolucionárias nas sublevações espontâneas que, de tempos a tempos, interrompem o curso tranqüilo da evolução social (MATTICK, 1960). A partir disso é possível perceber que Pannekoek, assim como Marx e outros marxistas autênticos, não partiram de idéias pré-concebidas para explicar o real, mas pelo contrário, visualizava no desenvolvimento das lutas operárias em seu estágio autogestionário, no qual o proletariado emancipa-se das instituições burocráticas tais como sindicatos e partidos políticos, criando organizações auto-geridas como os conselhos operários, o embrião da sociedade comunista. Portanto, “o comunismo não é para nós [comunistas – LB] um estado de coisas que deva ser estabelecido, um ideal pelo qual a realidade terá que regular. Chamamos comunismo ao movimento real que supera o atual estado de coisas” (Marx & Engels, 1984, p. 42). Assim, Pannekoek torna-se um dos grandes expoentes da teoria marxista revolucionária: O Comunismo de Conselhos. Pannekoek foi desenvolvendo suas teses com o passar do tempo, sendo que algumas idéias manteve até o final de sua vida e aprofundou algumas, enquanto que outras ele repensou e reconsiderou. Para analisar as idéias de Pannekoek é necessário ter em mente o seu percurso intelectual. O seu pensamento atravessou algumas fases. Vamos resumir rapidamente estas fases para compreender mais adequadamente o seu pensamento. Pannekoek, obviamente, não nasceu marxista. Antes de aderir à SocialDemocracia, havia se comprometido com o liberalismo. Sua formação universitária na área de ciências naturais não contribuíram com um estudo mais profundo das questões sociais e somente após um período liberal e de primeiras leituras de autores mais críticos e contato com pessoas e professores do espectro mais à esquerda, que irá possibilitar sua adesão à social-democracia em 1899 (Mendonça, 2009). Essa é a primeira fase de seu pensamento político marcado pelo marxismo. A sua participação na social-democracia se deu, no entanto, com seu alinhamento com a ala esquerda, representada por Herman Gorter e Henriete RolandHost. O movimento grevista na Holanda reforçou essa tendência de radicalização e por isso ele participou do grupo tribunista, nome derivado do jornal De Tribune. Suas concepções, nesta época, já diferenciavam Pannekoek da tendência hegemônica da social-democracia. Além da inspiração em Marx, a leitura de Dietzgen também irá ter ressonância no pensamento de Pannekoek. Neste período, Pannekoek será um dissidente no interior da social-democracia e nesse processo irá produzir obras como “Marxismo e Darwinismo” (1909), “As Divergências Táticas no Interior do Movimento Operário Europeu” (1909), “Ações de Massas e Revolução” (1912), entre outras, que revelam concordâncias e discordâncias com a social-democracia. Nesta época, Karl Kautsky era o grande ideólogo da socialdemocracia, sendo o substituto de Engels desde a morte deste, e representante da “ortodoxia” e principal opositor do “revisionismo” (Bernstein). A social-democracia alemã era a grande referência internacional e tinha congêneres em todo o mundo. Pannekoek compartilhava alguns aspectos da social-democracia, tal como a proeminência do pensamento de Marx e Engels, a aceitação de uma organização partidária, etc. E tinha algumas divergências em relação à tendência hegemônica, o que lhe permitia ser um dissidente. Em “Marxismo e Darwinismo”, ele tanto revela concordância com o kautskismo quanto discordância. Como concordância se observa uma certa respeitabilidade oferecida a Darwin e o darwinismo, como citações de Kautsky, e como discordância a crítica que ele apresenta2 . Em “As Divergências Táticas no Interior do Movimento Operário Europeu”, ele mostra concordâncias ao criticar o revisionismo e o “anarquismo” no interior da social-democracia e como discordância mostra o papel das “classes médias” e do burocratismo na luta política e seu caráter negativo, reconhecendo a existência de uma “aristocracia operária”, ao mesmo tempo em que aponta a defesa da autonomia proletária. O que revela uma característica permanente do pensamento de Pannekoek nesta obra é a sua afirmação sobre os dois grandes fatores de força do proletariado, o saber (a consciência ou “espírito”) e a organização (fundados na solidariedade de classe), o que revela a inspiração em Dietzgen, no primeiro caso. Em “Ações de Massas e Revolução”, a discordância se manifesta mais claramente diante de uma questão mais pontual: a questão de greve de massas. Neste período, a posição de Kautsky e da maioria da social-democracia (Valdeverde na Bélgica, por exemplo, que irá debater com Rosa Luxemburgo) era contra a greve, “estratégia anarquista”, e a posição de alguns dissidentes (Rosa Luxemburgo, Parvus, Mehring e Pannekoek), era favorável à greve. Essa divergência será fundamental para se perceber que em pequenas oposições podem se revelar ou manifestar grandes divergências, mesmo que os debatedores não tenham consciência disso. Na verdade, a posição particular sobre um elemento acessório e menos importante pode ser derivado de falta de informação, equívocos, etc., ou de uma predisposição mental individual ou ainda uma base intelectual (ideológica ou teórica) que fornece a fonte de tais oposições. Nestes dois últimos casos, a oposição por questões pontuais apenas revelam pressupostos (predisposição mental, o que remete a valores, concepções, sentimentos, etc. ou ideologias/teorias que manifestam perspectivas de classe) que remetem a divergências sobre questões fundamentais, o que revela que por detrás de determinados posicionamentos existe toda uma base intelectual que é antagônica, expressando, portanto, um conflito de interesses de classe. A oposição de Kautsky e Pannekoek nesta questão particular apenas revelava uma divergência de perspectiva de classe que ainda não estava clara e manifesta no segundo e por isso não pôde perceber o caráter mais profundo do que estava em jogo, o que só faria posteriormente. A cisão de 1914 entre a social-democracia hegemônica, cada vez mais conservadora, e os dissidentes, derivada do apoio dos representantes social-democratas no parlamento aos créditos de guerra, produziu novas oposições em vários países, sendo que Lênin, na Rússia e Rosa Luxemburgo na Alemanha, foram os mais enérgicos na formação das novas tendências. Vários pequenos grupos surgiram nesta época e na Alemanha surgiram os grupos de “comunistas internacionalistas”, de Otto Rühle, o grupo dos Delegados Revolucionários e a chamada Esquerda de Breme, que contava com Pannekoek e Gorter. Neste período, há a transição para a substituição do nome 2 Kautsky buscou unir marxismo e darwinismo, sobrepondo ao materialismo histórico o evolucionismo progressista darwinista, bem coerente com sua concepção política gradualista e reformista, sendo a base da ideologia kautskista da “darwinização” do marxismo (Korsch, 1971). “social-democracia” para o nome originalmente colocado por Marx para representar a tendência revolucionária-proletária, comunismo. Esse período seria mais curto e também manifestaria divergências no seu interior (que foi mais forte na oposição entre Lênin e Rosa Luxemburgo, a nível de polêmica internacional entre a antiga ala esquerda). A eclosão da Revolução Russa de 1917 e a tomada do poder estatal pelo Partido Bolchevique acaba gerando uma proeminência bolchevista, que provocará adesões e apoios (grande parte das tendências de esquerda apoiaram o bolchevismo ao invés de aderir a ele, o que só ocorrerá efetivamente após as derrotas das tentativas de revoluções proletárias em vários países até por volta de 1923). Após o bolchevismo tomar o poder estatal e até revelar sua face ditatorial ao resto do mundo (não se tinha informações precisas sobre a Rússia no resto do mundo), poucos se aventuraram a criticar Lênin e o regime bolchevique na Europa (Rosa Luxemburgo foi uma exceção), o que era mais comum na própria Rússia (de Makhayski até as oposições no interior do próprio Partido Bolchevique). Porém, as informações aumentavam, a repressão bolchevique se manifestava cada vez mais intensamente, a eclosão de tentativas de revoluções proletárias na Alemanha, Hungria e Itália e acirramento das lutas operárias na Europa, e a prática bolchevique, principalmente no interior da III Internacional Comunista e os textos de Lênin, especialmente, O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, um ataque aos grupos radicais e antiparlamentaristas no continente europeu, promoveram uma nova cisão. Embora existissem várias tendências nessa época, no que alguns convencionaram denominar “socialismo radical”, e, por isso, não existia homogeneidade, também não haviam fortes conflitos entre elas, que preferiam criticar e se opor à social-democracia reformista. Porém, a crítica à social-democracia tinha diferenças entre as tendências antiparlamentaristas e a tendência bolchevique. Para os antiparlamentaristas, a participação no parlamento era negada (basta ver o abstencionismo de Bordiga, na Itália, e o antiparlamentarismo de Pankhurst, na Inglaterra, ambos criticados por Lênin). No entanto, no caso alemão, a divergência com a social-democracia era mais profunda e ia até a raiz das bases sociais dos Partidos Social-Democratas: a burocracia. Apesar de Gorter e Pannekoek terem manifestado uma posição antiparlamentar, seu ataque era, principalmente, a oposição entre “chefes” e “massas”, ou seja, a relação estabelecida pela social-democracia entre o partido e a classe e entre os integrantes do partido, um esboço de uma crítica à burocracia. Ao cortar a raiz de uma árvore, incomodou todas as outras árvores. Eles expuseram a raiz do problema, que era comum ao bolchevismo. Assim, para quem lê O Esquerdismo, verá as críticas a Bordiga e Pankhurst, mas poderá também observar que muito mais páginas foram gastas com Gorter e Pannekoek e com a discussão entre “massas” e “chefes”, devido à raiz comum, burocrática, entre socialdemocracia e bolchevismo. O Partido Bolchevique no poder quis substituir a proeminência da socialdemocracia alemã e impor, através das críticas de Lênin e da Internacional Comunista, uma nova hegemonia. Os conflitos logo surgiram e Hermann Gorter seria um dos primeiros a se manifestar através de sua crítica em “Carta Aberta ao Camarada Lênin”, uma resposta ao livro O Esquerdismo. Da mesma forma, Pannekoek também irá marcar sua ruptura (não no sentido de que fizesse parte, mas sim de que fornecia determinado apoio e não mostrava grandes divergências até então) com o bolchevismo. Isto se deu com sua obra Revolução Mundial e Tática Comunista, de 1920, na qual avalia negativamente o bolchevismo e abre caminho para sua adesão ao comunismo de conselhos. Após isto, Pannekoek cada vez mais se coloca numa posição semelhante a de outros militantes e teóricos da época (Otto Rühle, Paul Mattick, Herman Gorter, etc.) e as experiências das revoluções proletárias serviram para que a ênfase nas formas de auto-organização proletária, os conselhos operários, se tornasse mais nítido. Neste contexto, a crítica a partidos e sindicatos se torna mais ampla, bem como a oposição às burocracias em geral e ao capitalismo de estado russo. A contra-revolução que tomou conta da Rússia, Alemanha e vários outros países, o recuo do movimento operário revolucionário e, logo após, a ascensão do nazifascismo e da Segunda Guerra Mundial, marca a participação mais limitada de Pannekoek nas lutas políticas, voltando às suas atividades como astrônomo e professor. Porém, irá produzir várias obras e artigos, entre as quais Lênin Filósofo, no qual mostra que as discordâncias com o bolchevismo tinham raízes muito mais profundas do que se imaginava e que mostravam uma questão de perspectiva de classe. O bolchevismo, no fundo, era semi-burguês, tal como seu suposto “materialismo”. Outra obra importante, que alguns consideram sua maior obra, foi Os Conselhos Operários, de 1947. Nesta obra, Pannekoek apresenta sua teoria dos conselhos operários, retomando vários escritos anteriores e fornecendo uma síntese e revisão ao mesmo tempo, bem como ampliando temáticas. O elemento fundamental do texto reside na sua tese da formação e significado dos conselhos operários, mostrando como concebia o processo de engendramento deles através da luta operária. Retomava a crítica à Revolução Bolchevique e ao capitalismo de Estado, bem como colocava, novamente, a importância atribuída ao saber e à organização. Este é um elemento permanente nas obras de Pannekoek, inclusive em seus artigos. A necessidade da organização do proletariado é pensada por Pannekoek desde os seus primeiros textos e culmina com esta obra. Desde suas primeiras incursões sobre a questão sindical e partidária, para depois observar seu caráter burocrático e nãoproletário, até a percepção de outras formas organizacionais, os conselhos operários e os grupos de reflexão, são capítulos da evolução do seu pensamento que não abandonam a preocupação básica e fundamental de seu pensamento. Por outro lado, outra preocupação fundamental e básica em seu pensamento é a questão da mente, da consciência, ou do “espírito” (palavras diferentes para dizer a mesma coisa, no sentido que lhe atribui Pannekoek). A consciência de classe do proletariado deve brotar simultaneamente com as formas de auto-organização proletárias. A emancipação proletária significa a gestação de novas formas organizacionais, tal como os conselhos operários, bem como uma nova mentalidade, uma consciência de classe desenvolvida e bem distinta da mentalidade burguesa. Neste contexto, refletir sobre o pensamento de Pannekoek significa verificar sua contribuição ao marxismo e luta operária a partir de suas reflexões e ações, uma das mais ricas contribuições ao movimento operário do século 20. Pannekoek esteve no bojo das lutas operárias do início do século 20 e presenciou a radicalização e tentativa de revolução proletária na Alemanha, bem como observou as ações operárias em outros países. Também acompanhou a derrota do movimento revolucionário, a ascensão nazifascista e Segunda Guerra Mundial. A sua obra Os Conselhos Operários é uma síntese das experiências e reflexões de Pannekoek durante este período e é por isso que ele discute o processo de formação dos conselhos, seu papel, sua importância – além de análises breves de questões específicas, como a Revolução Russa – e discute não só a questão organizacional proletária como também a questão do pensamento e das ideologias (no sentido amplo do termo), além de analisar a guerra e o fascismo. Esta obra, juntamente com as demais que a precederam, são uma das mais importantes contribuições ao marxismo, pela radicalidade e pelo compromisso com o movimento revolucionário do proletariado e também devido ao fato de ter buscado questionar o pseudomarxismo em suas várias variantes e as apropriações burocráticas das lutas operárias, além de ter conseguido perceber a importância social e histórica dos conselhos operários. Assim, Pannekoek é um dos grandes continuadores de Marx e do marxismo. Obviamente, como em todos os pensadores, há lacunas, falhas, problemas, embora em grau muito menor do que nos demais intelectuais que se dizem marxistas, bem como evolução, aprofundamentos, desdobramentos, avanços e recuos, como não poderia deixar de ser e que ocorre com todos os pensadores. Isto não retira os seus méritos e apenas mostra que ele é um ser humano e não um Deus. Assim, os seus pequenos equívocos, suas lacunas, que podem ser insuportáveis para os espíritos dogmáticos, não deixam de promover o reconhecimento de sua contribuição inestimável ao marxismo e às lutas operárias. A questão da organização, ao contrário do que muitos pensam, é uma das questões fundamentais do pensamento de Pannekoek, ao lado da questão da consciência. Isto, no entanto, também pode gerar mal entendidos e por isso iremos colocar alguns elementos aqui que se esclarecem esta questão e alguns serão retomados no restante da coletânea. A afirmação segundo a qual a questão da organização é fundamental para Pannekoek pode gerar a ideia de que ele poderia pensar os conselhos operários de forma fetichista. No entanto, não é este o caso. A questão das organizações recebeu tratamento diferenciado por Pannekoek, dependendo da época em que escrevia e do tipo de organização. Lembrando que o pensamento de Pannekoek atravessou algumas fases e que nestas algumas idéias permaneceram, algumas foram abandonadas e novas foram gestadas, é preciso compreender a concepção de organização em Pannekoek vinculado a este processo. Em primeiro lugar, as reflexões iniciais de Pannekoek sobre organização se deu no bojo de sua participação – crítica e dissidente – dentro da social-democracia, que apenas enxerga as duas formas tradicionais de organização integradas no capitalismo: os sindicatos e partidos. Estas organizações, que nasceram das lutas operárias, como bem demonstraram Marx e Pannekoek, passam de órgãos da luta proletária para órgãos de reprodução do capitalismo com seu processo de crescente burocratização. Esse processo não ocorre de uma só vez, imediatamente. Em primeiro lugar, surgem os partidos e sindicatos como produtos das lutas dos trabalhadores, com a repressão e recusa da burguesia e do Estado capitalista. É o seu momento heróico. A luta avança e partidos e sindicatos são legalizados e aceitos pela burguesia ao instaurar um novo regime de acumulação, o regime de acumulação intensivo, que instaura a democracia partidária e o Estado liberal-democrático em substituição à democracia censitária e Estado liberal (Viana, 2003). Porém, o que a burguesia oferece com a mão esquerda, retira com a mão direita. A burguesia legaliza e aceita partidos e sindicatos, mas o próprio processo de legalização significa a imposição da legislação burguesa sobre estas organizações, além das necessidades financeiras impostas, bem como pelo novo papel que elas ganham (os partidos passam a poder eleger candidatos e disputar cargos e governos; os sindicatos se reduzem a representação da força de trabalho com limites legais). Além disso, partidos e sindicatos se integram cada vez mais na sociedade burguesa, por estarem cercados por ela e também por, nesse processo, criar a sua burocracia própria, uma camada de dirigentes que passa a constituir interesses próprios. Neste contexto, partidos e sindicatos legalizados são o primeiro passo para a burocratização. Esse processo de burocratização vai crescendo paulatinamente. Os Partidos Social-Democratas, quanto mais o tempo passava, mais cresciam: aumentavam militantes, recursos, e, com o crescimento eleitoral, aumentava os cargos, o poder financeiro, e a burocracia partidária, com seus intereresses próprios e recursos crescentes (Michels, 1982). Porém, a base ainda era formada em grande parte por trabalhadores (operários, camponeses, etc.) e o seu discurso nasceu do marxismo e de outras tendências socialistas e assim ainda mantinha uma fraseologia revolucionária cada vez mais distante da prática e dos interesses reais. Os sindicatos seguiram um percurso análogo e aumentaram cada vez mais sua burocracia e poder financeiro. Nada mais natural, portanto, que este processo se torna-se cada vez mais visível e mais conflitos fosse gerado no interior destas organizações. Neste contexto, Pannekoek (assim como Gorter, Rosa Luxemburgo, Parvus e muitos outros) eram expressão do descontentamento dos setores que negavam este caminho, mas ainda não tinham uma percepção mais clara do que estava em jogo e por qual motivo. Foi necessário o aprofundamento da burocratização para que se tornasse perceptível isso e uma demonstração que acabasse com todas as ilusões sobre partidos e sindicatos. No caso dos partidos, isso ocorreu com a prática do Partido SocialDemocrata Alemão, ao aprovar os créditos de guerra. Porém, a dissidência interna passou a ser externa provocando cisões e novos partidos, que logo tiveram o mesmo triste e frio destino burocrático. Apesar disso, o movimento revolucionário do proletariado eclodiu e colocou em xeque as burocracias partidárias e sindicais, mostrando seu caráter contra-revolucionário. O caso russo deixou isto ainda mais claro, pois mesmo sendo comandado por uma burocracia radicalizada e sem as mesmas bases que a burocracia partidária dos gigantes e poderosos partidos social-democratas da Europa, acabou realizando a contra-revolução burocrática na Rússia e instaurando um capitalismo estatal. Isto, para aqueles que tinham vínculos reais com o movimento revolucionário do proletariado, só podia significar uma nova cisão, mas agora mais profunda, uma ruptura não com determinadas direções partidárias/sindicais ou formas de organização do partido ou sindicatos e sim com toda e qualquer forma de partido e sindicatos. Esse foi o trajeto do movimento operário e que foi seguido por Pannekoek (e por vários outros, como Rühle, Wagner, etc.). Pànnekoek passou de uma época na qual criticava as influências das ideologias e camadas pequeno-burguesas em partidos e sindicatos para uma outra na qual se questionava não apenas isso mas também as relações internas nestas organizações, até chegar o momento da ruptura final, quando o caráter contra-revolucionário destas organizações ficou evidente. Ao mesmo tempo que partidos e sindicatos revelaram seu verdadeiro papel no processo de lutas operárias, emergiram novas formas de organização gestadas e geridas pelos próprios trabalhadores, os conselhos operários. Os militantes e teóricos que buscam expressar teórica e politicamente o movimento revolucionário do proletariado logo perceberam a importância e o significado histórico dos conselhos operários e Pannekoek, bem como o conjunto dos chamados “comunistas de conselhos” (Gorter, Rühle, Mattick e outros), foram os primeiros a perceber e reconhecer isso. É nesse período que amadurece o pensamento de Pannekoek sobre a questão da organização, a recusa de partidos e sindicatos é completada pela defesa dos conselhos operários como órgãos da revolução social e da gestão da sociedade futura. Neste contexto, a autogestão social pelos conselhos operários é a expressão do comunismo. Isto, porém, não faz de Pannekoek um fetichista dos conselhos operários, como alguns erroneamente pensam. Em primeiro lugar, Pannekoek pensava que os conselhos operários são mais um princípio organizativo do que uma determinada forma organizacional e que, portanto, poderia assumir formas diferentes. Em segundo lugar, Pannekoek pensava os conselhos operários como sendo órgãos da revolução social e não como organizações que deveriam, por exemplo, funcionar no interior do capitalismo e que, portanto, seriam deformados e estes devem ser combatidos. Em terceiro lugar, ao invés de enfatizar o tipo de organização que constitui os conselhos, Pannekoek estava mais preocupado em analisar as lutas operárias e como elas engendram os conselhos de trabalhadores. Assim, Pannekoek mantém a sua preocupação fundamental com o processo de organização dos trabalhadores, mas o desloca de partidos e sindicatos para os conselhos operários, embriões do comunismo. Por isso Pannekoek se tornou o grande teórico dos conselhos operários e um dos pontos altos como manifestação teórica do movimento revolucionário do proletariado. Um questionamento pode ser feito ao terminar esta breve análise sobre a questão da organização em Pannekoek: como fica a questão das organizações dos revolucionários? Eis que Pannekoek não dedicou nenhum escrito mais aprofundado sobre esta questão. Após abandonar a ideia de partido – embora algumas vezes utilize a palavra “partido” –, Pannekoek oscilou entre a concepção de Otto Rühle de “organização unitária” e a da necessidade de uma organização de revolucionários sob a forma de grupos de discussão e propaganda, chegando a postular, em alguns momentos, o papel de “direção espiritual” do proletariado (ao contrário das concepções burocráticas que querem a direção prática do movimento operário). Apesar disso, Pannekoek em seus últimos textos fecha com a posição de “grupo de discussão”, tal como se vê em seu debate com Cornelius Castoriadis. 

Referências: 
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia Alemã. São Paulo: Centauro, 1984. 
MATTICK,Paul. Anton Pannekoek – biografia por Paul Mattick. IN: http://guydebord.blogspot.com/2009/06/anton-pannekoek-pannekoek-biografia-por.html . Acessado em: 12/02/2010. 
MENDONÇA, José Carlos. Teoria da organização política em Anton Pannekoek. 2009. Dissertação (Mestrado em sociologia política) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009. 
VIANA, Nildo. Pannekoek: Teórico dos conselhos operários (prefácio). IN: PANNEKOEK, Anton. A revolução dos trabalhadores. Editora barba ruiva, 2007. 
_____ . Manifesto Autogestionário. Rio de Janeiro: Achiamé, 2008. 

domingo, 9 de agosto de 2015

Seminário Perspectiva Marxista, organizado pelo Núcleo de Pesquisa Marxista

O NEPALM - Núcleo de Estudos e Pesquisas América Latina em Movimento/UFMS apoia a realização do Seminário Perspectiva Marxista, realizado pelo NPM - Núcleo de Pesquisa Marxista, da Universidade Estadual de Goiás, campus Anápolis.

Link: https://www.youtube.com/watch?v=m6ZZg30BkDE

A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA

Lisandro Braga - Doutorando em Sociologia/UFG
e Professor de Teoria Política/UFMS


Resumo: O presente artigo analisa a concepção materialista da história a partir dos primeiros escritos filosóficos de Marx e Engels presentes na obra A Ideologia Alemã. Nessa obra já é possível encontrar os principais elementos analíticos de sua concepção materialista, porém esses se encontram em um estágio embrionário e só foram desenvolvidos de forma aprofundada após a publicação do Prefácio à Crítica da Economia, onde Marx apresentará aquilo que ele denominou como sendo o “fio condutor” dos seus estudos.
Palavras-chaves: Ser Social e Consciência, Materialismo Histórico-Dialético, Modo de Produção e Luta de Classes.

A Consciência é o Ser Consciente

Inicialmente apresentaremos, de forma introdutória, uma discussão acerca dos conceitos Ser Social e Consciência na obra A Ideologia Alemã de Karl Marx e Friedrich Engels, e para isso buscaremos compreender a trajetória intelectual desses pensadores, os elementos formadores das suas idéias centrais e já contidas nessa obra de forma embrionária.
Karl Marx nasceu no dia 05 de maio de 1818 na Alemanha, filho de uma família judia de classe média, iniciou seus estudos em direito na universidade de Berlim, mas logo depois se transfere para a filosofia onde será influenciado pelas idéias de Hegel e, posteriormente, dos “hegelianos de esquerda” (Bruno Bauer, Edgar Bauer, Arnold Ruge, Ludwig Feuerbach, Moses Hess etc). Conhecedor amplo da filosofia alemã, também estudou a filosofia antiga chegando a desenvolver como tese doutoral A filosofia da natureza em Demócrito e Epícuro (1838). Preparou-se para assumir uma cátedra na universidade de Bonn, mas tão logo assumiu foi expulso devido à produção

de alguns panfletos de caráter anticristão. A partir daí optou por trabalhar como jornalista, uma vez que possuiria maior autonomia intelectual para produzir.
Filho de uma rica família de fabricante de tecidos, Engels (1820-1895), ao contrário de Marx, não possuía uma formação acadêmica, cursou apenas um ano na universidade de Berlim. Sua formação era essencialmente econômica e originada na experiência vivida. Quando jovem foi enviado pela família para Manchester, grande pólo capitalista industrial, onde se familiarizou com o funcionamento do capitalismo ao relacionar-se com os dirigentes operários britânicos e visualizar a exploração a que estavam submetidos o proletariado britânico na qual “denunciou pela primeira vez em „Cartas de Wuppertal‟, escrita aos dezenove anos” (Fontana, 2004, p. 199).
Sem dúvida a mais forte influência sobre o pensamento filosófico de Marx está em Hegel. Durante um bom tempo foi um “hegeliano de esquerda” e junto com tais hegelianos aprofundaram o estudo da dialética de Hegel, mas também promoveram sua crítica. Esse foi o caso de Ludwig Feuerbach que efetivou a crítica à dialética idealista de Hegel através de uma ótica materialista. Influenciado por Feuerbach, Marx aprofunda seus estudos a partir de uma perspectiva materialista e avança na crítica à Hegel e também à Feuerbach. Isso não quer dizer que ele não reconhecia a importância desses dois filósofos na sua formação teórica, apenas demonstrava os limites de ambos e apresentava uma perspectiva diferenciada.
Para Hegel, a história é a história da razão, ou seja, das idéias, e a primeira tem o seu desenvolvimento garantido e determinado pela segunda. Já para Feuerbach a história é o desenvolvimento do ser humano ontológico, do ser genérico. Porém, Feuerbach não aprofunda sua análise sobre esse ser, possibilitando brechas para interpretação de que tal ser é abstrato, ou seja, a-histórico e a-transitório. Nesse sentido, Marx avança ao reconhecer que Feuerbach tem razão, mas se esquece de apontar que tal ser é fruto de um processo histórico, formado nas relações sociais e pelas relações sociais, historicamente determinadas. Percebe-se, então que Hegel conseguia ver a historicidade do mundo através da sua dialética do desenvolvimento da razão na história, e Feuerbach conseguia perceber a materialidade da história na essência humana, mas Hegel perdia a materialidade de vista, e Feuerbach perdia a historicidade. A tarefa que propôs Marx foi reunir materialidade e historicidade, fundando o que posteriormente foi chamado de materialismo histórico. A história não é o desenvolvimento da razão, e sim das relações sociais concretas (VIANA, 2006, p. 47-48).
Na sua obra A ideologia Alemã, Marx realizará uma espécie de “acerto de contas” com os filósofos neo-hegelianos, principalmente Feuerbach, Bauer, Strauss e Stirner. A principal crítica endereçada a tais filósofos consistia em denominá-los de “pensadores anacrônicos”, pois os mesmos buscavam desenvolver idéias importadas de outros países, mas que não possuíam base concreta na Alemanha. Contentavam em criticar o mundo a partir do campo das idéias sem, necessariamente, se preocuparem em confrontá-las com o mundo material que os circundava. Por isso Marx e Engels irão ironizá-los afirmando que para os Jovens-Hegelianos as representações, idéias, conceitos, em geral os produtos da consciência, por eles autonomizada, valem como os grilhões autênticos dos homens, do mesmo modo que para os Velhos-Hegelianos significam os verdadeiros elos da sociedade humana, percebe-se que os jovens-Hegelianos também só tenham de lutar contra essas ilusões da consciência (...) Os ideólogos Jovens-Hegelianos são, apesar das frases com que pretendem abalar o mundo, os maiores conservadores. Os mais novos dentre eles encontraram a expressão correta para a sua atividade quando afirma que lutam apenas contra frases. Esquecem, apenas, que a estas mesmas frases nada opõem senão frases, e que de modo nenhum combatem o mundo real existente se combaterem apenas as frases deste mundo (1984, p. 13).
Uma vez que a relação intrínseca entre ser e consciência social foi invertida pelos jovens hegelianos, a proposta materialista de Marx e Engels consistia em promover uma reinversão dessa relação, ao questionar a autonomia da consciência em relação ao ser e defender a superioridade do ser sobre a consciência. Ao contrário desses que partiam de pressupostos definidos única e exclusivamente por suas mentes e, dessa forma, consistiam em pressupostos dogmáticos e arbitrários, Marx e Engels partiam de pressupostos reais visto que partiam dos indivíduos reais, em condições materiais e históricas concretas, promovendo ações, também, reais e concretas e que só podiam ser verificadas por via empírica, ou seja, na prática. Constata-se então que Marx e Engels propunham uma concepção materialista da história humana. Aprofundaremos mais adiante a discussão sobre tal concepção.
Os dois autores afirmavam (com certo grau de ironia que era próprio deles, principalmente de Marx) que o primeiro pressuposto da existência humana é a existência de seres humanos vivos. O segundo pressuposto é a necessidade de garantir a produção e reprodução das condições materiais de sua existência. O modo de produção é o modo como os homens produzem e reproduzem os meios necessários para a reprodução da vida e faz isso desenvolvendo sua capacidade de trabalhar de forma
cooperada, logo o trabalho e a cooperação se tornam necessidades históricas. De acordo com Fontana, o estudo da história mostra que os homens produzem os meios de subsistência de acordo com certos modos de produção que são na realidade modos de vida – uma forma determinada de manifestar a vida -, o que explica que o que os indivíduos são depende das condições materiais de produção e das relações que se estabelecem entre eles no processo (2004, 202).
Em seguida à análise da produção e reprodução das condições materiais da existência e sobrevivência do homem, os autores de A Ideologia Alemã desenvolveram a tese de que o trabalho e a cooperação nas sociedades de classes ocorrem segundo a divisão social do trabalho, ou seja, a divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, divisão entre campo e cidade, indústria e comércio e a própria divisão de classes. Para eles as diferentes fases de desenvolvimento da divisão do trabalho significam tantas outras formas diferentes de propriedade; quer dizer, cada nova fase da divisão do trabalho determina também as relações dos indivíduos uns com os outros no que diz respeito ao material, ao instrumento e ao produto do trabalho (2007, p. 89).
Isso significa que a divisão social do trabalho produz as diferentes classes sociais e as diferentes e desiguais formas de apropriação do excedente do trabalho. A apropriação privada dos frutos do trabalho coletivo é uma das principais características dos modos de produção das sociedades divididas em classes sociais. Dessa forma, percebe-se que tais sociedades são marcadas pela contradição entre o interesse individual e o interesse coletivo. É exatamente por conta dessas contradições que o Estado surge e (a)parece ilusoriamente como sendo representante dos interesses coletivos, estando acima das classes sociais e dos seus interesses específicos. Não é à toa que “toda classe social que aspira se tornar uma nova classe dominante deve apresentar seus interesses particulares como sendo interesses gerais da sociedade. O conflito entre classes torna necessária a intervenção do Estado” (VIANA, 2007, p. 26).
Partindo da análise de que o homem se faz homem a partir do momento em que se vê coagido pela natureza a produzir suas condições materiais de existência e sobrevivência é que Marx concluirá então que a consciência não pode ser outra coisa se não o ser consciente, ou seja, o ser humano é o seu processo histórico de engendramento. O ser humano é o produtor de suas idéias, mas o ser humano concreto e histórico que tal como se acham condicionados pelo “modo de produção” 1. Portanto, segundo Marx e Engels, a produção de idéias, de representações, da consciência está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens ainda aparecem, aqui, como emanação direta de seu comportamento material [...] Os homens são os produtores de suas representações, de suas idéias e assim por diante, mas os homens reais ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento das forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência não pode jamais ser outra coisa que não o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real. Se em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo, como numa câmera escura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos na retina resulta de seu processo de vida imediatamente físico (2007, 93-94).
Somente com a divisão social do trabalho (trabalho material de um lado e trabalho intelectual do outro) é que a consciência pode ser apresentada como sendo autônoma e tal apresentação surge com a ideologia, ou melhor, com os ideólogos. Sobre o conceito de ideologia Marx afirmará que se trata de uma falsa representação da realidade, uma falsa consciência que está intimamente relacionada com os interesses das classes dominantes, visto que a existência de tal classe subentende, também, a existência de classes dominadas. Portanto, é do interesse das classes dominantes manterem as relações sociais que lhes possibilitam dominar e, conseqüentemente, é do interesse das mesmas falsear tal dominação uma vez que a revelação do processo de dominação e de suas bases de sustentação (a propriedade privada, o processo de extração de mais-valor etc.) promoveria uma maior compreensão do mesmo e a reação das classes exploradas contra o processo de opressão. É nesse sentido que Marx e Engels afirmaram, as idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias das classes dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, a sua força espiritual, dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual (Ibid, 47).
1 De acordo com Nildo Viana esse conceito deve ser entendido aqui, de forma simplicada, como o nível de “desenvolvimento das forças produtivas e formas de intercâmbio” conforme Marx e Engels descrevem na obra A ideologia Alemã, visto que o conceito modo de produção ainda não estava elaborado de forma complexa como estará em obras posteriores.
Importante afirmar é que a consciência para Marx e Engels não se resume ao papel passivo contido no ato de conhecer e expressar o real, mas também possui um caráter ativo, ou seja, a consciência como projeção apresenta uma visão do real e tal visão, dependendo da perspectiva de classe, busca afirmar ou negar a realidade existente. Portanto, “a consciência também diz o que deve ser, ou seja, apresenta-se como uma ética, uma norma de conduta e, ao mesmo tempo, uma manifestação de desejos e significados produzidos no contexto da divisão social do trabalho, o que produz antagonismo e projetos diferentes no interior de uma mesma sociedade” (VIANA, 2007, p. 29).
O ser consciente deve buscar mecanismos intelectuais capazes de apreender, analisar e compreender a realidade social. Porém, devido aos interesses de classe da burguesia sua consciência possui limites intransponíveis, ela não avança para além das fronteiras do capital visto que isso representaria sua abolição enquanto classe. Já o proletariado se vê coagido, devido à exploração na qual ele está submetido na sociedade capitalista, a compreender corretamente a realidade social desenvolvendo a partir da luta sua consciência de classe de forma dialética: afirmando-se como proletariado e ao mesmo tempo negando-se como proletariado.
Nesse sentido é que Marx e Engels, buscando expressar teoricamente os interesses do proletariado, afirmarão que a consciência nada mais é que o ser consciente e tal ser se constitui na práxis, uma vez que essa expressa a liberdade humana. Dessa forma, o ser humano afirma sua liberdade produzindo sua vida de forma autônoma e ao realizar sua potencialidade especificamente humana, o ser humano abole a oposição entre necessidade e liberdade e instaura sua unidade. Portanto, a liberdade é uma necessidade e a necessidade de liberdade tornando-se consciente é um sinal de liberdade (Ibid, 2007a, p. 32).

O Modo de Produção Capitalista 

A principal distinção que podemos observar entre a concepção materialista da sociedade (capitalista) e as demais concepções ideológicas e metafísicas é que a primeira compreende a sociedade como uma totalidade formada por diversas partes na qual uma delas exerce determinação fundamental sobre o todo.
De acordo com o materialismo histórico dialético, a totalidade é o que abarca o todo e esse é a sociedade, porém a sociedade é formada por diversas partes que, necessariamente, estão ligadas umas às outras exercendo múltiplas determinações sobre elas, mas uma dessas exerce uma determinação fundamental, sobre as demais, ou seja, sobre o todo (a sociedade) 2. Em todas as sociedades o modo de produção é a determinação fundamental visto que os seres humanos são, para continuarem a existir, coagidos a produzirem e reproduzirem suas condições materiais de existência.
Percebe-se, então, que o modo de produção condiciona as demais esferas da vida social uma vez que exerce uma determinação fundamental. No entanto, resta explicitar o que é o modo de produção e qual é a especificidade do modo de produção capitalista para, a partir daí, compreendermos a concepção materialista de Karl Marx.
Não há nos escritos de Marx nenhuma referência pormenorizada sobre o modo de produção nem tão pouco ao que ele denominava de superestrutura. O segundo termo aparece pouquíssimas vezes em suas obras e isso acabou por facilitar diversas interpretações e deformações do materialismo histórico dialético. Vale ressaltar que, o termo superestrutura não é um conceito (como modo de produção) e sim uma expressão metafórica, como observou Althusser. Segundo esse autor, este termo tem apenas a função de ilustrar o pensamento de Marx a respeito da relação entre modo de produção e formas jurídicas, políticas, ideológicas, ou seja, as formas de regularização das relações sociais, através da metáfora do edifício social, que possui “base” e uma “superestrutura”, sendo que esta só se sustenta graças àquela (Viana, 2007, p. 38).
Para que esse termo e sua utilização, que preferimos descartar e adotar o termo “formas de regularização das relações sociais” 3, não continue gerando mal-entendidos procuraremos esclarecê-lo à luz da produção teórica de Marx e de outros marxistas que procuraram facilitar essa compreensão.
Após a produção da obra A Ideologia Alemã (1847), Marx desenvolveu diversos escritos que formariam a base do método materialismo histórico-dialético. Um desses textos consiste no Prefácio à Crítica da Economia Política no qual apresenta uma espécie de resumo do materialismo histórico e que, segundo Marx, serviu de “fio condutor” para suas pesquisas. Karl Korsch, em sua obra Marxismo e Filosofia (2008), lembra que o próprio Marx costumava enfatizar que não se deve procurar nessas frases, tal como se apresentam, mais que “um fio condutor” para o estudo dos dados empíricos (isto é, históricos) da vida social do homem; posteriormente, Marx 2 O materialismo histórico dialético recebe várias abordagens, sobre perspectivas diferentes. Sobre o conceito de totalidade pode-se consultar as contribuições de Karl Marx, Karl Korsch, Lukács, Kosik etc. Sobre o conceito determinação fundamental, o mesmo foi desenvolvido por Hegel e em Marx aparece como essência.
3 Sobre as “formas de regularização das relações sociais” ver: VIANA, Nildo. Para uma teoria das formas de regularização das relações sociais. In: VIANA, Nildo. A consciência da história – Ensaios sobre o materialismo histórico-dialético. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.
manifestou-se mais de uma vez contra os que nelas procuraram ver algo mais que aquele “fio condutor” (2008, p. 135).
Vejamos, então, o que o próprio Marx dizia no prefácio:
A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social da existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social. A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração material – que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa – das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência desse conflito, levando-o às suas últimas conseqüências. Assim como não se julga um indivíduo pela idéia que ele tem de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção (...) (1977, p. 23-24).
Essas palavras mostram de forma resumida, mas com toda clareza e precisão, os principais elementos formadores do quadro geral daquilo que Marx, juntamente com Engels, convencionou denominar de “concepção materialista da história e da sociedade”. No entanto, para um leitor que não conhece a profundidade e complexidade da obra de Karl Marx não é fácil e, talvez, nem possível, compreender a importância teórico-metodológica dessas palavras, pois “não há nelas nenhuma advertência para evitar os mal-entendidos que, por seu conteúdo e sua forma, elas podem em alguma medida favorecer. Tais cuidados seriam supérfluos, dada a finalidade imediata dessas breves indicações” (Korsch, 2008, p. 134). Concordamos com Korsch quando diz que Marx só possuía uma forma de convencer seus leitores da eficácia do seu método, ou seja, aplicando-o à determinado
domínio da sua pesquisa: a “economia política”. Conforme disse Friedrich Engels, em contexto diferente, ao citar um provérbio inglês: “a prova do pudim está em comê-lo, ou seja, só a experiência comprova” (Apud Korsch, 2008, p. 146).
Apresentado esse resumo geral do materialismo histórico, tentaremos esclarecer alguns dos principais conceitos contidos nele, porém, devido aos limites desse artigo, faremos isso de forma bastante sintética.
Os modos de produção, tanto pré-capitalistas quanto capitalistas, são constituídos pelas forças produtivas (força de trabalho, meios de produção e meios de distribuição) e pelas relações de produção que consistem nas relações estabelecidas entre os indivíduos no trabalho de produção e distribuição dos bens produzidos. No entanto, se tratam de forças produtivas e relações de produção determinadas em um contexto social determinado.
Para os interesses desse texto, resumiremos nossa análise ao contexto das forças produtivas e das relações de produção, tão somente, na sociedade capitalista produtora de mercadorias. Porém, tal escolha não deve levar a uma interpretação limitada que acredita que o materialismo histórico dialético e a teoria marxista só se aplicam à compreensão da sociedade capitalista, pois em diversos aspectos tal método e tal teoria podem ser utilizados na compreensão, também, de relações sociais existentes em sociedades pré-capitalistas.
As relações de produção na sociedade capitalista são marcadas por duas características centrais que consistem no fato do proletariado trabalhar sobre o controle da burguesia (trabalho heterogerido) que comprou sua força de trabalho e o fato do produto do trabalho ser apropriado pela burguesia, via extração de mais-valor. Percebe-se então que o trabalho é processo de valorização (MARX, 1988).
No processo de produção de mercadorias o capitalista utiliza força de trabalho e meios de produção, porém somente a força de trabalho pode acrescentar valor à mercadoria, pois os meios de produção apenas repassam o seu valor às mercadorias. O valor adicionado à mercadoria pela força de trabalho é superior ao valor gasto pelo capitalista na compra de tal força e é desta forma que se apropria do mais-valor gerado pelo proletariado.
O fundamento da luta de classes no capitalismo, conforme já dizia Marx, está na disputa pelo controle do tempo de trabalho, pois, se, de um lado a burguesia visa ampliar a extração de mais-valor sobre o tempo de trabalho do proletariado, este visa diminuí-lo e, devido aos interesses antagônicos dessas classes, o processo de
valorização acaba por ser marcado pelo conflito. Por conta do caráter alienado do trabalho, o proletariado desenvolve várias formas de resistência na produção que vão desde as mais “passivas” (absenteísmo, operação tartaruga, tempo morto etc.) às mais radicais (greve geral, ocupação da fábrica, autogestão da produção etc.). Nesse sentido é que se pode compreender a necessidade que a burguesia tem de controlar, de forma cada vez mais minuciosa, o tempo de trabalho no processo de produção.
A acumulação capitalista é realizada através de uma relação entre classes (burguesia e proletariado) e essa relação é fundamentalmente marcada pelo conflito entre as mesmas. A burguesia devido aos seus interesses de classe deve, necessariamente, desenvolver formas cada vez mais eficazes para a extração de mais-valor, ou seja, para a exploração do trabalho. Por outro lado, o proletariado se vê coagido a lutar contra o capital por ser quem ele é nessa sociedade4. Nesse processo de luta de classes o proletariado acaba por criar dificuldades para a acumulação de capital e em determinados momentos sua luta radicaliza apontando para a superação da sociedade capitalista.
Por mais que a ideologia burguesa e de suas classes auxiliares tente desacreditar essa possibilidade histórica, não há como negar essa tendência da luta de classes. Tanto assim que a burguesia e o estado, principal forma de regularização das relações sociais e que possui um caráter conservador, estão sempre procurando meios de atenuar os efeitos das crises que ameaçam a continuidade do processo de produção do capital em escala ampliada.
Dessa forma, podemos perceber que a luta de classes se apresenta como fruto da contradição entre classes antagônicas (produtores e apropriadores), revela a contradição/determinação fundamental mencionada por Marx no Prefácio à Crítica da Economia Política e demonstra como se manifesta a dinâmica histórica da sociedade de classes.

Bibliografia consultada:

FONTANA, Josep. Marx e o materialismo histórico dialético. IN: FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
4 O ser do proletariado, como já dizia Marx, é essencialmente aquele que quanto mais eficaz torna seu trabalho, quanto mais riqueza é capaz de produzir mais miserável se encontra e, por conta disso, se vê obrigado a desenvolver formas de lutas que se afirmem na busca pela destruição do capitalismo (MARX, 2004).
KORSCH, Karl. Marxismo e filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1986.
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1977.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia Alemã. São Paulo: Centauro, 1984.
____. A ideologia alemã – Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes poetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo, 2007.
MARX, Karl. O Capital, vol. 1, livro 1. São Paulo: Nova cultural, 1988.
VIANA, Nildo. Introdução à sociologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
____. A consciência da História – ensaios sobre o materialismo histórico-dialético. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007a.
____. Escritos metodológicos de Marx. Goiânia: Alternativa, 2007b.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

IV SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS SOCIAIS - CIÊNCIAS SOCIAIS E DEMOCRACIA HOJE


IV SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEMOCRACIA E CIÊNCIAS SOCIAIS HOJE
11 A 14 DE NOVEMBRO DE 2015

GRUPO DE TRABALHO - MOVIMENTOS SOCIAIS, ESTADO E DEMOCRACIA

Proponentes: Dr. Cleito Pereira dos Santos/UFG
                            Me. Lisandro Braga/UFMS

Ementa: Este GT aceita trabalhos que tenham como foco as pesquisas e debates acerca dos movimentos sociais no contexto da sociedade contemporânea; a relação entre estado e movimentos sociais; os modos de regularização social e de controle estatal; os conflitos sociais e os movimentos sociais; as discussões sobre a democracia; o estado e as relações com os diferentes movimentos sociais contemporâneos. É objetivo, também, discutir as transformações dos movimentos sociais, o papel das redes sociais e internet na articulação de novas formas de mobilizações, manifestações, protestos e conflitos sociais.

PRAZO para envio de trabalhos: 30 de agosto de 2015.

Maiores informações no site: https://sicsufg.wordpress.com/

domingo, 2 de agosto de 2015

Origens e Princípios do Comunismo de Conselhos


Lucas Maia - Professor no Instituto Federal de Goiás e Militante Autogestionário

Resumo: O comunismo de Conselhos foi uma perspectiva teórica e política que se desenvolveu a partir da movimentação operária ocorrida na Europa (Rússia, Alemanha, Holanda, Itália etc.) nas duas primeiras décadas do século 20. Este texto busca demonstrar com a maior clareza possível como se desenvolveu esta corrente. Nosso pressuposto é de que as idéias não se desenvolvem por si mesmas, independentemente das relações sociais concretas. Assim, demonstramos na primeira parte como o Comunismo de Conselhos se desenvolve a partir das lutas operárias ocorridas no início do século 20. Em seguida, demonstramos como esta tendência difere radicalmente do bolchevismo, da social-democracia (comunismo de partido) e do sindicalismo. O Comunismo de Conselhos caracterizou-as como burocráticas. Por último apresentamos o que consideramos ser a essência do Comunismo conselhista, seus principais princípios.

 Palavras-chave: Conselhos Operários; Crítica da Burocracia; Comunismo de Conselhos.

Abstract: Council communism was a political and theoretical perspective that has developed from the working class movement that occurred in Europe (Russia, Germany, Holland, Italy etc..) In the first two decades of the 20th century. This text seeks to demonstrate as clearly as possible how it developed this current. Our assumption is that ideas do not develop by themselves, regardless of the actual social relations. Thus, we demonstrate the first part as council communism grows out of workers' struggles that occurred in the early 20th century. Next, we demonstrate that this trend differs radically from the Bolsheviks, the Social Democracy (Communist Party) and unionism. Communism Councils characterized them as bureaucratic. Finally we present what we consider to be the essence of the Community Council, its main principles.
Keywords: Workers Councils; Critique of bureaucracy; Communism Councils.

 Introdução 

Este texto visa apresentar os aspectos fundamentais do que ficou conhecido como Comunismo de Conselhos. Tal corrente foi bastante marginalizada ao longo da história do século 20. Isto não é nenhuma novidade. A história dominante sempre foi a história da classe dominante. Aqueles que vencem as batalhas históricas contam-nas à sua maneira, destacando os acontecimentos, indivíduos, idéias que lhes são mais adequados. Na maioria das vezes, estes acontecimentos nem são os mais importantes ou quando o são, são distorcidos; os indivíduos são personificados; as idéias são deturpadas ou mesmo esquecidas. O Comunismo de Conselhos é uma expressão clara deste processo. Seus principais autores: Pannekoek, Korsch, Rühle, Gorter, Canne-Mejer, Mattick etc. são ilustres desconhecidos. Mesmo produzindo obras fundamentais, idéias seminais, não passam de alguns nomes (exóticos) estampados na lista de autores marxistas. Por que se deu desta maneira? O que é o Comunismo de Conselhos? Como se formou? Quais suas principais teses ou idéias fundamentais? Responder estes questionamentos é o desafio que temos à frente. 

A origem do Comunismo de Conselhos

 A história do comunismo de conselhos é a própria história do movimento operário. Trata-se de uma vinculação orgânica entre luta revolucionária do proletariado e produção teórica revolucionária expressando os interesses do proletariado. O que quero dizer com isto é que a produção das idéias não é desvinculada da prática social dos indivíduos que as produzem (MARX & ENGELS, 2002a). Assim, o desenvolvimento das idéias é um processo complexo efetivado pelos indivíduos na apreensão, compreensão e explicação da vida concreta. Numa sociedade fracionada em classes sociais, tal como a que vivemos, a produção de explicações sobre a realidade varia de indivíduo para indivíduo, de grupo social para grupo social, e principalmente, de classe social para classe social. Conscientemente ou não, as teorias, ideologias sobre o mundo são a perspectiva de uma ou outra classe social. Na sociedade  capitalista temos três classes de grande expressão social e também no que se refere à produção de idéias: a burguesia e o proletariado, que são as classes fundamentais do capitalismo, e a burocracia, que é uma classe auxiliar da burguesia . De maneira esquemática, podemos dizer que um indivíduo ou grupo de indivíduos produz suas teorias ou ideologias sobre o mundo tendo como referência ou perspectiva uma ou outra destas classes sociais. A burguesia e a burocracia, e demais classes que se aliam a elas (intelectualidade, por exemplo), visam manter o mundo como ele é, manter as relações sociais de produção e reprodução da vida como elas são. Pelo contrário, o proletariado e todas as classes que podem se aglutinar a ele (campesinato, lupemproletariado e demais classes oprimidas) tem o interesse em expor a verdade sobre suas condições de vida. Assim, para se chegar a uma compreensão verdadeira da realidade, deve-se partir da perspectiva do proletariado, ou seja, deve-se expressar os interesses desta classe. Acreditamos ser o marxismo e o comunismo de conselhos (uma continuação e aprofundamento do marxismo original de Marx e Engels) uma das teorias que melhor expressa os interesses de classe do proletariado. O comunismo de conselhos é, portanto, um aprofundamento do marxismo, ou melhor, é a atualização do marxismo às condições da luta operária do início do século 20. Marx e Engels desenvolveram suas teses em meados do século 19 e expressaram de maneira aprofundada a lógica da luta de classes do período. Quando desenvolveram suas teses, existia dentro dos círculos revolucionários um conjunto de grupos e tendências que criticavam a sociedade capitalista e se afirmavam como socialistas, mas não viam no movimento operário algo importante para a constituição da sociedade futura. Marx elaborou durante toda a sua vida um trabalho de crítica severa às concepções que não viam no movimento operário a tendência de destruição da sociedade capitalista e afirmação da futura sociedade, a sociedade autogerida. O produto desta crítica foi a constituição do materialismo histórico-dialético, ou seja, uma teoria e um método de análise da sociedade. Fique bem claro que a perspectiva da qual Marx partiu para elaborar sua teoria e seu método foi a do proletariado. Mas Marx viveu num período de grandes lutas operárias. A revolução de 1848 e a Comuna de Paris de 1871 são as expressões mais radicais destas lutas. O que Marx visava com sua teoria era expressar a dinâmica destas lutas e explicá-las para que o movimento se nutrisse delas e se tornasse assim mais radical, mais revolucionário. A Comuna de Paris foi a última experiência revolucionária do proletariado durante o século 19. Deste período até as ondas revolucionárias do início do século 20, o movimento operário vivenciou um retrocesso, uma calmaria de expressão da luta revolucionária. Se o movimento operário, em sua prática social é conservador, a tendência (veja que estou dizendo tendência e não a totalidade) é que o conjunto de autores, grupos sociais, organizações que se vinculam ao proletariado também recuem em sua crítica. Foi justamente isto o que aconteceu. O marxismo revolucionário elaborado por Marx foi ao longo das últimas décadas do século 19 sendo deformado. Os primeiros sinais desta deformação foram criticados pelo próprio Marx, quando ele escreveu A Crítica ao Programa de Gotha (1875). O Programa de Gotha foi o programa elaborado quando da fundação do Partido social-democrata Alemão. Nesta ocasião, reuniram-se na cidade de Gotha (Alemanha) alguns “marxistas” e alguns “lassalistas” e criaram o programa deste partido. Marx refuta ponto por ponto o programa, afirmando, em linhas gerais, que as reivindicações ali existentes não eram reivindicações revolucionárias, sendo que várias delas já eram práticas correntes em alguns países europeus da época. Não vamos aqui analisar tal programa, mas queremos ressaltar que no momento em que a luta operária recuou enquanto luta revolucionária, as condições para a deformação da teoria revolucionária foram dadas. E foi o que aconteceu. A criação da SocialDemocracia é a prova cabal deste processo. De maneira caricatural, podemos dizer que a social-democracia se caracteriza pela tentativa de conquistar o poder estatal e demais instituições burocráticas da sociedade (tal como os sindicatos) via processo eleitoral. A grande tese da social-democracia é a de se chegar à sociedade socialista efetuando reformas com a intenção de melhorar as condições de vida da classe trabalhadora. A revolução é abandonada. É substituída pelas reformas feitas pelo estado via parlamento. Daí deriva sua estratégia política: colocar cada vez mais representantes do partido dentro dos quadros do estado. O problema é que para se chegar ao poder de estado, respeitando a legislação burguesa, é necessário fazer-se muitos acordos e ao chegar-se ao poder, o máximo que se pode fazer é reproduzir as relações que colocaram os membros do partido no poder de estado. O partido social-democrata torna-se a grande “organização” dos trabalhadores, chegando a ter mais de um milhão de filiados na Alemanha. O partido começa a conquistar algumas municipalidades nos países onde não é clandestino, começa a ter representantes dentro do parlamento, enfim, passa a ser a legítima “organização” dos trabalhadores e na maioria dos países, reconhecida pelo estado. Em linhas gerais, a social-democracia é a expressão mais genuína da burocratização e recuo da luta operária. O conjunto de autores e instituições que se desenvolveram no seio dela é algo gigantesco. A social-democracia, principalmente a alemã, tinha em seu poder um conjunto de associações, de sindicatos, clubes, escolas, imprensa etc. o que a tornava uma poderosa e robusta instituição. Este fato levou Anton Pannekoek, um dos principais autores ligados ao comunismo de conselhos, a denominar o partido socialdemocrata de “parlamento do trabalho”, ou seja, um estado à parte dos trabalhadores, mas que diz representá- lo. Obedece à legislação burguesa, tem nos processos eleitorais sua principal meta e estratégia etc. Enfim, tudo aquilo que caracteriza o parlamento burguês. Para colocar em funcionamento toda esta estrutura era necessário um conjunto de funcionários, os quais se tornavam uma classe independente do proletariado. Tal classe já havia sido identificada no final do século 19 e primeiros anos do século 20 por Jam Waclav Makhaïski. Ele denominava-a de Inteligentsia. Hoje, podemos com muito mais precisão terminológica, denominá-la burocracia partidária. O que Marx viu em 1875, quando da fundação do partido, foi somente o gérmen, o embrião de uma classe que viria a se tornar uma das grandes inimigas do movimento operário revolucionário, a burocracia partidária (não importa se esta burocracia é de esquerda, de direita ou de centro; se é comunista, trabalhista ou qualquer outro nome que se queria dar. Independente do nome, o que importa analisar é a prática social que esta classe efetiva no seio da sociedade capitalista. E esta prática é burguesa e burocrática). A grande preocupação dos dirigentes do partido passa a ser eleições, colocar quadros do partido dentro do parlamento, conquistar o poder de municipalidades, enfim, colocar membros do partido dentro dos quadros do estado via processo eleitoral. Esta passa a ser a grande estratégia e prática política do partido social democrata. No seio do partido, alguns militantes começam a questionar tal prática e estratégia. Formam-se três tendências: a) o revisionismo; b) o centro; c) e a esquerda. O revisionismo era representado por Berstein e este defendia expressamente que o movimento operário deveria abandonar o ideal revolucionário e depositar todas as suas esperanças na ação parlamentar de seus representantes. O centro, representado por Kautsky, defendia ainda o que ficou conhecido como marxismo “ortodoxo”, ou seja, Kautsky e seus discípulos defendiam uma idéia abstrata de revolução, mas em sua prática política, almejavam mesmo era o crescimento do partido, era a conquista de cadeiras no estado etc. Por fim, a esquerda do partido apoiava a ação espontânea das massas, defendia a transformação social como produto de um processo revolucionário etc. A esquerda do partido era uma oposição dura às demais tendências. Nesta esquerda, vários autores se coadunavam, principalmente na Alemanha e Holanda. Militantes do partido como Gorter, Pannekoek, Rühle, Rosa Luxemburgo, Leo Jogiches, Paul Levy etc. compõem esta fileira. Vários deles é que vão dar origem ao que ficou conhecido como comunismo de conselhos. Este conjunto de autores fez uma dura crítica às práticas e proposições ideológicas do partido social-democrata. Entretanto, havia um esforço muito grande entre eles para não permitir que o partido “rachasse” ou fragmentasse, pois havia o entendimento de que o partido socialdemocrata era o movimento operário. Tal engano se desfez completamente quando em 1914, os dirigentes do partido que compunham o parlamento alemão votaram a favor dos créditos de 107 guerra. Isto significava que o partido estava aprovando os gastos do estado alemão com a primeira guerra mundial, uma guerra caracteristicamente imperialista. Isto implicou num racha definitivo dentro do partido. As discordâncias teóricas e estratégicas entre o revisionismo e o centro de um lado e a esquerda do partido de outro, chegaram a extremos neste período. Assim, o conjunto de militantes ligados à esquerda do partido saiu em massa. Entretanto, somente as discordâncias teóricas e estratégicas entre os militantes do partido social-democrata são insuficientes para explicar a origem do comunismo de conselhos. Isto é fácil de verificar. Saíram do partido socialdemocrata alemão em 1914, mas só se constituiu o comunismo de conselhos em meados da década de 1920. Por quê? Vimos que a esquerda do partido tinha severas críticas às concepções do partido social-democrata. Criticavam seu “marxismo”, o qual julgavam mecanicista e positivista; criticavam as estratégias do partido, as quais consideravam conservadoras, visto que não almejavam e não desejavam o processo revolucionário; e por último, criticavam a prática do partido, que era deliberadamente burguesa e reacionária. Enfim, ideologia, estratégia e prática do partido eram uma totalidade única, indissolúvel. Esta crítica foi importante, mas a determinação fundamental, o elemento central é sem sombra de dúvidas a reemergência do movimento operário revolucionário. Como dissemos no início, as idéias não pairam independentes do mundo concreto, elas são uma totalidade com este mundo. Assim, se durante as últimas décadas do século 19 e a primeira do século 20, o movimento operário viveu um grande retrocesso, sendo a expressão política deste período a social-democracia, durante a re-emergência da luta, no período das revoluções russa, húngara, alemã, italiana etc., o comunismo de conselhos foi seu produto verdadeiro. Assim, a formação dos conselhos operários, como a nova forma de organização dos trabalhadores, é o elemento fundamental no surgimento do comunismo de conselhos. Durante todo o século 19, o capitalismo vivenciou um período conhecido como regime de acumulação extensivo, ou como é mais conhecido, “capitalismo livreconcorrencial”. Somente no final deste século, é que este regime de acumulação encontra dificuldades crescentes em se reproduzir. O início do século 20 vivencia um novo regime de acumulação, o intensivo, também chamado de “capitalismo monopolista”. Este regime já apresenta graves problemas nas duas primeiras décadas do século 20. A primeira Guerra Mundial e as várias tentativas de revolução na Europa bem o demonstram. Mas o que é importante no entendimento do Comunismo de Conselhos é a compreensão da dinâmica da luta operária. Em 1905, na Rússia, surgiu uma nova forma de luta, de organização dos trabalhadores. Uma forma que foi esboçada durante a Comuna de Paris de 1871, mas que foi pouco desenvolvida, a forma conselho. Tendo sido esboçados na Comuna de Paris e desenvolvidos de maneira generalizada na revolução Russa de 1905, os conselhos operários se apresentaram como a nova forma da luta operária. As novas revoluções são as criadoras e o produto de uma nova forma de luta, os conselhos operários. A revolução russa de 1917, em sua primeira fase, teve nestas organizações, os sovietes, seu aspecto fundamental. Se na revolução de 1905, esta forma de luta ficou restrita a algumas cidades, durante a revolução de 1917, elas se generalizaram por todo o território russo. Mas não ficaram restritas a este país. Na revolução alemã de 1918 a 1921, os conselhos de operários e soldados foram o fulcro essencial. Também na Itália, durante a rebelião de 1919 em Turim e demais cidades industriais, os conselhos foram a forma de luta criada pelos trabalhadores . A luta dos trabalhadores para criar organizações permanentes e reconhecidas durante o século 19 foi uma dura batalha. Neste processo, duas formas distintas e complementares de organização se formaram: os partidos e os sindicatos. Durante as lutas do início do século 20, uma nova forma foi desenvolvida, os conselhos operários. Como afirma Pannekoek (1977), os sindicatos revolucionários são o produto do período histórico do pequeno capital, onde os oligopólios ainda não haviam se formado, onde o estado ainda não regularizava a organização sindical etc. Com o desenvolvimento do grande capital, os sindicatos perderam toda sua autonomia e se tornaram organizações para o capital. Os trabalhadores não tinham já mais controle sobre as organizações que haviam criado no século passado. E os partidos políticos? Processo semelhante. A única diferença é que os partidos já se formam não como organização de trabalhadores, mas como organizações de burocratas independentes dos trabalhadores. O caso do partido social-democrata, como demonstramos linhas atrás, ilustra bem este processo. Resumidamente, temos que: a) a determinação fundamental para o surgimento do comunismo de conselhos foi naturalmente o surgimento dos conselhos operários como forma de organização e luta concreta dos trabalhadores; b) compõe este processo a crítica à ideologia, estratégia e prática política dos partidos social-democrata e bolchevique, bem como dos sindicatos. Enfim, a elaboração de uma crítica às burocracias partidárias e sindicais; c) um outro aspecto é o desenvolvimento do marxismo original. Os comunistas conselhistas eram autores vinculados ao marxismo, ou seja, tinham no materialismo histórico-dialético sua perspectiva teórica de análise da realidade. Sua elaboração teórica significou a adequação e aprofundamento do marxismo às condições da luta operária das primeiras décadas do século 20. Vejamos agora, a posição do comunismo de conselhos diante das demais tendências que defendiam os partidos políticos e os sindicatos como formas de luta e emancipação dos trabalhadores.

 Comunismo de partido, de sindicato ou comunismo de conselhos? A crítica da burocracia 

Os conselhos operários expressaram aquilo que ficou conhecido como “o novo movimento operário”. A forma partido e a forma sindicato dominaram a 109 história do movimento operário durante grande parte do século 19 e também, por que não dizer, durante todo o século 20. Entretanto, tornaram-se formas de dominação do proletariado. Tanto isto é verdade, que toda vez que há a ascensão da luta operária e formam-se os conselhos operários são quase sempre em oposição aos partidos e aos sindicatos, que não os desejam. A constituição dos conselhos operários como forma e conteúdo da luta operária expressa uma nova maneira de ação concreta dos trabalhadores. Os partidos políticos ditos representantes dos trabalhadores, nesta época (início do século 20), destacam-se o partido social-democrata, do qual o partido alemão era mais expressivo, e os partidos comunistas (PC), do qual o PC russo, após a tomada do poder pelos bolcheviques em outubro de 1918, era o mais poderoso . Da mesma forma os sindicatos. Surgiram como organizações de trabalhadores durante as lutas operárias do século 19. À medida que o grande capital foi se constituindo em oligopólios, tornando-se cada vez mais poderoso e burocrático, à medida que o estado capitalista foi regularizando a situação dos sindicatos, dando-lhes legalidade e por conseqüência uma legislação própria que os regulasse, impondo-lhe limites de ação etc., esta organização de trabalhadores torna-se cada vez mais afastada dos trabalhadores. Cria-se uma poderosa burocracia sindical, que embora fale em nome dos trabalhadores, não são mais trabalhadores nem muito menos representam os interesses de classe do proletariado. Os partidos políticos e os sindicatos significam o fortalecimento no seio da sociedade capitalista de uma classe social antagônica ao proletariado: a burocracia partidária e sindical. O modo de produção capitalista é constituído por duas classes fundamentais, a burguesia e o proletariado. Entretanto, estas não são as únicas, existe um conjunto de outras classes que pela posição na produção, modo de vida, rendimentos, valores, etc. se aproximam ora da burguesia, ora do proletariado. A burocracia é uma destas. Entrementes, a burocracia é uma classe fracionada, tendo em seu interior aqueles estratos com maior e menor rendimentos (Viana, 2008a). Via de regra, os estratos da burocracia com maiores rendimentos (altos burocratas do estado, magistrados, executivos de grandes empresas etc.) apresentam modo de vida, valores e mentalidade que se aproximam da burguesia; pelo contrário, os estratos com menores rendimentos, devido a seu modo de vida, valores e mentalidade tendem a se aproximar do proletariado. São geralmente estes estratos que compõem os representantes sindicais e partidários da classe trabalhadora. A grande questão é que a burocracia como classe distinta tanto da burguesia como do proletariado tem interesses particulares de classe. No final das contas, dentro da sociedade capitalista, a burocracia é sempre uma classe auxiliar da burguesia, tanto em seus estratos superiores quanto inferiores. Os sindicatos e os partidos autodenominados operários não são outra coisa senão uma expressão dos interesses de classe da burocracia. Ao fortalecer-se esta fração da burocracia (sindical e partidária), fortalece-se na mesma medida as relações de produção capitalistas. Um dos grandes méritos do comunismo de conselhos foi identificar o caráter essencialmente contra-revolucionário dos partidos e dos sindicatos. Todo o discurso “revolucionário” que dominava no seio da classe operária no início do século 20 tinha na questão parlamentar, ou seja, conquista do poder de estado, e na questão sindical, ou seja, melhoria das condições de vida do trabalhador dentro da sociedade capitalista, todo seu sustentáculo ideológico e guias de ação política. A ação prática dos trabalhadores, criando seus conselhos de operários e soldados e a produção teórica sobre esta prática, expressa principalmente pelos autores que ficaram conhecidos como comunistas conselhistas, são uma total oposição à burocracia e seus representantes ideológicos, os “comunistas” de partido e de sindicato. Uma relação fundamental das sociedades de classes se reproduz no interior dos partidos e sindicatos: a relação entre dirigentes e dirigidos. Toda organização burocrática é fundada nesta relação, fulcro do burocratismo. Nos conselhos operários, tal relação é abolida. Os conselhos se caracterizam, contrariamente aos sindicatos, que se organizam por categoria profissional, pela organização que tem no local de trabalho seu locus prioritário. Dentro de uma fábrica, por exemplo, os conselhos são formados por membros reconhecidamente eleitos das várias seções de que se compõe a fábrica. Estes delegados não têm função legislativa, mas tão somente executiva, ou seja, os conselhos põem em funcionamento as decisões que o conjunto dos trabalhadores da fábrica em questão decidiu em suas várias seções. Ou seja, os conselhos não são um poder sobre os trabalhadores, pelo contrário, são expressões do poder coletivo dos trabalhadores autoorganizados. Ao romper com a relação entre dirigentes e dirigidos, os conselhos eliminam os mediadores, os políticos profissionais, eliminam também a divisão entre luta econômica e luta política, divisão que tanto prejudicou a classe operária e favoreceu os partidos políticos. Vê-se, deste modo, que a constituição dos conselhos operários conforma uma unidade da classe trabalhadora. A implicação mais séria disto é a criação das condições para a constituição de uma sociedade radicalmente distinta, a sociedade autogerida. Diante do exposto, é fácil perceber que a acolhida dos partidos e dos sindicatos aos conselhos operários não é nada amigável. Também, a resposta dos intelectuais que representam os interesses das burocracias partidária e sindical não foi nada amistosa com relação aos intelectuais e militantes que defendiam e expressavam teoricamente os conselhos. Ilustrativo disto foi o texto que Lênin escreveu em 1921, intitulado: “O Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo”. O panfleto não é integralmente destinado contra estes autores, mas em grande medida aponta suas armas contra eles, principalmente Gorter, Pannekoek, Rhüle etc. Em que pese nesta data ainda não existisse a corrente intitulada comunismo de conselhos, que só veio a se consolidar mesmo em meados da década de 1920. Este conjunto de autores, devido ao panfleto de Lênin, ficou largamente conhecido como esquerdistas, expressão tida neste contexto como sendo pejorativa. A emergência dos conselhos operários representou então a constituição de uma nova concepção da teoria marxista e revolucionária. Os comunistas 111 conselhistas retomaram o pensamento original de Marx e o levaram às últimas conseqüências, analisando a ascensão da luta operária nas duas primeiras décadas do século 20. A crítica aos postulados da social democracia já havia sido feita mesmo dentro do partido . Com a revolução russa de 1917, o partido socialdemocrata russo, que era cindido em duas alas: a menchevique (que em russo significa minoria) e a bolchevique (maioria), forneceu as condições formais para a criação do partido comunista russo. A tendência bolchevique, quando eclodiu a vaga revolucionária, viu as condições sociais concretas para se estabelecerem como partido próprio, independente do partido social-democrata. Foi o que de fato ocorreu. O partido comunista russo ou os bolcheviques representou um grande avanço da classe burocrática. Como conseguiram dar um golpe de estado em outubro de 1917 na Rússia, conquistando assim todo o aparelho que constitui a instituição estatal, os bolcheviques demonstraram a que extremos pode chegar a burocracia gerindo uma economia capitalista. Ao contrário do que muitos dizem, jamais se configurou na Rússia qualquer forma de “socialismo” real ou imaginário. O que se constituiu ali foi tão-somente um capitalismo de estado, ou seja, um capitalismo cuja burguesia se confunde com a burocracia estatal. Se no capitalismo privado (Estados Unidos, Alemanha, França etc.) quem se apropria da maior parte da mais valia é a classe burguesa; no capitalismo de estado (antiga União Soviética, Cuba, China etc.) é a burocracia estatal. Assim, os autores que representam o comunismo de conselhos não pouparam críticas aos bolcheviques e à sua tão falada revolução russa. Os textos são inúmeros e autores como Pannekoek, Korsch, Rhüle, Gorter, Mattick etc. aparecem como destaques nesta dura crítica. Mas em que consiste precisamente o comunismo de conselhos? Quais são seus princípios fundamentais? Esta é a tarefa que temos à frente. Buscaremos efetivá-la no próximo tópico. 

Principais teses do comunismo de conselhos: princípios da Autogestão Social

Os conselhos operários não são uma forma acabada, são um princípio. O comunismo de conselhos é a expressão teórica do movimento operário em sua forma mais desenvolvida, os conselhos operários. Os trabalhadores, durante todo o século 20, sempre que se organizaram em direção à abolição do modo de produção capitalista, encontraram nos conselhos operários sua expressão mais radical e revolucionária. A perspectiva que melhor expressou e compreendeu o movimento operário revolucionário e as possibilidades de constituição da sociedade autogerida foi o comunismo de conselhos. Em que fundamentalmente consiste o comunismo de conselhos? Quais são seus aspectos centrais? Os comunistas conselhistas são um conjunto de autores marxistas, ou seja, que entende o materialismo históricodialético como um método adequado 112 para se analisar os fenômenos sociais e uma teoria correta da realidade social e histórica; são um conjunto de revolucionários que expressaram teoricamente o movimento revolucionário do século 20. Embora tivessem idéias que estavam dentro de seu tempo, pois a onda revolucionária que vivenciaram e expressaram foi uma das mais avançadas, conseguiram acompanhar a revolução que se desenvolvia à frente de seus olhos. Durante este processo, várias cisões e rupturas foram necessárias (capítulo 2) para que se colocassem como verdadeira expressão dos interesses revolucionários do proletariado em luta. Quando o proletariado deixa de ser, mesmo que temporariamente, classe em si, e passa a ser classe para si, não deve recuar nenhum centímetro sequer, pois não tem nada a perder. Também aqueles que julgam expressar teoricamente este movimento não devem fazer qualquer concessão, posto que senão, não conseguem compreender adequadamente o processo revolucionário. Deste modo, podemos delinear aqui, de modo bem rápido, os principais aspectos da perspectiva conselhista. a) Auto-emancipação dos trabalhadores Esta assertiva, vinda dos Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores redigidos por Marx, defende a idéia de que somente os trabalhadores podem libertar-se a si mesmos. Nenhuma outra classe o fará efetivamente. Esta é a tarefa dos explorados na sociedade capitalista. Enquanto precisarem de líderes, de dirigentes, de indivíduos e grupos sociais oriundos tanto da classe trabalhadora quanto de outras classes sociais, o movimento em direção à emancipação humana encontrará problemas em se realizar. Esta é uma questão ao mesmo tempo lógica e histórica. Do ponto de vista lógico, é necessário destacar que a grande tarefa da classe operária hoje é gerir suas próprias lutas, não colocá-la nas mãos de outras classes, como a burocracia partidária e sindical, por exemplo. Entretanto, será a tarefa de reorganizar a sociedade como um todo, o maior desafio da classe trabalhadora. Deste modo, se ela não consegue nem levar a cabo suas próprias lutas, muito menos será capaz de colocar a sociedade como um todo para funcionar sobre novas bases. Do ponto de vista histórico, temos visto que um dos maiores obstáculos para a disputa entre capital e trabalho ser resolvida positivamente em favor deste último, não é nem a polícia, nem o estado, nem os capitalistas, mas sim os ditos representantes da classe trabalhadora, os ditos partidos de esquerda e os sindicatos. Estas frações da classe burocrática, em vários momentos históricos da luta operária demonstraram quais são efetivamente seus interesses, ou seja, manter os privilégios de classe da burocracia. Esta, ao mesmo tempo que não é proprietária dos meios de produção, possui o monopólio da organização e gestão das lutas. Deixam os trabalhadores em estado de passividade, obediência e submissão, portanto reproduzem a lógica das sociedades de classes, ou seja, a divisão entre dirigentes e dirigidos. A história da social democracia e do bolchevismo é prova mais clara deste processo. Desta maneira, para tornarem-se livres, os trabalhadores devem antes de mais nada resolver sua situação com estas burocracias, ditas suas representantes. b) Ação direta Esta expressão usualmente vinculada à tradição anarquista também compõe o leque de princípios que norteiam a perspectiva conselhista. Entretanto, ação direta para o conselhismo não significa “propaganda pela ação”, como comumente os movimentos anarquistas compreendem. Não que toda tradição anarquista seja assim, mas a maneira como a expressão “ação direta” foi divulgada nos meios políticos adquiriu esta forma. Ou seja, na perspectiva conselhista, ação direta quer dizer luta direta dos trabalhadores contra os capitalistas e burocracias. Não é necessariamente a ação de grupos conselhistas, mas sim o movimento do proletariado, organizado em conselhos operários e, portanto, contrário à classe capitalista e todas as suas classes auxiliares. A ação direta é o processo de auto-organização dos trabalhadores no sentido de formarem os conselhos operários, expressão mais acabada da classe operária para si. Neste sentido, a ação direta é a afirmação dos interesses do proletariado em oposição à classe capitalista e às burocracias sindicais e partidárias. Esta ação manifesta-se nas “greves selvagens”, ou seja, ilegais, não desencadeadas pelos sindicatos, mas sim pela manifestação dos interesses e da comoção da classe trabalhadora, organizando ela própria seus assuntos. Este tipo de conduta dos trabalhadores sempre se afirma como uma negação das organizações burocráticas. Estas sempre buscam dirigir, controlar o movimento operário, as greves ilegais são um momento de negação prática destas organizações, pois fogem do seu controle. Os núcleos formados pela organização destas greves podem conduzir à formação de conselhos operários. c) Recusa e abolição de todas as organizações burocráticas (partidos, sindicatos, estado etc.) Uma organização burocrática é fundada na divisão entre dirigentes e dirigidos. Neste tipo de organização existem aqueles que detêm o poder de decisão e aqueles que somente executam. Os partidos políticos, os sindicatos, o estado, as fábricas etc. são todas organizações burocráticas. Esta divisão fundamental do processo de organização do trabalho e da vida como um todo é a marca geral da sociedade capitalista. Trata-se de um princípio que norteia a organização da vida nesta sociedade. Está introjetado na consciência dos indivíduos, é uma relação naturalizada e justificada pela ideologia. Entretanto, a separação entre decisão e execução do processo de trabalho serve para perpetuar a divisão de classes sociais existentes na sociedade. Esta divisão é na verdade o cerne das organizações burguesas, pois aqueles que detêm o poder de decisão compõem uma classe e aqueles que executam pertencem a outra classe. Qualquer perspectiva que se afirme revolucionária, ou seja, que almeja abolir as relações de classes e, portanto, as classes sociais, deve atentar-se para esta questão. É impossível chegar-se à liberdade reproduzindo a servidão, da mesma forma, não se pode abolir as classes sociais reproduzindo as relações de classe. É por isto que o movimento revolucionário dos trabalhadores deve abolir de imediato a divisão entre dirigentes e dirigidos. Na verdade ele só se constitui como revolucionário à medida que abole tal relação. É por esta razão que o conselhismo defende a abolição de toda e qualquer burocracia, seja das instituições burguesas propriamente ditas, seja das organizações que dizem representar os trabalhadores. Historicamente, esta possibilidade tem se afirmado quando os trabalhadores constroem suas próprias organizações e instituições e estas são os conselhos operários. d) Defesa dos conselhos operários como órgãos de luta e gestão da sociedade futura Os conselhos operários são as instituições criadas pelos trabalhadores no sentido de constituir a autoorganização de suas lutas. Formam-se na ação direta, na recusa das burocracias e são a maneira prática criada pelos trabalhadores para sua auto-emancipação. Evidentemente que estas organizações não surgem de idéias mirabolantes dos reformadores sociais, são na realidade o produto de um longo processo de lutas e de auto-educação dos trabalhadores. Se a eles cabe a tarefa de se libertarem do jugo de seus exploradores, naturalmente que também a eles cabe a maneira de realizar esta tarefa. Durante todo o século 20, a experiência revolucionária do proletariado sempre se colocou como um antagonismo inconciliável com todas as classes exploradoras e parasitárias de nossa sociedade. O processo de lutas sociais é permeado de contradições, de avanços e recuos. A emergência de uma consciência revolucionária depende da constituição de um momento revolucionário, mas este só se consolida quando a consciência avançou a um nível revolucionário. De acordo com Jensen (2001), a luta operária passa por três fases: 1) Lutas espontâneas. Presente na quebra e roubo de utensílios, absenteísmo, sabotagem etc., ou seja, é uma recusa do capital, mas que não se manifesta numa forma discursiva. É uma recusa prática, mas que não aponta caminhos para se superar as relações estabelecidas. 2) Lutas autônomas. Já há a criação de uma discursividade, os trabalhadores estão organizados coletivamente, já superaram suas burocracias partidárias e sindicais, mas ainda não desenvolveram uma consciência revolucionária, ou seja, a luta autônoma basta a si mesma. Se o que importa é moradia, lutemos por moradia, se o que importa é terra, lutemos por terra, se o que importa é salário, lutemos por salário etc. Neste nível, as lutas, embora já tenham se tornado autônomas, ainda não constituíram uma consciência revolucionária. 3) Lutas autogestionárias. Neste nível, além da recusa do capital e da burocracia, há a afirmação da autogestão social, enquanto as formas anteriores se desenvolvem até o nível da negação, nas lutas autogestionárias já é perceptível a afirmação de uma nova sociedade fundada em outras bases. Em outras palavras, não há momento revolucionário que não seja produto de uma consciência revolucionária e da mesma forma, não há consciência revolucionária que não seja construída numa prática revolucionária. Deste modo, a perspectiva conselhista concebe a ação revolucionária no sentido da busca de autonomização da classe operária, portanto uma recusa do capital e da burocracia e ao mesmo tempo uma ação no sentido de construir uma nova sociedade, portanto da afirmação da autogestão social. Historicamente, a maneira de autonomização das lutas dos trabalhadores tem se dado através da criação de organizações as quais eles próprios controlam, os conselhos operários. A autogestão das lutas é pré-condição para a autogestão da sociedade futura. Somente em organismos criados e controlados pelos trabalhadores é que eles podem encaminhar de acordo com seus interesses e de acordo com suas necessidades as suas próprias lutas. Tais instituições devem abolir imediatamente a divisão dirigente/dirigido, deve ser um corpo unitário de luta. Esta unidade é garantida pela confluência de interesses de classe comum, ou seja, abolição do estado, do capitalista, da burocracia etc. e afirmação da associação livre de produtores, a autogestão das fábricas e da sociedade como um todo.

 Últimas palavras 

Para encerrar esta pequena introdução ao Comunismo de Conselhos, resta apontar um pouco de seu legado. Tal perspectiva, como já abordamos, foi marginalizada ao longo da história. A razão disto é que ela foi derrotada. Melhor dizendo, isto só prova que ela ainda é uma concepção que assusta as classes dominantes (de esquerda e de direita). Pelo fato de ser uma teoria revolucionária, o comunismo de conselhos só foi retomado, ao longo da história do século 20, em momentos de ascensão da luta revolucionária do proletariado. Não é à toa que as concepções bolcheviques, social-democratas etc. sejam vistas como os verdadeiros legados do marxismo. Quem já ouviu falar em Herman Gorter? Otho Rühle? Anton Pannekoek? Paul Mattick? Excetuando alguns excêntricos, mais ninguém. Quem já ouviu falar em Lênin, Trotsky, Stálin, Mao Tse-Tung? Kautsky, Berstein etc.? Estes são mais famosos e aparecem até nos livros didáticos de história e geografia aqui no Brasil. Por que isto se dá desta maneira? Estes últimos venceram a batalha das idéias, justamente por que conseguiram derrotar concretamente o proletariado. Mas de qualquer maneira, o comunismo de conselhos sempre retorna. É expulso pelas portas dos fundos, mas num rompante repentino irrompe novamente pelas portas da frente. Foi assim ao longo da história do século 20. Quando se formalizou, na segunda metade da década de 1920, o comunismo de conselhos era reconhecido por amplas camadas da sociedade. Quando o proletariado foi derrotado por toda a Europa: na Rússia pelos bolcheviques, na Alemanha pela social-democracia e pelo nazismo, na Itália pelo fascismo etc., também o comunismo de conselhos (expressão teórica do proletariado revolucionário) o foi. O Comunismo de conselhos só é forte e reconhecido, quando o movimento operário rompe concretamente com esta sociedade. Quando se constituem os conselhos operários, também o comunismo de conselhos, como expressão teórica e política dos trabalhadores, se fortalece e se revigora. 

 Referências bibliográficas 

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