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domingo, 27 de novembro de 2016

Repressão Brutal e Discurso Jornalístico no Massacre de Avellaneda, Grande Buenos Aires (26/06/2002)



Artigo publicado originalmente na Revista Movimentos Sociais - http://redelp.net/revistas/index.php/rms/issue/view/55

Lisandro Braga[1]

Resumo: O artigo discute a relação entre repressão estatal violenta e discurso jornalístico que criminaliza no Massacre de Avellaneda, buscando demonstrar a atuação do bloco dominante (burocracia, intelectualidade, burguesia comunicacional e outras) tanto através da repressão estatal, quanto das empresas capitalistas de comunicação (capital comunicacional) na construção de inimigos imaginários em torno do movimento de desempregados e de discursos que criminalizam suas lutas.

Palavras-chave: Movimento piqueteiro; bloco dominante; repressão estatal; discursos jornalísticos.

Resumen: El artículo analiza la relación entre la represión estatal violenta y el discurso periodístico que criminaliza en la Masacre de Avellaneda, buscando demostrar el accionar del bloco dominante (burocracia, intelectuales, burguesia comunicacional y otros) tanto a través de la represión estatal, como de las empresas capitalistas (capital comunicacional) en la construcción de enemigos imaginarios en torno al movimiento de desocupados y discursos que les criminalizan.

Palavras-clave: Movimiento Piquetero; Bloco dominante



Entre o dia 21 e 28 de dezembro de 2001, em um lapso de 08 dias após a renúncia de Fernando De la Rúa, a presidência da república argentina foi ocupada sucessivamente por três dirigentes do Partido Justicialista – Ramón Puerta, Adolfo Rodríguez Saa e Eduardo Camaño. A assembleia legislativa aprovou a nomeação de Eduardo Duhalde para conduzir o governo de transição, a partir de primeiro de janeiro de 2002. Sua principal medida política, tomada no dia 06 de janeiro, foi encerrar a convertibilidade[2]. Tal medida ocasionou uma desvalorização do peso de mais de 300% em pouquíssimos dias. Para as classes desprivilegiadas tal forma regularizadora expressou mais uma expropriação indireta de suas rendas e uma maior expansão do lumpemproletariado[3] na Argentina.

Desse modo, começou a tomar forma um novo modelo de acumulação que expressou mudanças nos preços relativos favoráveis à produção e exportação de bens. Esse modelo tem como marca de origem uma forte deterioração das condições de vida das classes subalternas expressadas nos mais elevados índices de pobreza, indigência e desemprego (lumpemproletarização - LB) da história argentina. Ao mesmo tempo se aprofundou o processo de concentração e centralização de capital que teve lugar no contexto de crises, porém manifestando mudanças nas relações de forças entre as frações da classe dominante (VARESI, 2012, p. 09-10).

A contestação social se fez presente desde os primeiros dias do governo interino de Eduardo Duhalde e tendeu a intensificar seus níveis de radicalidade, visto que as medidas regularizadoras estatais ampliavam o perverso estrangulamento social de uma gama imensa de classes e frações de classes desprivilegiadas que viviam à margem da divisão social do trabalho ou que foram lançadas a ela a partir das novas medidas regularizadoras. Os subalternos, o proletariado precarizado e o lumpemproletariado foram as classes e suas frações de classes que majoritariamente (um pouco mais de 50% do total de contestadores sociais) sustentaram essa nova etapa do ciclo de contestação social que acompanhou a regularização neoliberal argentina desde seu início.

O primeiro mês desse governo registrou uma quantidade expressiva de atos de contestação social (555) que até então só ficaria atrás da quantidade ocorrida na contestação social generalizada de dezembro de 2001 (713). Em uma intensidade e quantidade menor, os atos de contestação social mantiveram-se nos meses seguintes, porém seguindo um período de expansão (janeiro/maio), acompanhado de um período de redução da contestação social (junho/dezembro) e de maior isolamento da luta dos desempregados (COTARELO, 2005).

É possível conjecturar que a decisão governamental de endurecer ainda mais a repressão ao movimento piqueteiro[4] deu-se em parte aproveitando esse contexto de redução dos níveis de contestação social e isolamento dos setores do lumpemproletariado bonaerense mais radicalizado, assim como pela necessidade de regularizar a produção de capital que exigia a recuperação da credibilidade do bloco dominante e da burguesia financeira internacional e seus organismos de financiamento. E isso dependia fundamentalmente de medidas eficazes, tomada pelo governo para eliminar definitivamente o movimento piqueteiro, seus bloqueios de estradas e outros de seus métodos ameaçadores da sociabilidade capitalista.

Os discursos do bloco dominante[5] transmitidos pelo capital comunicacional apontavam para a confirmação dessa conjectura e expressavam os sinais desse bloco em relação às suas pretensões, especialmente diante da contestação social piqueteira. A possibilidade de recorrer à repressão violenta para evitar os bloqueios piqueteiros transparecia:

“o presidente Duhalde considerou ontem que “a conflitividade social na Argentina está baixando de forma abrupta” e que “o pior da crise já passou”. “Existe uma tranquilidade na população que é um valor que temos que preservar”, assinalou. Duhalde citou o caso dos piqueteiros: “o conflito vai amenizando na medida em que os planos sociais vão se incorporando aos setores mais desfavorecidos. Os planos sociais estão se aperfeiçoando”, agregou. Contudo, advertiu que o governo não tolerará novos bloqueios massivos dos acessos à Capital Federal. “Não podem ocorrer mais, temos que seguir pondo ordem”, disse em uma conferência de impressa na Casa Rosada” (Clarín, 18/06/2002).

“BUSCAM FREIAR BLOQUEIOS DE PONTES – O governo quer evitar que os piqueteiros voltem a bloquear os acessos à capital. Também impulsiona um reforço da presença policial na cidade. Preocupa o incremento do delito no interior bonaerense” (Chamada de notícia, Clarín, 19/06/2002).

“Ontem o governo nacional deu sinais de que não vai permanecer inativo se as organizações de desempregados e piqueteiros procuram bloquear de forma simultânea todos os acessos à Capital Federal. No mesmo tom com os ditos do secretário de Segurança, Juan José Alvarez, de que “não vai permitir” que isso ocorra, ontem foram convocados altos funcionários a uma reunião que teve como lugar a Casa de Governo, onde se analisou a questão” (Clarín, 19/06/2002).

Tais discursos, expressos especialmente pela burocracia governamental, apresentam alguns elementos importantes para compreendermos a repressão estatal que estava por vir no dia 26 de junho de 2002. Em primeiro lugar, é importante destacar que não é do interesse do bloco dominante revelar a realidade social concreta, pelo contrário, essa deve ser camuflada por discursos ideologêmicos (fragmentos de falsa consciência sistematizada), tais como esse que busca transparecer que a conflitividade social se reduzira, que o pior momento da crise já passou e que, portanto chegara o momento da população se tranquilizar. Inclusive, a suposta tranquilidade da população, que pode ser encarada como passividade diante das regularizações estatais e suas consequências nefastas, foi um valor a ser supostamente defendido pelo bloco dominante.

Além disso, as políticas paliativas eram apresentadas como uma ação estatal em busca da resolução dos problemas sociais que afetam as classes desprivilegiadas, algo que, como já vimos anteriormente, esteve longe de resolver os interesses imediatos do lumpemproletariado. Pelo contrário, servia como mais uma ferramenta de controle social, cooptação, fragmentação etc. No fundo, o que está implícito nesses discursos ideologêmicos é que o estado vinha buscando resolver os problemas dos menos favorecidos, com o aperfeiçoamento dos planos sociais, e que a contestação social piqueteira não mais se justificaria em um momento de calmaria social, pois “em momentos de confusão (os bloqueios) podiam ser admitidos. Porém, agora não tem que agravar os problemas sociais com ações violentas. Tem que por ordem”, afirmava Duhalde.

Com isso, o bloco dominante buscava construir uma corrente de opinião que apresentava o movimento piqueteiro como inimigo da ordem social, agitadores e simpatizantes da violência, que buscavam fundamentalmente pertubar a ordem social. Sendo assim, ou o movimento piqueteiro aceitava as escassas migalhas concedidas pelos planos sociais, mantendo-se na extrema miséria lumpemproletária, ou lhe restaria somente a repressão violenta, caso voltasse a por em prática os métodos piqueteiros (ação direta no bloqueio de estradas, ruas, pontes etc., decisões horizontais, práticas assembleiarias, enfrentamento com as forças repressivas etc.) Em síntese, a ideia central era que a ordem deveria sobrepor-se aos caos piqueteiro e sua violência. De forma ideologêmica, a luta contraviolência da regularização neoliberal era apresentada como uma prática violenta que agravava os problemas sociais. Como se o movimento piqueteiro fosse ele mesmo responsável pelo agravamento de sua própria condição social. Nos discursos ideologêmicos do bloco dominante, veiculados pelo capital comunicacional, reinava a prática da inversão da realidade.

Também nos chama a atenção a forma como a chamada da notícia foi construída, pois a necessidade de reforçar a presença policial nas ruas se “justifica” pelo aumento do delito no conurbano bonaerense. Assim, a repressão preventiva em território piqueteiro era disfarçada de políticas de segurança social, pois tal discurso deixava transparecer que o território bonaerense é um território caracterizado pelo crime e que, portanto, exige maior policiamento e controle social, além de reforçar a corrente de opinião que associa a figura do piqueteiro à figura do delinquente. Definitivamente, o que o bloco dominante buscava era por fim ao movimento piqueteiro e para que isso se justificasse era necessário legitimar a repressão violenta, criminalizando a pobreza e o lumpemproletariado e outras classes desprivilegiadas, responsáveis pela contestação social. O Massacre de Avellaneda foi orquestrado e efetuado nesse cenário.

Esses discursos foram pronunciados durante uma reunião no dia 18 de junho de 2002, na Casa de Governo, onde estiveram presentes o chefe de gabinete Alfredo Atanasof, a ministra do trabalho Graciela Camaño, o ministro da justiça Jorge Vanossi, o secretário de segurança Juan José Álvarez, os chefes da polícia federal, da gendarmaria e da prefectura e outros integrantes do bloco dominante. O assunto fundamental a ser tratado nessa reunião era a marcha dos planos sociais e a questão da segurança interna. Nesse dia foi apresentado um plano repressivo que se iniciava com o aumento de 60% do número de policiais nas ruas, com o objetivo de reforçar tanto a repressão preventiva, quanto a repressão contrainsurgente. Juntamente com esse aumento do número de policiais, também foi informado que a gendarmaria e a prefectura atuariam em conjunto “dedicando a controlar as ferrovias e pontes de acesso à cidade” (Clarín, 19/06/2002).

Em relação a essa segunda modalidade repressiva, frações da burocracia (governamental e estatal) deixavam clara sua disposição em acabar com a contestação social e os bloqueios de estradas. No fundo, essa representava a maior ameaça à estabilidade política e suas formas de regularização, fundamentadas na ampliação dos ajustes antissociais. Por conseguinte, a maior tarefa imposta à burocracia governamental era a de encontrar uma maneira de enterrar a contestação social de uma vez por todas, já que nos primeiros cinco meses de governo ocorreram aproximadamente 11 mil mobilizações, segundo informações fornecidas pela secretaria de segurança.

O governo de Duhalde nasceu em meio às pressões de setores do bloco dominante e dos organismos internacionais de financiamento, que exigiam uma postura mais dura com o movimento piqueteiro e, acenando para esses setores, seu secretario de segurança Juan José Álvarez, declarava guerra aos bloqueios simultâneos aos acessos da capital federal, afirmando que tais práticas seriam encaradas pelo governo como “uma ação bélica”, e assim seriam respondidas pelas forças estatais.

Em meio a esse cenário que apontava para uma maior criminalização e repressão violenta ao movimento piqueteiro, o Bloco Piqueteiro Nacional, composto por diversas organizações, em conjunto com a Coordenadora de Trabalhadores Desempregados Aníbal Verón, que reunia quase 20 organizações piqueteiras da zona sul e oeste do conurbano bonaerense, não recuaram com seus métodos de contestação social. Pelo contrário, anunciaram uma mobilização que incluía bloqueios de diversas pontes de acesso à capital federal, para o dia 26 de junho de 2002, dia do Massacre de Avellaneda. As organizações com forte tendência à institucionalização e posturas mais moderadas, tais como FTV e CCC, se recusaram a participar da mobilização por não concordarem com os planos de luta contra o governo de Duhalde, com o qual mantinha constante dialogo e negociação.

A mobilização massiva com mais de 20 mil militantes piqueteiros, convocada pelo bloco piqueteiro para o dia 26 de junho, exigia do estado cinco pontos: 1- O pagamento dos planos de empregos que para muitos desempregados estavam atrasados há vários meses; 2- O aumento dos subsídios de 150 pesos para 300 pesos; 3- A implementação de um plano de alimentação a ser gerido pelos próprios piqueteiros; 4- Investimentos nas escolas e postos de saúde dos bairros; 5- Liberdade e recuo nos processos judiciais contra os contestadores sociais e o fim da repressão.

Por mais que no interior do bloco piqueteiro não havia sido realizado nenhuma sistematização mais concreta a respeito dos riscos de uma repressão violenta à jornada de mobilização, na ponte pueyrredón, a percepção de muitos apontavam para uma mudança significativa na relação entre piqueteiros, burocratas estatais e punteros políticos, desde a chegada de Duhalde à presidência interina da república. Diversos jovens que compunham as comissões de segurança nos piquetes já alertavam para o risco da situação ficar feia, pois muitos prefeitos dos municípios do conurbano haviam retomado o controle sobre a assistência social e se mostravam dispostos a disputar palmo a palmo com os piqueteiros o controle sobre a entrega dos subsídios nos bairros. A partir daí as ações repressivas tornaram-se variadas e imprevisíveis.

Em seis meses de governo interino as forças repressivas vinham ampliando suas brutalidades, ameaças e intimações amedrontadoras contra os piqueteiros. No dia 10 de janeiro, ao voltar de uma manifestação na ponte pueyrredón, o desempregado Luis Salazar é interceptado por dois desconhecidos, no qual um deles lhe empurra uma pistola no estômago e diz: “Viu como é fácil? Se te acertamos aqui ninguém vê”. No dia 22 de janeiro um carro com vidros fumês e sem placa se aproxima de Nicolás Lista, dirigente da Coordenadora de Desocupados de Lanús, e exibe uma metralhadora o ameaçando de morte. No dia 24 de janeiro Nina Peloso, dirigente do Movimento Independente de Jubilados e Pensionados (MIJP), é perseguida por seis carros que disparam diversos tiros para cima para amedrontar os militantes desse movimento e a sequestram durante dois dias, ameaçando arrebentá-la se seguir perturbando. No dia 25 de janeiro, a polícia federal reprime violentamente o primeiro panelaço contra o governo de Duhalde, deixando um saldo de 30 prisões, dezenas de feridos por pauladas e balas de borracha e dois jovens militantes torturados e levados no interior de um taxi. Na madrugada do dia 06 de fevereiro de 2002, um bloqueio realizado por um MTD do município Esteban Echeverría, em exigência de planos de emprego e alimentos para refeitórios populares, foi atravessado por um Ford Falcon conduzido por Jorge Bogado, um velho puntero político, ex-policial com estreitos vínculos com políticos locais, inclusive ligados à última ditadura burguesa e suas práticas terroristas, que sacou sua pistola 09 mm e efetuou vários disparos à queima roupa que assassinaram Javier Barrionuevo, um piqueteiro de 31 anos de idade. Em frente à prefeitura de Lanús atiraram contra uma mobilização, ameaçando e intimidando diversos manifestantes. No início de junho, em uma mobilização no município de Presidente Perón uma patota (organização criminosa no qual a burocracia faz uso para reprimir seus opositores e contestadores) armada do partido justicialista se demonstrou bem disposta a enfrentar e agredir os piqueteiros. No dia 22 de fevereiro, outra patota composta por 150 membros de torcidas organizadas (barra bravas), agride com paus e correntes aos vizinhos que realizavam um panelaço contra o prefeito do município de Merlo (responsável por inúmeras violações contra os direitos humanos). Esse ataque violento ocorreu na praça principal e não poupou mulheres e crianças. No mesmo dia, em Ituzaingó (município da zona oeste do conurbano bonaerense), ocorre uma agressão semelhante a uma assembleia local. Em ambos os episódios a polícia bonaerense promoveu as tradicionais “zonas liberadas”, isto é, se afastou da região para garantir a agressão (PÁGINA 12, 16/06/2002; ANÍBAL VERÓN, 2012). A repressão terrorista que assassina (gatilho fácil) militantes piqueteiros já vinha se consolidando desde as primeiras aparições do movimento piqueteiro.

É importante destacar que a mobilização convocada para o dia 26 de junho de 2002 foi resultado de inúmeras tentativas fracassadas do movimento piqueteiro em buscar uma negociação com o governo que, desde que assumiu a presidência, se negava a recebê-los para um diálogo sobre suas necessidades, exigências etc. Diante de uma somatória de tentativas falidas, o movimento piqueteiro entendeu que a única maneira de pressionar o governo e garantir sua atenção era com uma demonstração de força mediante um massivo bloqueio da circulação do fluxo de capital e da força de trabalho, em todos os principais acessos à capital federal. O enfrentamento se apresentava como a única solução digna para os piqueteiros, que se afundavam cada vez mais na miséria social. As informações do INDEC disponibilizadas no mês de junho de 2002 revelava aquilo que os piqueteiros sentiam cotidianamente na pele, pois, segundo tais informações, existia no país mais de 06 milhões de desempregados e subempregados, 18.219.000 milhões de pobres, cifra que representava mais da metade da população nacional, que também se encontrava por debaixo da linha da pobreza. Desse total, 7.777 milhões eram indigentes (ARTESE, 2009; MTD ANÍBAL VERÓN, 2012, CLARÍN, 09/06/2002).

As declarações que circulavam pelo capital comunicacional, após tornar pública a inteção do bloco piqueteiro em promover uma, na Ponte Pueyrredón, no dia 26 de junho de 2002, não deixavam dúvidas acerca da intenção do bloco dominante em tornar ilegítima, assim como de reprimir violentamente tal mobilização:

“O chefe de gabinete, Alfredo Atanasof, reiterou que existe a decisão de utilizar ‘todos os mecanismos para fazer cumprir a lei’ e evitar que a capital fique isolada, diante da qual os piqueteiros ratificaram a medida e disseram que manteriam os bloqueios sobre as pontes que dão entrada a cidade [...] Atanasof qualificou a decisão de bloquear esses pontos como ‘um ato irracional’. Disse, inclusive, não saber ‘que fins perseguem os dirigentes’ e considerou que sua metodologia não faz mais que ‘contribuir com o caos’” (Página 12, 25/06/2002).

“Em uma eventual situação de caos absoluto, naturalmente se pensa que alguém terá que por ordem. Então a hipótese leva a pensar que os militares argentinos seguramente estão pensando nessa hipótese. Se eu fosse (o chefe do exército, Ricardo) Brinzoni, por mais que quisesse que não houvesse nenhuma perturbação, minha obrigação profissional seria ter o plano B (Página 12, 15/06/2002).

“A questão dos piquetes e do possível bloqueio simultâneo aos acessos da cidade é uma das maiores preocupações do governo em relação ao conflito social, que já registrou mais de 11 mil manifestações nos primeiros cinco meses do ano, segundo dados da Secretaria de Segurança revelados ontem por Clarín. Alvarez advertiu que se bloqueiam todos os acessos ao mesmo tempo será encarado pelo governo como uma ação bélica” (Clarín, 19/06/2002).

“O MASSACRE ANUNCIADO – um juiz da nação antecipava a esse cronista, há 72 horas, que se preparava uma violenta repressão contra os piqueteiros na Ponte Pueyrredón. Fiquem de olho – disse o magistrado – vão meter bala. O magistrado sabia pelo pessoal de segurança com quem estava em contato devido as suas funções” (Página 12, 27/06/2002).

A perspectiva do bloco dominante não tem interesse em revelar a realidade concreta, mas tão somente contribuir para a construção de uma corrente de opinião contrária à contestação social piqueteira. Com esse intuito é que podemos perceber a finalidade do discurso ideologêmico (fragmentos de ideologia no sentido marxista) e por isso o ato de bloquear os acessos à capital federal é apresentado como algo que não possui uma razão de ser, um ato irracional. No entanto, sabemos que tais discursos simplificam, ofuscam e escondem a realidade concreta, isto é, o processo de lumpemproletarização que lançou milhares de pessoas à condição de classe marginalizada da divisão social do trabalho, tendo como objetivo fundamental disciplinar a força de trabalho, impor condições extremamente precárias de trabalho, baratear a força de trabalho, em suma, alavancar a acumulação integral de capital. E qualquer movimento que se apresente como obstáculo a esse processo precisa ser anulado, tornado ilegítimo e reprimido.

Porém, como não e do interesse do bloco dominante permitir que a realidade concreta seja percebida tal como ela é, esse bloco busca apresenta-la de forma invertida e de vítima da acumulação integral o movimento piqueteiro é transformado em um movimento violento e ilegítimo, que não possui outra finalidade (a dignidade da luta contra a miséria, por exemplo) que não seja a de perturbar a ordem social, promover o caos etc. A forma como isso é construído fundamenta-se em afirmações simplórias sem muita reflexão, tal como a de afirmar que os dirigentes piqueteiros não possuem outros objetivos que não o de promover o caos. Dessa maneira, constrói-se uma polaridade entre “nós” (os defensores da ordem) e “eles” (os promotores do caos) e, a partir do momento, em que esses discursos se convertem em correntes de opinião hegemônicas, o bloco dominante “torna” a repressão necessária e legítima .

Outra característica que se apresenta em tais discursos é a de buscar construir um consenso em torno da ideia acerca de que a repressão poderia ser evitada pelos contestadores sociais, visto que o governo vinha fornecendo diversas demonstrações de que não permitiria mais os métodos piqueteiros. Mas, como já está claro, tudo isso é feito ocultando outras determinações, tais como a falta de dialogo e resolução concreta para o problema da fome, insalubridade, desnutrição infantil, desemprego, indigência e todas as diversas mazelas sociais que golpeou duramente o lumpemproletariado argentino. Nesse sentido, a luta digna contra todas essas mazelas é ocultada e transformada em meros atos de perturbação social sem outra finalidade que não a construção do caos. Assim, os discursos do bloco dominante preparavam o terreno para a construção do consenso em torno da repressão violenta que já estava sendo planejada.

Apesar dos discursos ameaçadores do bloco dominante (verdadeiras declarações de guerra naquele contexto) veiculados pelo capital comunicacional, o Bloco Piqueteiro Nacional seguiu com seus planos de mobilização e contestação para o dia 26 de junho de 2006, tendo como objetivo fundamental dar uma demonstração de força sitiando a capital federal. Desde as 11hs00min, piqueteiros das organizações que compunham o Bloco Piqueteiro Nacional se concentraram nos locais de acesso que comunicam Avellaneda com a capital federal. A jornada de mobilizações contava com o bloqueio de cinco pontes, na qual o bloqueio da Ponte Pueyrredón estava sob responsabilidade da Coordenadora Aníbal Verón, e, por isso, ali se encontravam um número maior de piqueteiros dessa Coordenadora, que é expressiva na zona sul do conurbano bonaerense. Desde mais cedo iniciava os bloqueios de diversas outras pontes que ligavam a capital à zona sul do conurbano (Pueyrredón, Alsina e La Noria), assim como os acessos que ligavam à zona oeste e norte (bairro de Liniers, Avenida General Paz e Panamericana). Apenas nos acessos sul da capital federal se mobilizou aproximadamente 20 mil piqueteiros, objetivando sitiar a cidade de Buenos Aires (Red Eco Alternativo, 2009; ARTESE, 2009, 2013).

Do lado do operativo repressivo, pela primeira vez em um bloqueio de estradas, atuaram em conjunto e de maneira imponente as três forças policiais federais: polícia federal, gendarmaria e prefectura (Grupo Albatroz[6]) e a polícia bonaerense. Mas, além da quantidade oficial de policiais que participaram do operativo repressivo, isto é, aproximadamente 2 mil efetivos das distintas forças policiais, o número exato era bem maior:

formaram parte da repressão efetivos que não figuraram nos relatórios oficiais, de uniforme ou vestido de civil, inclusive retirados (aposentados) da polícia convocados antecipadamente. Membros das delegacias 2ª e 3ª de Avellaneda estiveram presentes sem que ficassem registrados nas planilhas oficiais. Sua presença só foi reconhecida pelos chefes policiais diante da evidência televisiva e a denúncia dos manifestantes e advogados. É o caso do oficial subinspetor Vladimir Brezas, registro 37.703, quem de civil perseguiu manifestantes portando sua escopeta marca Batán número 7997, e dos sargentos Carlos Riveros e Ramón Romero, a quem posteriormente foram citados para perícia de suas armas. Todos eles pertencentes à delegacia 2ª de Avellaneda. Também da delegacia 3ª de Dock Sud figurou pessoal extra: o oficial subinspetor Marcelo Fiodomo foi visto no lugar uma vez iniciada a repressão. Outros reforços não foram reconhecidos ainda que ficaram devidamente documentados por investigações jornalísticas: é o caso do pessoal retirado (aposentado - LB) das forças repressivas, como Celestino Robledo, ex-agente Bonaerense, quem atuou como parapolicial e acompanhou seus antigos camaradas de força perseguindo e detendo manifestantes, inclusive portando uma arma regulamentada facilitada por um agente em atividade (MTD ANÍBAL VERÓN, 2012, p. 54).

Por volta das 11hs45min uma coluna de piqueteiros ocupou a descida da Ponte Pueyrredón, bloqueando a estrada e interrompendo o trânsito. Paulatinamente diversas estradas e ruas passaram a ser bloqueadas, causando um enorme congestionamento na região. Outras colunas piqueteiras se aproximavam da ponte chegando de distintos pontos até que a segunda coluna, avançando pela Avenida Mitre, se deparou com uma linha de infantaria comandada pelo comissário Franchiotti a 20 metros da ponte bloqueada. Um grupo de aproximadamente 10 policiais permaneceu no meio da avenida entre duas colunas piqueteiras, contrariando propositalmente ensinamentos básicos da infantaria, tal como o de garantir proteção à retaguarda. A coluna conduzida pela Coordenadora Aníbal Verón, emergida por detrás da linha policial, seguiu em direção ao grupo de policiais até se aproximar a um metro de distância. Estava armada a emboscada policial que levaria adiante, não às ordens de evitar o bloqueio dos acessos à capital, mas sim o verdadeiro plano estatal: eliminar o movimento piqueteiro com uma repressão brutal.

Naquele momento, o movimento piqueteiro não pôde perceber que a manutenção de um reduzido cordão policial no meio de duas gigantescas colunas piqueteiras fazia sim sentido, porém passado alguns dias, ao analisar o ocorrido, compreenderam que estavam diante de uma verdadeira emboscada que necessitava, para dar início ao massacre de avellaneda, somente de algumas provocações policiais, tais como essa de manter uma dezena de policiais no meio de duas grandes colunas:

os meios de comunicação insistiram que esses policiais foram agredidos. Não vou dizer que não, porém, que sentido preventivo tinha esse cordão posto ali? Observe que paradoxo: uma vez na base (da ponte), nós não subimos na ponte porque sabíamos que havia grande quantidade de tropas da Prefectura acima. Porém, estavam há 200 metros acima, ou seja tínhamos lugar para avançar pela ponte se quiséssemos. Esse espaço nos deixaram aberto, porém puseram um cordão da infantaria sobre Mitre (avenida), aonde não tinha razão de estar. Esse cordão policial adquire sentido somente se quem o ordenou sabia que iam ficar no meio de duas colunas de manifestantes, a nossa e a do Bloco. E isso eles sabiam mais que nós. Então, essa atitude da infantaria, desde o ponto de vista dos que buscavam provocar, não foi um erro. Certeza que não. Até agora falamos dos indícios que mostram como montaram as condições para reprimir. Primeiro, que nos deixaram chegar até a base da ponte. Segundo, que o cordão da infantaria estava localizado em um lugar absurdo, no meio de onde iam confluir duas colunas de manifestantes. O terceiro elemento é quem dirige os policiais desse cordão. Quando a coluna do bloco chega, parte do cordão da infantaria começa a se retirar. Porém Franchiotti, com Itaka (escopeta- LB) na mão, insiste aos seus subordinados para que fiquem, que resistam ali. É muito clara essa imagem nos vídeos: como na cabeça de alguns canas existia algum sentido, tenderam a correr para a calçada. Franchiotti se mantém ordenando a outros canas do cordão para que permaneçam onde estavam. Alí se dão os primeiros atritos, o que se vê bem nas filmagens da tv são empurrões y bastonadas, até que fazem soar os primeiros gases e tiros de escopeta. Era o lugar mais inteligente para montar uma provocação. Estavam todas as câmeras de televisão e, como eram poucos nesse cordão da infantaria, ficaram facilmente como vítimas -Declaração de militantes piqueteiros (MTD ANÍBAL VERÓN, 2012, p. 61-62).





Figura 16– Cordão policial mantido no meio de duas colunas piqueteiras sob ordens do comissário Franchiotti.

Assim que as forças repressivas obtiveram o que desejavam, isto é, a reação piqueteira[7] às provocações armadas, iniciou-se o massacre de avellaneda. Diversas filmagens e documentários realizados por vários meios alternativos de comunicação apresentam claramente como se deu essa selvageria repressiva que não mediu esforços para fuzilar, espancar e torturar centenas de piqueteiros (ALAVÍO, 2002a; ESCOBAR e FINVARB, 2007).

Ao iniciar a repressão com bombas de gás lacrimogênio, balas de borracha e tiros com armas de fogo, os piqueteiros se dispersaram e iniciaram a retirada da região, ficando impossibilitados de levar adiante os planos de bloquear os cinco pontos de acesso à capital federal. No entanto, a repressão não se deteve, pelo contrário, pois, a partir daí, iniciava-se uma verdadeira caçada aos piqueteiros pelas avenidas e ruas próximas a Ponte Pueyrredón, marcadas por uma perseguição policial acompanhada de uma grande quantidade de disparos efetuados pelas forças repressivas, vindos de todos os lados, inclusive de francoatiradores postados em alguns prédios da região. Quantidade expressiva desses disparos equivaliam a disparos com armas de fogo e uma das provas mais contundentes do uso constante de tais armas, além dos feridos e mortos, foram os inúmeros registros (fotos e filmagens) da constante preocupação de diversos policiais em resgatarem seus cartuchos de chumbo no asfalto para não deixarem provas. Os documentários que registraram esses momentos demonstram a magnitude da violência repressiva estatal utilizada no massacre de avellanda (ALAVÍO, 2002a; ESCOBAR e FINVARB, 2007).

Mario Pérez, ao que tudo indica, foi o primeiro piqueteiro a receber o impacto de uma arma de fogo nas duas pernas, ao longo da avenida avellaneda. Logo em seguida, Aurora Cividino, membro da Assembleia de San Telmo, também foi baleada pelas costas, tendo o fêmur esquerdo fraturado e outra bala alojada na coxa direita. Cem metros à frente de onde Aurora foi baleada, aproximadamente 200 piqueteiros faziam frente, com paus e pedras lançadas por estilingues, ao avanço das tropas bonaerenses e da prefectura, com o objetivo de retardar o avanço repressivo e melhor organizar a retirada. Entre os piqueteiros que resistiam ao avanço das tropas encontrava-se Maximiliano Kosteki, Miguel Ángel e Carlos Romeo em frente ao supermercado Carrefour. Um tiro de escopeta atinge o três piqueteiros e feri fatalmente Maximiliano Kosteki, deixando os demais feridos nas pernas e ombros. As imagens transmitidas pelo canal de notícias Crónica TV mostra o momento exato em que Maxi é fuzilado no peito, eram 12hs42min, isto é, haviam passado 40 minutos do início da repressão e as tropas davam sinais de que a repressão estava longe de terminar. Socorrido por alguns companheiros Maxi foi levado até a estação avellaneda onde faleceu (MTD ANÍBAL VERÓN, 2012).

Aproximadamente a 20 quadras da Ponte Pueyrredón, na Avenida Pavón, Juan Arredondo é atingido por dois tiros, um nas nádegas e outro no tornozelo. Impossibilitado de seguir fugindo, acabou capturado e levado para a 1ª delegacia de Avellaneda, na qual ficou por aproximadamente 04hs00min perdendo sangue até ser transferido para um hospital. Não era a primeira vez que Juan havia sido baleado por participar de uma contestação social, pois há alguns meses atrás teve seu pulmão perfurado por uma bala de 09 milímetros disparada por um agente penintenciário em um protesto realizado pelo MTD de Lanús contra o atraso no pagamento dos subsídios sociais.

Logo após iniciada a repressão, as tropas que se encontravam na Avenida Mitre também dispararam diversas vezes com armas de fogo contra os piqueteiros. Uma das primeiras vítimas foi Leonardo Torales, de 17 anos, que teve seu pulmão perfurado por uma bala. Leticia Vasarhelyi, uma médica que costumava acompanhar as manifestações piqueteiras para prestar os primeiros socorros às vítimas da repressão, ao auxiliar o jovem, também foi atingida por balas de borracha. Leonardo permaneceu 35 dias internato na UTI. As forças repressivas que atuavam nessa avenida eram coordenadas pelo sargento aposentado da polícia bonaerense, Carlos Leiva, que foi flagrado à paisana atirando com arma de fogo contra militantes piqueteiros por diversas fotos e filmagens realizadas pelos próprios piqueteiros e por profissionais de meios alternativos de comunicação (ALAVÍO, 2002a; MTD ANÍBAL VERÓN, 2012).

As forças repressivas coordenadas por Carlos Leiva foi responsável por perseguir, com camionetes e outros carros patrulhas, diversos grupos de piqueteiros por várias quadras até a Praça Alsina. Nesse percurso, um coletivo foi incendiado em uma localidade onde já não existiam manifestantes, o que nos leva a crer que suas tropas o fizeram com o intuito de criminalizar o movimento piqueteiro e justificar a violência repressiva. As tropas de Leiva e ele próprio foram responsáveis por atirar com arma de fogo contra diversos piqueteiros. As imagens desses recolhendo cartuchos vermelhos, próprios de arma de fogo no asfalto, confirmam os disparos com o intuito de ferir gravemente e matar. Sergio Insauralde foi uma das vítimas dos disparos efetuados por Leiva, que atravessaram sua bochecha direita. Héctor Alvarez foi outra vítima dessas tropas, ao ser baleado no lado direito do peito e, ao final do dia, foi internato em uma UTI. Fugindo da selvagem perseguição comandada por Carlos Leiva pela Avenida Mitre, aproximadamente 50 militantes piqueteiros buscaram refúgio na sede do Partido Comunista, localizado na Rua Brandsen, número 1.200. Contudo, algumas camionetes dirigidas pelas tropas de Leiva chegaram ao local e arrombaram a porta de entrada da sede com diversos tiros que feriram os militantes que tentavam reforçar a porta com seus próprios corpos para impossibilitar o ingresso dos repressores. Após diversos disparos, a porta foi arrombada (imagem registrada por Pablo Piovano, do jornal Página 12) e a sede invadida pelas forças repressivas que no seu interior seguiram disparando contra os piqueteiros. Uma das vítimas foi Mariano Benítez que ao demorar em seguir a ordem repressiva de deitar no chão com as mãos na nuca, recebeu um disparo de bala de borracha na cabeça quando buscava um lugar no piso cheio de militantes já rendidos, o que lhe causou uma enorme queimadura e ferida, sendo levado desmaiado para o hospital. As casas vizinhas à sede também foram invadidas e seus moradores ficaram sob a mira das escopetas policiais. A repressão na sede do Partido Comunista só não foi maior porque os deputados Luis Zamora e Vilma Ripoll expulsaram aos gritos e empurrões os policiais para fora da sede, e em seguida fugiram em suas camionetes, recebendo pedradas dos piqueteiros que se aproximaram do local para reforçar a resistência.

Do lado de fora da estação avellaneda se aproximava as tropas comandas pelo comissário Franchiotti que permanentemente disparavam com armas de fogo (pistolas e escopetas) contra os piqueteiros que escapavam pela Avenida Pavón. A 60 metros da estação, o fotógrafo Sergio Kowalewski procurou dialogar com o comissário Franchiotti, objetivando freiar a brutalidade do operativo repressivo: “Parem, não estão vendo que as pessoas estão indo embora? Parem, pois vão promover um massacre”, advertiu severamente a Franchiotti, que lhe retrucou, “vejam o que me fizeram”, mostrando um arranhão no pescoço, porém Sergio insistia, “mas vocês promoverão um massacre, não estão vendo que eles estão com paus e pedras e vocês com ferro (arma)?”. Outro policial se aproximou para defender Franchiotti e lhe advertiu: “Se não gosta, vá para o outro lado”, deixando subentendido que poderiam atirar em Sergio também.

As duas vítimas fatais da selvageria policial foram Maximiliano Kosteki e Darío Santillán, dois jovens e aguerridos militantes piqueteiros[8]. Após ser fuzilado no estômago, Maxi foi levado ainda vivo por alguns companheiros até a Estação Avellaneda onde agonizou até a morte. Na intenção de auxiliá-lo e chamar uma ambulância Hector Fernández se manteve na estação. Logo depois chegou Darío Santillán, que ao saber da existência de um companheiro (que ainda não o conhecia) ferido na estação, regressou para ajuda-lo. Ali se encontravam diversos piqueteiros que assustados com a magnitude da repressão buscavam se proteger das tentativas de fuzilamento policial. Darío, apesar de sua juventude, possuía uma significativa experiência militante e por isso aconselhava os demais a fugirem e insistia em ficar para socorrer Maxi. Aos gritos dizia: “Vão, corram, fujam. Eu fico, mas vocês saiam, saiam”. Muitos saíram e conseguiram subir no primeiro trem que partia. Logo em seguida se escutam disparos efetuados contra a estação avellaneda, era o início do plano estatal que consistia em simular um enfrentamento entre distintos grupos piqueteiros, o que reforçava a corrente de opinião que os relacionava à delinquência e violência. Darío se manteve agachado ao lado do corpo de Kosteki, conferindo seus pulsos, quando ingressam à estação o cabo Acosta e o comissário Franchiotti com o intuito claro de assassinar alguns piqueteiros, nesse caso Darío Santillán é quem foi fuzilado, para logo depois retirá-los da estação com a explicação de que se “mataram entre eles”:

Darío percorreu cinco metros desde que se levantou e buscou a saída até que lhe atiraram com escopeta pelas costas. Havia atravessado as portas que dividem o hall do pátio da estação; havia passado também por Franchiotti, que em sua corrida atrás de outro rapaz demorou pegando outros cartuchos no bolso do seu casaco. Acosta havia empreendido a perseguição seguindo seus passos. O cabo e o comissário levavam munição de guerra (prova disso foi a preocupação em resgatar seus cartuchos no chão, registrada em diversas ocasiões, durante toda a caçada repressiva - LB) e os dois ficaram na linha de tiro quando Darío caiu ferido de morte. Ao escutar um novo estampido e dirigir o olhar, Sergio Kowalewski viu apontando, em primeiro lugar, o comissário. Pepe Mateos, fotógrafo do jornal Clarín, quem segundos antes havia retratado o ingresso dos policiais no Hall, não teve ângulo suficiente para ver o momento em que se efetuou o disparo. Caminhou até o pátio quando escutou a detonação e então viu Darío caído tentando seus últimos movimentos [...] os policiais se aproximaram do corpo agonizante: “a polícia o tratou de uma forma brutal. Os policiais o pegavam e diziam ‘pare’, o chutavam. O comissário, que eu não sabia quem era também estava quando o levaram para fora. Vi uma selvageria na forma em que trataram Santillán (MTD, ANÍBAL VERÓN, 2012, p. 79-80).

Outros 30 militantes piqueteiros foram feridos por armas de fogo pelas costas enquanto buscavam fugir e resistir à selvageria repressiva, aproximadamente 160 militantes foram feridos com balas de borrachas. Levando em conta que diversos deles foram atingidos por armas de fogo em regiões vitais, tais como peito e cabeça, o número de mortos poderia ter ultrapassado mais de 15 piqueteiros. Deve-se levar em conta, como ressaltou o MTD Aníbal Verón, que o número de militantes feridos foi muito maior que o apresentado, pois diversos deles, temendo represália e torturas, não recorreram aos hospitais para serem atendidos. Quase 200 pessoas foram detidas, acusadas de atentarem contra o patrimônio público e privado, acusadas de praticarem atentados e de resistirem à autoridade. Outros tantos militantes que foram detidos pela repressão denunciaram a prática de torturas físicas e psicológicas, incluindo a simulação de fuzilamentos, e outros tipos de violência, tal como serem amontoados em celas superlotadas, com mulheres grávidas e outras pessoas dependentes de medicação que eram negadas pelos policiais etc. (ARTESE, 2009).







Figura 19, 20 e 21– Imagens do fuzilamento de Darío Santillán na Estação Avellaneda, com destaque para os responsáveis (Acosta e Franchiotti) e a utilização de cartuchos vermelho (arma de fogo)[9].

No dia seguinte, o bloco dominante iniciava a tarefa de “reconstruir” ideologemicamente o massacre de avellaneda com vistas a reforçar a corrente de opinião produzida pelas forças repressivas e reproduzidas por esse bloco social. Tal corrente de opinião, que buscava tornar-se hegemônica, relacionava os piqueteiros à delinquência, vandalismo e outros atos violentos, bem como os associava com diversos inimigos imaginários, tais como subversivos de esquerda, guerrilheiros estrangeiros, traficantes de drogas, terroristas, revolucionários, comunistas etc. Tudo isso com o objetivo de formar um consenso em torno da necessidade de reprimi-los, inclusive violentamente.

Desde os primeiros instantes após o massacre de avellaneda, as forças policiais produziram um discurso ideologêmico, fundamentalmente, ocultar a realidade do acionar massacrante das forças repressivas, transferindo a responsabilidade pelas mortes aos próprios piqueteiros: os duros, delinquentes, violentos etc. Para essas ocasiões serviam essas constantes referências negativas aos piqueteiros, quer dizer a construção de uma corrente de opinião que insistentemente os relaciona à violência facilitava a aceitação de discursos ideologêmicos criminalizadores da contestação social piqueteira, seus métodos violentos e perigosos, seus grupos delinquentes etc.

No dia 27 de junho de 2002, a totalidade das empresas capitalistas de comunicação reproduziu o discurso infame do comissário Franchiotti, responsável por coordenar o operativo que resultou no Massacre de Avellaneda e autor do disparo que assassinou Darío Santillán. Vejamos seu discurso e quanta canalhice:

“Na estação, lugar que nós nunca entramos [...] Nós só portamos gases e balas de borracha [...] A gente que estava dentro da estação nos reclamava. Tinha entrado um grupo muito importante, se sentiam disparos de arma de fogo em direção a um dos trens que passava. A gente que estava ai e que pudemos fazer contato e estabelecer um dialogo nos comentava que haviam disparado para o trem, que havia tiroteios ali dentro ... Ficaram alguns grupos, por isso atiramos alguns gases. Os gases entraram na estação, ai tivemos que sair e tiramos um montão de gente que nos pedia auxílio porque havia mulheres com crianças, grávidas e outros que estavam tirados no piso e tivemos que retirá-los para o lado da Pavón ... para evitar que pudesse lhes acontecer algo. (Então) eu vejo um dos piqueteiros que acontece que termina sendo esse rapaz Santillán. Lhe pergunto o que havia acontecido, ele retirou o pano que tinha no rosto e me disse que haviam dado um tiro em suas costas. Lhe digo: ‘Consegue levantar? Vou te levar ao hospital. Tenta levantar, tenta, lhe disse’. Tentei levantá-lo sozinho e não consegui, era bastante pesado. Então recorri ao auxílio de outros policiais” (MTD ANÍBAL VERÓN, 2012).

Tal discurso é o primeiro de diversos outros discursos capciosos, fundamentados em inverdades que buscaram ocultar a realidade (o fuzilamento policial) e confundir a sociedade. Nesse sentido, até ser desmascarado pelas evidências de outras provas e fontes que surgiram 48 horas após o massacre, o capital comunicacional agiu com o objetivo claro de transferir toda a responsabilidade pela violência aos próprios piqueteiros, ou melhor, aos inimigos imaginários que se construíram com o intuito de camuflar uma ofensiva de classe, apresentando-a como uma ofensiva contra grupos infiltrados perigosos, os “verdadeiros responsáveis pelos episódios de violência” etc. As primeiras explicações do bloco dominante para o massacre era que “os piqueteiros haviam se matado entre eles”, que “haviam grupos infiltrados organizados, armados e violentos” (inimigo imaginário). Nos discursos jornalísticos, essa posição ideologêmica se reforçava com a apresentação seletiva e parcial da realidade que reproduzia o cinismo degenerado do discurso de Franchiotti, que insistia em apresentar os piqueteiros como armados e violentos, da existência de grupos infiltrados etc.:

“Os piqueteiros que estão dispostos a resistir estão avançando contra a polícia, estão avançando contra a polícia nesse momento” (Azul TV, 26/06/2002).

“HÁ DISPAROS DE ARMAS DE FOGO” (chamada do noticiário), “o certo é que a região ficou cheia de automóveis destruídos com a passagem dos manifestantes furiosos e à polícia não restou nenhuma margem de ação”, “havia muitos piqueteiros que estavam com pedras, que estavam com estilingues, dispostos a levar à cabo o enfrentamento” (Azul TV, 26/06/2002).

“A polícia estava com uma equipe antidistúrbios e foi tremendamente agredida e isso está claramente visto na televisão” (Juan José Alvárez, America TV, 26/06/2002).

“o governo da província de Buenos Aires assegura que os piqueteiros foram responsáveis pelos incidentes e que portavam armas de grosso calibre como escopetas” (Azul TV, 26/06/2002

O GOVERNO GARANTE QUE FORAM INFILTRADOS - Sob suspeita dois grupos piqueteiros [...] DOIS MORTOS NO ENFRENTAMENTO DE PIQUETEIROS COM A POLÍCIA – Grupos radicalizados de esquerda destruíram negócios e queimaram automóveis e coletivos : “O chefe do operativo de segurança na ponte, comissário Alfredo Franchiotti, assegurou que suas forças não portavam projéteis de chumbo e acusou os piqueteiros de disparar com armas de fogo [...] Essa gente vinha com toda a intenção de lutar conosco ... Com paus, armada, com panos cobrindo suas caras. Não digo que se tratava de um exército, porém é gente que vinha combater, logo assinalou o comissário Franchiotti” (La Nación, 27/06/2002).



CAOS DEBAIXO DA PONTE – “Enrique Pini, um vizinho de Avellaneda que se apresentou para declarar após o ocorrido, relatou a La Nación que viu como dois piqueteiros carregavam armas de fogo pela estrada durante sua fuga” [...] Um coletivo que passava pelo lugar denunciou na 1ª Delegacia de Avellaneda que outro grupo de encapuzados o assaltou com escopetas Itaka e pistolas automáticas pouco antes do enfrentamento. Logo incendiaram o coletivo com bombas molotov. O relato foi difundido pelo chefe do operativo, que tinha uma ferida no olho esquerdo. Um piqueteiro o golpeou selvagemente pelas costas enquanto declarava à imprensa no hospital fiorito, para onde tinha sido levada as vítimas” (La Nación, 27/

DO PIQUETE À TRAGÉDIA – “Era de supor que as tensões que desatam os atos ilícitos como os bloqueios de caminho por organizações de piqueteiros iam provocar algum dia um trágico saldo como o produzido ontem em Avellaneda [...] O mecanismo de protesto dos piqueteiros, lamentavelmente se extendeu de ponta a ponta o território nacional viola preceitos constitucionais, tais como os que garantem os direitos de trabalhar e transitar livremente por nosso solo, à margem de ocasionar severos prejuízos econômicos ao impedir a passagem de distintos meios de transporte de passageiros e de carga, que não podem chegar a tempo a seus destinos. Se a isso se acrescenta que quem organiza os piquetes vão armados, no mínimo com paus e outros objetos contundentes, não é necessário abundar em detalhes para conceber essas manifestações como autênticos atos de violência” (La Nación, 27/06/2002).

SE SABIA QUE OS PIQUETEIROS TINHAM ARMAS – “O governo bonaerense, por sua parte, acredita que os atos de violência protagonizados pela polícia provincial e os piqueteros “foram preparados por grupos de infiltrados para semear o caos no país” (La Nación, 28/06/2002).

“[...] os pescadores em rios revoltosos que aspiram conduzir o conflito social com uma dose maior de violência. É provável que à luz dos fatos sucedidos ontem, esse último grupo (os duros, violentos) tenha tido uma maior participação [...] Não se deve descartar que esse nível de desordem e rebeldia tenha sido gerados pelas diferenças suscitadas em distintas agrupações que convocaram os atos de protesta ontem, frente à advertência oficial de que as forças de segurança não permitiria os bloqueios de caminhos” (La Nación, 27/06/2002).



Os primeiros discursos veiculados no capital comunicacional são objetivos e enfáticos no momento em que informam seletivamente o que está ocorrendo na Ponte Pueyrredón: os piqueteiros dispostos a resistir avançam contra a polícia, estão avançando contra a polícia (violentos); o certo é que na passagem dos piqueteiros houve muita destruição (violência e delinquência); há armas de fogo (dos piqueteiros?); armados com estilingue e pedras dispostos ao enfrentamento (violentos); a polícia foi tremendamente agredida (piqueteros violentos, polícia passiva); responsáveis pelos incidentes e fortemente armados (reforça a tendência de que estão armados e, portanto são violentos); já se sabia da preparação piqueteira para uma luta armada e seu cronograma de hostilidades. Percebe-se que no discurso jornalístico os piqueteiros são sempre os agentes da ação violenta, enquanto a polícia apenas sofre seu acionar.

No plano estatal era assim mesmo que as coisas deveriam parecer, isto é, uma pequena quantidade de policiais cercados por uma multidão de piqueteiros agressivos. Porém, estando no local dos acontecimentos os jornalistas sabiam quem realmente portavam armas de fogo e disparavam contra os piqueteiros, isto é, a força repressiva, mas ao noticiar a realidade com a chamada “HÁ DISPAROS COM ARMAS DE FOGO”; SE SABIA QUE OS PIQUETEIROS TINHAM ARMAS acompanhada de discursos que informam sobre a violência piqueteira, permite transparecer a informação segundo a qual os piqueteiros são os possíveis responsáveis pelos disparos, já que são eles os violentos. Dessa maneira, vai se construindo uma corrente de opinião que acredita de fato que são os piqueteiros (duros) os responsáveis pela violência em Avellaneda e, por outro lado, livram o aparato repressivo estatal da responsabilidade pelos seus crimes terroristas (torturas, simulacros de fuzilamento, ameaças de morte, fuzilamentos, assassinatos etc.).

Os discursos dos jornais impressos reiteravam essa mesma versão dos acontecimentos e acrescentavam enfaticamente a presença de inimigos imaginários na mobilização, responsáveis por elevar o grau de violência contra as forças repressivas estatais: O GOVERNO GARANTE QUE FORAM INFILTRADOS e as suspeitas, como não poderia deixar de ser, são dois grupos piqueteiros (os duros e violentos) com posturas radicalizadas de esquerda, o que no pensamento axiológico se apresenta como algo extremamente negativo e ameaçador. O caráter ideologêmico dos discursos é flagrante e se apoia em mentiras deliberadas, tais como a de portar armas de fogo e dizer que não as portava, tal como fez Franchiotti, que ainda insistia em dizer que os disparos viam dos piqueteiros, que se demonstavam dispostos a combater.

Diversos outros discursos ideologêmicos foram veiculados no capital comunicacional buscando explicar as mortes de Darío e Maxi desvinculadas do acionar repressivo estatal. Quantitativamente[10] e qualitativamente tais discursos expressaram os interesses hegemônicos no interior do bloco dominante e se manifestaram através do pronunciamento de diversos burocratas que, uma vez mais, se fundamentava no suposto caráter vandálico e delitivo das organizações piqueteiras para criminalizá-las e responsabilizá-las pelos assassinatos, apresentados como fruto de uma richa interna (ARTESE, 2013).

“Houve casos, como o que denunciou o motorista de um coletivo, de homens que levavam bombas molotov, escopetas e armas. Que não são parte dos que habitualmente se manifestam” (Juan José Álvarez, Secretário de Segurança, La Nación, 27/06/2002).

“Os piqueteiros se mataram entre eles” (Felipe Solá, governador de Buenos Aires, Página 12, 30/06/2002).

“A metodología utilizada por alguns grupos não encontra justificativa e se torna perigosa. A estratégia de bloquear as estradas e ruas de maneira sistemática supõe uma violência intrínseca que gera reações nos setores da população diretamente afetada por seus operativos. Mas, aliás, é notório o acionar, no marco de grandes colunas de manifestantes pacíficos, de grupos minoritários –geralmente atuam com os rostos cobertos e armados, pelo menos com paus e pedras- que sustentam uma atitude de beligerância e promovem, em determinadas circunstâncias, uma alta voltagem de violência” (Raúl Kraiselburd, diretor do Jornal, El Día, 28/06/2002).

O que está claro é que o bloco dominante não tem nenhum compromisso com a verdade, mas sim com seus interesses de classes que para serem garantidos nessa conjuntura, dependia do fim da contestação social piqueteira e isso é o que mais importava e justificava a fórmula: repressão violenta, discurso ideologêmico/invenção de inimigos imaginários e outras inverdades grotescas. O discurso do secretário de segurança oculta uma verdade para apresentar uma inverdade, pois os homens que foram vistos na mobilização com bombas molotov, escopetas e armas, e que incendiaram o coletivo eram policiais travestidos de piqueteiros, com o claro objetivo de criminalizar as ações piqueteiras, inventando um inimigo imaginário potencial para transferir a responsabilidade pelas mortes e outras brutalidades que o operativo repressivo seguramente geraria.

A afirmação objetiva do governador de Buenos Aires e de outros burocratas governamentais, de que os piqueteiros se mataram entre eles, apenas demonstra a vileza utilizada para criminalizar a qualquer custo os contestadores radicais, pois o que não faltava para os piqueteiros, caso a disposição fosse para fuzilar alguém, eram alvos policiais de todas as cores e por todos os lados para apontar. E com certeza teríamos Franchiotti, Carlos Leiva e Acosta como vítima da suposta violência de piqueteiros armados e não Darío e Maxi.

A maneira como o operativo repressivo realmente procedeu e a forma como o bloco dominante o apresentou, através do trabalho conjunto no interior do capital comunicacional, demonstrava que havia um planejamento prévio, uma forma determinada para proceder: reprimir brutalmente com uma imensa quantidade de forças policiais, inclusive à paisana, autorizada a atirar para matar, construir uma corrente de opinião que confunda a sociedade e a faça acreditar na existência da violência piqueteira e, posteriormente, responsabilizar o movimento piqueteiro (os grupos radicalizados e duros) pelas mortes ocorridas. Para isso, setores do bloco dominante em conjunto (capital comunicacional, burocracia, intelectualidade etc.) e as forças repressivas precisaram agir de forma extremamente planejada e com diversas ações criminosas.

Vários indícios apontam para a existência de uma planificação com vistas a ampliar a magnitude e brutalidade repressiva, assim como transferir as responsabilidades para determinados setores piqueteiros (os duros e violentos, com agentes externos infiltrados) etc.: a) a existência de policiais à paisana, não identificados como força repressiva e por isso ampliando a potencialidade da repressão e da situação de vulnerabilidade dos manifestantes. Vários policiais e suas armas não figuraram nos registros oficiais, contrariandos as normativas de segurança; b) Denúncias da existência de uma patrulha policial que destruía diversos vidros de carros, para posteriormente acusar o movimento piqueteiro, assim como a suspeita de que policiais vestidos de piqueteiros teriam incendiado um coletivo durante a mobilização; c) A existência de policiais vestidos como piqueteiros infiltrados na manifestação portando armas (as mesmas utilizadas pela polícia, para que não tenhamos mais nenhuma dúvida – pistolas 09 mm e escopetas/itakas) e atirando, tudo isso com o intuito de confundir a população e transferir a responsabilidade das mortes aos próprios piqueteiros e suas disputas (violentas) internas. Patrícia Walsh, deputada da cidade de Buenos Aires (MST), afirmou ter visto um homem “vestido de piqueteiro conversando de forma familiar com (policiais) uniformizados” (Página 12, 11/07/2002); d) Denúncias de policiais à paisana em ação conjunta com outros fardados, em automóveis sem placas detendo manifestantes, invadindo residências e prendendo diversas pessoas; e) Prática de torturas e simulacro de fuzilamentos nas delegacias; f) Diversas ameaças foram realizadas contra amigos e familiares das vítimas fuziladas em Avellaneda, assim como do advogado Claudio Pandolfi da CORREPI – Coordenadora Contra a Repressão Policial e Institucional - e do fotógrafo Sergio Kowalewski, responsável pelas fotos dos policiais atirando contra Santillán na estação de Avellaneda; g) Inúmeros policiais foram registrados capturando seus cartuchos de chumbo no asfalto para não deixar provas do uso de armas de fogo etc. (ANÍBAL VERÓN, 2012; ARTESE, 2009, 2013).

A segunda parte do plano estatal era a de reproduzir os discursos ideologêmicos no capital comunicacional, com vistas a garantir a construção de uma corrente de opinião hegemônica em torno da versão oficial: “os piqueteiros se mataram entre eles”; “os piqueteiros são violentos, delinquentes, grupos exóticos (infiltrados) e usam armas de fogo” etc. Segundo Laura Vales, jornalista do Página 12, durante todo o dia 27 de junho de 2006 “houve uma pressão muito forte para que comunicasse a realidade de que os piqueteiros haviam se matado entre eles, uma pressão desde o governo de Duhalde, muito forte para que saísse isso” (ESCOBAR e FINVARB, 2007, 25min53seg). Sem dúvida, foram essas as notícias que a maioria dos jornais nacionais veiculara no dia 27 de junho, como demonstramos acima.

Os discursos veiculados pelo capital comunicacional e que são expressão do bloco dominante carregam implícita e explicitamente a informação segundo a qual alguns setores piqueteiros constituem um grupo social violento, constituído por elementos externos infiltrados (guerrilheiros e traficantes de outros países), preparados para uma luta armada, dispostos a derrubar os poderes constituídos (revolucionários comunistas) e implantarem o caos. Dessa maneira se constrói inimigos imaginários que legitimam a repressão, visto que passam a representar uma ameaça a toda sociedade. De militantes lumpemproletários que lutam contra a regularização da vida miserável se tornam perigosos inimigos, muitas vezes estrangeiros, da nação.

Nesse sentido, reafirmamos que não existe repressão estatal eficaz sem posicionamentos ideologêmicos eficazes do capital comunicacional (Red Eco Alternativo, 2009). Contudo, naquela cirscunstância específica, na qual os acontecimentos eram registrados por diversas pessoas não vinculadas ao capital comunicacional, inclusive jornalistas independentes, o bloco dominante não conseguiu promover a corrente de opinião que apontavam os piqueteiros como os responsáveis pelas ondas de violência e pelas mortes, pois no dia 28/06/2002 centenas de jornalistas e fotógrafos independentes que cobriram o operativo repressivo contra o movimento piqueteiro, disponibilizariam as imagens (fotos e filmagens) do envolvimento da polícia nos atos de violência e nas mortes dos dois piqueteiros e, consequentemente, de toda a sinistra armadilha estatal.

Sem sombra de dúvidas, a maior demonstração dos estreitos e inescrupulosos vínculos existentes entre discurso jornalístico (ideologêmico), burguesia e poder estatal na Argentina foi fornecida pelo posicionamento mesquinho do Jornal Clarín, diante dos episódios de imensa brutalidade repressiva como o que resultou no Massacre de Avellaneda. No momento em que Franchiotti e dois de seus homens ingressaram na estação Avellaneda e fuzilaram Darío Santillán pelas costas, estavam presentes no hall da estação o fotógrafo independente Sergio Kowalewski e o fotógrafo do Jornal Clarín Jose Mateos. Ambos registraram, em uma sequência de fotos, o momento em que Darío foi fuzilado. Desde as 18hs00min do dia 26 de junho a sequência de fotos registradas por Jorge Mateos estava à disposição da equipe de redação do Jornal Clarín que, como se soube posteriormente, optou por não publicá-las. Pelo contrário, demonstrou concretamente o quanto de cinismo e sicofantia o discurso do capital comunicacional pode comportar para garantir o poder burguês. A forma como foi construído o editoral do dia 27 de junho de 2002 é prova cabal disso. Em sua capa, destacado em letras maiúsculas e negrito, trazia a seguinte manchete:

“A CRISE CAUSOU 2 NOVAS MORTES – Não se sabe ainda quem disparou contra os piqueteiros” (Clarín, 27/06/2002).

Em outros títulos e seus respectivos discursos pode-se ler:

Outra vez a violência [...] UMA ESCALADA DE VIOLÊNCIA QUE TORNA MAIS FRÁGIL A DEMOCRACIA – “De fato o grande responsável é o Estado, através do Governo nacional e nesse caso também do Governo bonaerense. Porque é o Estado que deve assegurar o cumprimento da lei e a vigência das garantias para os cidadãos. Nesse caso, estamos frente a um estado ineficiente para controlar os grupos violentos e antidemocráticos [...]” (Clarín, 27/06/2002).



Outra vez a violência [...] CENAS DE VIOLÊNCIA E MORTE EM AVELLANEDA, À MARGEM DO RIACHULEO – A Aníbal Verón, o setor dos piqueteiros duros.

“O movimento – que usa o nome do piqueteiro morto em Tartagal, Salta, em novembro de 2000 – iniciou seus protestos há um ano e meio; e se envolve no setor piqueteiro mais radicalizado” (Clarín, 27/06/2002).



Outra vez a violência [...] HOUVE DOIS MORTOS E MAIS DE VINTE FERIDOS – “Até bem tarde da noite não havia informações sobre as circunstâncias em que se produziram as mortes. Só se sabe que os dois jovens morreram por impactos de bala, na estação de trem de Avellaneda” (Clarín, 27/06/2002).



A CRISE, A VIOLÊNCIA E AS POLÍTICAS PÚBLICAS – “Segundo a informação disponível até o momento, durante o dia de ontem não se desenvolveram somente as ações habituais dos piqueteiros, senão também atos de vandalismo, delitos comuns e agressões à pessoas. Os protagonistas desses atos podem ter sido pessoas pertencentes aos grupos piqueteiros ou outros cujo objetivo era criar o caos com fins basicamente políticos [...] Por uma parte, o desenvolvimento ou consolidação de grupos cujo propósito e metodologia excedem largamente ao dos piqueteiros. De fato, na maioria dos piquetes e em suas mobilizações participam mulheres e crianças, enquanto ontem umas e outras estavam ausentes e algumas colunas estavam encabeçadas por pessoas providas de paus, o que demonstra uma disposição ao enfrentamento. Quer dizer que, a violência pode ter sido, mais que uma consequência das tensões criadas nesse tipo de situações ou de um mal proceder policial, um ato buscado” (Clarín, 27/06/2002).



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Figura 23– Capa da edição do jornal Clarín do dia 27 de junho de 2002, um dia após o Massacre de Avellaneda.

O conjunto discursivo, que compôs as matérias veiculadas pelo Clarín sobre o massacre de avellaneda, não deixa margens para dúvidas quanto aos propósitos fundamentais da edição do dia 27 de junho de 2002: ocultar a realidade do Massacre de Avellaneda, ludibriar a opinião dos leitores e forçar uma corrente de opinião favorável ao poder. Começando pelo título canalha de sua manchete na capa, que não era lá uma grande novidade uma vez que na edição de 13 de abril de 1997 também havia responsabilizado uma entidade metafísica (a crise) pela morte de Teresa Rodríguez em Cutral-Có, está clara a intenção de ocultar a realidade da brutalidade repressiva estatal com um discurso metafísico que apresenta a crise como a responsável pelas mortes. Ora bolas, quem de fato apertou o gatilho (extremamente fácil) das armas de fogo/escopetas durante toda a repressão estatal? Quem realmente se encontrava armado no interior da estação Avellaneda no momento em que Jose Mateos (fotógrafo do Clarín) capturou a sequência de fotos do fuzilamento de Darío Santillán? Por que razões tais sequências de fotos foram ocultadas na primeira edição sobre o Massacre de Avellaneda, visto que o Clarín já as possuía desde as 18hs00min do dia 26 de junho? Outras perguntas também são instigantes: Por que razões o Clarín enviou seus jornalistas somente após o término do operativo repressivo, quando só existiam as manchas de sangue na estação? Não estaríamos diante de uma renúncia explícita em cobrir acontecimentos extremamente relevantes para a sociedade?

A verdade é que o jornal Clarín deliberadamente ocultou a responsabilidade da repressão policial pelas mortes dos dois piqueteiros e insinuou, durante todos os discursos veiculados naquela edição, que o movimento piqueteiro especialmente os setores apresentados como duros, mais radicalizados, violentos e antidemocráticos, eram os responsáveis pela escalada de violência. A forma como o Clarín realizou esse processo de criminalização contou com a estratégia discursiva de implicitamente afastar a responsabilidade pelas mortes do aparato policial, alegando ser a crise a responsável pelas mesmas, deixando “livre” para intepretações (não se sabe ainda quem disparou; só se sabe que os dois jovens morreram por impactos de bala), e, ao mesmo tempo, fornecendo explicitamente elementos que induzam a uma interpretação extremamente parcial de que foram os próprios piqueteiros, que por isso eram constantemente apresentados como violentos e antidemocráticos, a Aníbal Verón – o setor dos piqueteiros duros, setor piqueteiro mais radicalizado, caóticos, vândalos, delinquentes, agressores, armados e dispostos ao enfrentamento (e outras inúmeras caracterizações negativas, apresentadas sistematicamente pelo capital comunicacional), e que de forma deliberada tais setores buscavam a morte de alguns piqueteiros para poder tirar proveito político dessa situação.

Até mesmo algumas agrupações piqueteiras, com postura mais conservadora, moderada e em constantes negociações com o governo de Duhalde, apresentavam discursos criminalizadores das organizações piqueteiras mais combativas e com tendências anticapitalistas:

Capciosamente D’Elía (dirigente da organização piqueteira moderada FTV) expressou que “nós sempre reclamamos em paz e jamais temos tampado a cara” (diario Clarín, 28-06-02). Logo aderiu à hipótese do oficialismo, abonando as versões sobre uma intenção insurrecional e criminalizando diretamente as agrupações identificadas com ideologias de esquerda: “existe um setor da esquerda que desde alguns meses acredita ser o eleito para conduzir a revolução na Argentina e tem como objetivo derrubar Duhalde” (Clarín, 2-07-02); e “existe infiltração ideológica” (El Día, 1-07-02), remetendo ao grupo Quebracho. Este tipo de apreciações, também efetuadas nos episódios anteriores, aprofundaram a brecha existente entre os piqueteiros considerados “combativos” e as agrupações de D’Elía e Alderete. Suas interpretações foram registradas no documentário “La crisis causó 2 nuevas muertes” de Patricio Escobar e Damián Finvarb, que faz alusão ao titular do diário Clarín do dia 27 de junho. Ali expôs com maior eloquência sua caracterizão dos fatos ao considerar que os integrantes do Bloco Piqueteiro “combinaram com o governo de Duhalde uma repressão de baixa intensidade, ou seja ‘nós vamos ao bloqueio, vocês atiram alguns gases contra nós e nós vamos embora” Ao governo lhe serve porque pode demonstrar em Washington que tem autoridade para dissolver o conflito social, e aos dirigentes isso lhes servia porque lhes permite se colocarem no centro da cena política e dizer que era um governo repressor, autoritário, e que eles eram os verdadeiros piqueteiros. Era um negócio para ambos. Por quê? Porque necessitavam de mortos (ARTESE, 2013, p. 141).

Discursos criminalizadores semelhantes foram veiculados por outras empresas capitalistas de comunicação, oferecendo outra explicação ideologêmica, segundo a qual o massacre de avellaneda foi resultado de uma ação inssurreicional sistematicamente organizada para a derrubada do governo e tomada do poder, recorrendo novamente à figura de um dos inimigos imaginários inventados (o subversivo terrorista de esquerda) em períodos prévios da história argentina:

“As ações de Avellaneda não constituem um ato isolado senão resultado de ações elaboradas que constituem um plano de luta organizado e sistemático, que pode chegar a ameaçar e substituir a fórmula do consenso que a maioria dos argentinos tem escolhido. Tem quem prefere a linguagem da violência” (Jorge Matzkin, ministro do interior, La Nación, 27/06/2002).

“Nós já conhecíamos há 20 dias que ia acontecer alguma coisa com essa característica, porque sabíamos, por tudo que comentavam, que se organizavam no dia 22 e 23 no estádio Gatica em Domínico uma assembleia piqueteira em que se discutiria as ações a seguir, nessa assembleia se falou de luta armada, nessa assembleia se definiu o que eles chamam de plano de luta que não é outra coisa senão um cronograma de hostilidades” (Aníbal Fernandez, secretário geral da presidência, TV América, 26/06/2002).

“Por detrás dos grupos piqueteiros operam setores de ultraesquerda que buscam questionar a vigência da democracia. Esses setores estão interessados em convencer a gente que a democracia é incompatível com a justiça social e com uma política social alternativa (Carlos Vila, subsecretário da Segurnaça Interior, La Nación, 01/07/2002).

“Os dolorosos enfrentamentos que tem sido registrado nesses últimos dias como consequência dos distúrbios causados por grupos piqueteros – muito deles com rosto cobertos, como nos tristes tempos da subversão terroristas devem encontrar uma imediata resposta na consciência moral dos argentinos (…) tendente a modificar a raiz dos hábitos de violência que estão se instalando no campo do protesto social” (Bartolomé Mitre, diretor de La Nación, 28/06/2002).

“As mais altas fontes do governo asseguram que as primeiras averiguações das forças policiais e de inteligência apontam as agrupações piqueteiras Corrente Aníbal Verón e Movimento Teresa Rodríguez. E dentro dessas, estariam identificados ativistas vinculados com o representante das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), Javier Calderón, entre outros grupos revolucionários” (La Nación, 28/06/2002).

“Ontem o Governo de Duhalde pediu à justiça que investigue um suposto complô destinado a derrubar ‘os poderes constituídos’, ao apresentar os elementos de prova reunidos logos depois dos enfrentamentos que antes de ontem causaram duas mortes durante uma marcha piqueteira [...] O governo temeu na verdade que a violência se recrudecera depois que, antes de ontem, na Ponte Pueyrredón, na cidade de Avellaneda, se produziram dois mortos entre os piqueteiros, durante enfrentamentos com as forças de segurança” (La Nación, 28/06/2002).

A recorrência a inimigos imaginários é uma tendência concreta em períodos de radicalização da luta de classes, pois nesses períodos o bloco dominante deve reprimir o avanço radical da contestação social, pois do contrário não consegue garantir a reprodução das condições necessárias para a acumulação capitalista. Contudo, a repressão violenta não deve se apresentar nua e crua à sociedade, principalmente para evitar maiores adesões e apoio aos movimentos de contestação social, assim como evitar a transparência da realidade concreta da luta de classes, que é deslocada para uma guerra maniqueísta entre os que querem manter a ordem e os que querem criar desordem. E para isso servem os inimigos imaginários, isto é, para camuflar a brutal ofensiva de classe, apresentando-a como uma ofensiva legítima contra inimigos violentos e perigosos que atentam contra a sociedade e seus valores como um todo. Dessa maneira, os contestadores mais radicais são transformados pelo bloco dominante em diversos inimigos imaginários da sociedade e o papel do capital comunicacional é o de tornar tais discursos criminalizadores correntes de opinião predominantes na sociedade e capazes de criarem um consenso que legitime a brutalidade da violência de classes, travestida de repressão contra inimigos sociais (imaginários).

O crescente processo de criminalização dos movimentos de contestação piqueteira e dos seus métodos de lutas exprime a face penal contrainssurgente do estado neoliberal argentino e de sua determinação em tornar regular a dinâmica da acumulação integral na contemporaneidade. Para isso, ele precisa criminalizar o lumpemproletariado e diversas outras classes e frações de classes, assim como diversos grupos sociais, considerando-o uma classe social perigosa, porém travestida de inimigos imaginários, e seus movimentos de contestação da regularização neoliberal e suas perversas consequências, responsáveis por sua vida miserável à margem da divisão social do trabalho. Além disso, a emergência de lutas sociais com tendências cada vez maiores à radicalização pressiona o estado e obstaculiza cada vez mais o processo de acumulação. Na contemporaneidade, o processo de lumpemproletarização se apresenta como uma alavanca da acumulação, mas também da contestação social radical.

Referências Bibliográficas:

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ARTESE, Matías (2009). La construcción de representaciones sociales en torno protesta social y a la represión institucional. Seis estudios de caso entre los años 1996 y 2002. 2009. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade de Buenos Aires, Buenos Aires, 2009. 355 p.

____ (2013). Cortes de ruta y represión – la justificación ideológica de la violencia política entre 1996-2002 . Buenos Aires: Eudeba.

BRAGA, Lisandro (2016). Repressão estatal e capital comunicacional – o bloco dominante e a criminalização do movimento piqueteiro na Argentina. 2016. Tese (doutorado em Sociologia) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2016, 310 p.

COTARELO, María Célia (2005). Aproximación al análisis de los sujetos emergentes en la crisis de 2001-2002 en Argentina. Publicación del Programa de Investigación sobre el Movimiento de la Sociedad Argentina – PIMSA, número 56.

ESCOBAR, Patrício e FINVARB, Damián (2007). La crisis causó 2 nuevas muertes – los médios de comunicación em la Massacre de Avellaneda. Buenos Aires, 2007. 1 dvd de vídeo (85 min.).

MTD, ANÍBAL VERÓN (2012). Darío y Maxi – dignidad piquetera. Buenos Aires: El colectivo.

RED, Eco alternativo (2009). Discurso mediático e criminalización de la protesta. Em: KOROL, Claudia. Criminalización de la pobreza y de la protesta social. Buenos Aires: Editorial el colectivo; America libre.

VARESI, Gastón Ángel (2012). Hegemonía y acumulación en el gobierno de Duhalde (2002-2003). V Jornadas de Sociologia da Universidade Nacional de La Plata, 5 a 7 de dezembro de 2012.

VIANA, Nildo (2015). Blocos sociais e luta de classes. Revista Enfrentamento. Ano 10, número 17, jan./jul.










[1] Doutor em Sociologia/UFG, professor de Teoria Política e Argentina Contemporânea/UFMS e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas América Latina Contemporânea/NEPALM.


[2] A Lei de Convertibilidade 23.928/91, sancionada pelo Congresso em 27/03/1991, declarou a conversão da moeda (01 peso por 01 dólar) a partir de 01/04/1991, estabelecendo a obrigatoriedade do BCRA vender a quantidade de dólar que lhe fosse requerido de acordo com essa paridade (01 por 01 ) e manter suas reservas disponíveis em ouro e em divisas estrangeiras em um montante equivalente a não menos de 100% da base monetária, que era definida de maneira padrão como a soma da moeda circulante mais os depósitos à vista das entidades financeiras no Banco Central e diversas outras cláusulas. Dessa maneira, o BCRA tornou-se uma espécie de currency board (caixa de conversão64) suis generis, responsável por garantir a convertibilidade.


[3] “Em nossa análise, o lumpemproletariado é composto por todos aqueles que se encontram marginalizados da divisão social do trabalho e todo trabalhador (em potencial) compõe essa classe “durante todo o tempo em que está desocupado parcial ou inteiramente”: desempregados temporários, subempregados, mendigos, sem-teto, trabalhadores precários em condições de grande instabilidade e irregular (desemprego disfarçado) etc.” (BRAGA, 2016, p. 124).


[4] “Em resumo, a gênese do movimento piqueteiro não se relaciona com um único processo. O movimento piqueteiro não é o produto exclusivo dos piquetes e puebladas que sacudiram as distantes províncias argentinas nos último anos, porém tampouco brotou naturalmente dos assentamentos originados nos anos 80 na província de Buenos Aires. É a convergência desses dois afluentes o que vai permitir a formação, expansão e ainda a posterior potencialização do movimento piqueteiro. A confluência entre, por um lado, ação disruptiva, dinâmica assembleiaria e identidade piqueteira, originária dos piquetes e puebladas do interior do país, e, por outro lado, os modelos de organização e militância territorial, desenvolvidos de maneira paradigmática em determinadas regiões, sobretudo em La Matanza e no eixo sul do conurbano bonaerense” (SVAMPA, 2010, p, 242).


[5] “O bloco dominante se constitui a partir de determinado regime de acumulação, ou, o que significa dizer o mesmo com outras palavras, uma certa forma cristalizada de luta de classes. Em cada regime de acumulação emerge uma estratégia de classe da burguesia que é duradoura e o bloco dominante, mesmo que mude seus representantes individuais, grupos, partidos, frações de classes, etc., ele segue a linha estratégica adotada. É por isso que mesmo partidos do bloco progressista, quando conquista o aparato governamental, reproduz as políticas impostas pela estratégia da classe dominante adequada a determinado regime de acumulação” (VIANA, 2015, p. 18-19).


[6] Trata-se de “uma força de operações policiais, organizada, instruída e equipada para responder rapidamente e eficientemente a uma ampla gama de requerimentos de serviços [...] garantir segurança às pessoas e bens em caso de sabotagem, atentados, distúrbios, ‘explosão’ de lutas sociais, contingências fortuitas ou provocadas [...] restabelecimento e manutenção da ordem pública, garantindo a liberdade de trabalho [...]” (Prefectura Naval Argentina – Autoridad Marítima. Em: http://www.prefecturanaval.gov.ar/web/es/html/inst_servicios9.php).


[7] Durante o calor emocional do eminente enfrentamento entre piqueteiros e forças repressivas, que armaram uma emboscada com atitudes provocativas, uma piqueteira cai na emboscada ao agarrar a jaqueta do comissário Franchiotti (responsável pela emboscada) e lhe dar um puxão. A partir desse momento inicia-se a repressão brutal, que toma forma de uma caçada violenta e assassina pelas ruas, estações, sedes de agrupamentos políticos de esquerda etc.


[8] “Ambos militavam em distintos MTD da zona sul do conurbano bonaerense, agrupados na Coordenadora Aníbal Verón, ainda que não se conhecessem mutuamente. Santillán tinha uma reconhecida militância no MTD de Almirante Brown e logo de Lanús, e trabalhava em uma “construtora” comunitária fazendo tijolos de cimento. Kosteki se incorporou na mesma organização dois meses antes dos fatos, estudava desenho e pintura e trabalhava em uma horta comunitária dependente do MTD de Guernica, município de Presidente Perón” (ARTESE, 2013, p. 139).


[9] Momento em que o cabo Acosta (13) e o comissário Franchiotti (14) ingressam na Estação Avellaneda, minutos antes do fuzilamento de Darío Santillán. No piso encontra-se Maximiliano Kosteki fuzilado e Darío Santillán levantando e buscando escapar dos policiais que o assassinaria segundos depois. Na última imagem (15), temos Darío Santillán já fuzilado, agonizando no pátio da Estação Avellaneda. Em destaque o cartucho vermelho, próprio de munição de fogo, utilizado para fuzilar Santillán a 05 metros de distância.


[10] Aqui me refiro a um total de 69 discursos veiculados pelos jornais Clarín, La Nación, Página 12 e El Día entre os dias 15/06/2002 e 03/08/2002. Desse total de 69, 54 discursos continha algum tipo de caracterização dos contestadores sociais e seus métodos de contestação, dos quais 31 (57,4%) foram pronunciados por algumas frações de classe da burocracia (governamental, estatal/partidária).

sábado, 22 de outubro de 2016

Capital Comunicacional e Discurso do Poder

CAPITAL COMUNICACIONAL E DISCURSO DO PODER
Lisandro Braga
*Artigo publicado originalmente em Revista Enfrentamento, ano 10, número 17.

O conceito capital comunicacional, de autoria de Nildo Viana (2007c), é parte da tentativa desse autor em apresentar uma teoria do modo de comunicação na sociedade capitalista, mas que ainda se encontra inconclusa. Porém, tal conceito já apresenta grandes avanços na compreensão sobre tal modo de comunicação, que supera os construtos predominantes nas principais discussões sobre o tema: comunicação de massas, cultura de massas, indústria cultural etc.
Essa proposta está contida no seu capítulo Para além da crítica dos meios de comunicação (2007c), na obra Indústria cultural e cultura mercantil (2007), no qual resgataremos seus principais argumentos e suas contribuições para pensarmos os interesses de classe por detrás do capital comunicacional, excepcionalmente na sua forma jornalística impressa (e também digital), a relação com os discursos e correntes de opinião que ela produz (seleciona, recorta, destaca, oculta etc.) e veicula, principalmente em contextos de maior radicalidade da luta de classes.
A busca pela compreensão da realidade concreta exige um conceito que expresse adequadamente essa realidade, pois o conceito depende da realidade que busca expressar e não o contrário, visto que é a realidade social que o torna necessário e se expressa através dele. Portanto, se a realidade concreta é multifacetada e complexa, o conceito que busca expressá-la também deve ser: “se o conceito é expressão da realidade, as suas características são as mesmas desta” (VIANA, 2007b). Partindo dessa constatação, o autor contesta os construtos (sistematização de uma noção falsa da realidade), meios de comunicação de massa, cultura de massas, indústria cultural etc., pois esses carecem de um referencial teórico-metodológico mais apropriado e, por conseguinte, obscurecem mais do que expressam a realidade. Para o autor,
as concepções de indústria cultural, meios de comunicação de massa, cultura de massas, entre outras, padecem da falta de uma base metodológica e conceitual adequada. Apesar da influência do marxismo em muitas elaborações sobre a indústria cultural, as análises, na verdade, não utilizam o método dialético e acabam caindo em posições antidialéticas, mesmo utilizando a palavra dialética ou dizendo adotar tal método. Por outro lado, e mais grave, uma vez produzidas tais concepções, elas acabam se tornando referências obrigatórias e criam uma armadura linguística que dificulta o avanço intelectual sobre o fenômeno da comunicação na sociedade capitalista. O problema da linguagem é fundamental, pois a consciência a usa como elemento mediador para se desenvolver, e, quando a linguagem é coisificada, isto acaba efetuando uma coisificação da consciência. Tendo em vista que vivemos numa sociedade na qual a consciência coisificada predomina, então ela e a linguagem coisificada se reforça mutuamente (VIANA, 2007c, p. 08).
Seguindo sua análise, as teses da sociedade de massas e da cultura de massas, no qual os meios de comunicação (de massa) se inserem, são ideológicas. Primeiramente, o foco fundamental da discussão sobre a comunicação não deve residir nos meios de comunicação, mas sim no modo de comunicação, pois do contrário a mesma focaria fundamentalmente na questão tecnológica ou industrial. No fundo, a ideia de meios de comunicação remete aos “grandes meios de comunicação” (TV, rádio, impressa) e esses não são homogêneos como nos faz entender tais teses. Pelo contrário, existe uma heterogeneidade de meios (empresas oligopólicas, pequenas empresas etc.), que funcionam de formas distintas, mas que, no entanto, também possuem semelhanças entre eles. A questão é que a semelhanças não se encontram nos meios, mas sim no modo de comunicação instituído na sociedade capitalista.
A outra homogeneização que não corresponde com a realidade é a promovida pelo construto “massas”. Esse tal como o construto “povo” é uma abstração metafísica que “a tudo responde sem nada responder”, “aquela palavra mágica, refrão a que todos se apegam, fórmula para todos os problemas, sésamo para todas as portas, não tem limitações, contornos, características” (SODRÉ apud VIANA, 2007c, p. 10). Esse construto ofusca a realidade concreta, pois restringe a heterogeneidade da população, que é dividida em classes sociais antagônicas, com interesses distintos e em oposição umas às outras, à “massa”. No fundo, oculta que o modo de comunicação é capitalista e, portanto, interessado na reprodução das relações de exploração e na sociabilidade que nela se fundamenta. A obtenção de êxito nessa tarefa exige a posse dos meios de dominação (obscurecimento) comunicacional, quer dizer, a posse do capital comunicacional.
Nesse aspecto, a análise de Adorno e Horkheimer contêm avanços e limites. Avança no sentido de apresentar as insuficiências e o caráter ideológico do termo meios de comunicação de massa, mas se limita a isso, pois não consegue ultrapassar as barreiras da linguagem fetichizada, se aprisionando em outro construto: indústria cultural. Sendo assim como os outros, esse construto também precisa ser ultrapassado “efetivamente, não apenas através da crítica, mas também através da explicação do fenômeno que tal ideologia oculta”. E esse é o propósito fundamental de Viana (2007c), qual seja, apresentar um conceito que dê conta dessa realidade concreta e que ultrapasse os limites ideológicos desses construtos.
Apesar do avanço da explicação dos autores frankfurteanos em relação às teses dos meios de comunicação de massa, apesar dos seus momentos de verdade, o construto indústria cultural apresenta uma grande limitação explicativa e isso se deve, significativamente, aos limites da compreensão, explicação e crítica ao capitalismo, fornecida pela Escola de Frankfurt. A falta do uso do método dialético, consequentemente a ausência de uma teoria ampla e profunda do capitalismo, bem como a falta da perspectiva proletária[1] permitiu a esses autores apresentarem uma concepção não dialética do modo de comunicação capitalista (a indústria cultural) e, portanto, sem a percepção das contradições, da luta de classes e do potencial revolucionário do proletariado. Afinal de contas, alguns autores dessa escola estavam enfeitiçados pela crença da integração do proletariado ao capitalismo, tal como defendia Marcuse e outros. A não percepção da totalidade capitalista, da existência de um bloco capitalista subordinado, do imperialismo que lhe dá vida e a temporária estabilidade adquirida no bloco imperialista graças à sua superexploração etc. aponta para a principal fragilidade dessa compreensão, ou seja, a não percepção de que a estabilidade era relativa, temporária e não eterna.
Na verdade, a realidade concreta que o construto indústria cultural pretende sem grandes êxitos explicar, tem a ver com as características do emergente regime de acumulação conjugado, sua dinâmica etc. A acumulação conjugada (1945-1980), nasce do caminho aberto pela segunda guerra mundial, pois com a destruição massivas das forças produtivas criou-se uma situação generalizada extremamente favorável para a acumulação de capital, em um contexto de grande capacidade tecnológica/produtiva existente. No entanto, como todo regime de acumulação, o conjugado precisou lidar com suas contradições e para isso, como vimos anteriormente, buscou “integrar a classe operária ao capitalismo”, isto é, promover melhores condições para o consumo dessa classe social, aumentando a produção dos meios de consumo, desviando parte dos meios de produção para ele (VIANA, 1996; 2003).
Aqueles que denunciaram a integração da classe operária no capitalismo devido ao aumento do seu nível de renda viram apenas um lado da questão. Na verdade, tal integração ocorreu graças à instauração de um modo de vida capitalista também no interior da classe operária. O que explica isso é o desenvolvimento capitalista. Este é um desenvolvimento contraditório: ao mesmo tempo precisa “revolucionar” constantemente os meios de produção, ele necessita barrar este desenvolvimento [...] A partir das crises do capitalismo mundial que provocaram as duas guerras mundiais, a classe dominante buscou superar esta tendência através da intervenção estatal na produção-distribuição-circulação, da expansão transnacional e da expansão da produção dos meios de consumo e do setor de serviços (VIANA, 1996, p. 14).
Nesse processo de produção de meios de consumo e de serviços, duas características são fundamentalmente marcantes: a burocratização e mercantilização da vida[2]. Aqui, mencionaremos apenas o processo de mercantilização. A acumulação de capital ampliada exige a transformação de tudo em mercadoria e a produção de meios de consumo se apresenta como uma estratégia para combater a tendência declinante da taxa de lucro, pois cria e fortalece certos setores do capital. É nesse contexto, e visando tais fins, que o capitalismo oligopolista transnacional produz diversas necessidades de consumo, tais como os aparelhos domésticos (televisão, rádio etc.),
bens descartáveis e de obsolescência planejada, assim como é instaurada uma nova moral: em que, segundo Baudrillard: despesa, prazer e não-cálculo substituem os valores antigos de poupança, trabalho e patrimônio. Os indivíduos são compelidos a consumir como efetivação de seu dever de cidadãos. É o que o referido autor chamou de Fun-morality: “imperativo de se divertir e de explorar tudo a fundo todas as possibilidades de se fazer vibrar, gozar ou gratificar” [...] (ÓRIO, 2016, p. 08-09).
A transformação de tudo em mercadoria se expande, fortalecendo setores já existentes (capital comercial e outros) e dando origem a “novos” nichos de acumulação, tais como o de serviço (capital dos serviços) e o comunicacional (capital comunicacional). Por conseguinte,
o capital comunicacional é aquele voltado para o investimento capitalista nas empresas de comunicação, cada vez mais oligopolistas. É um novo setor do capital, que já existia de forma embrionária no regime de acumulação anterior, mas que se torna mais forte e vai produzindo um processo de concentração e centralização crescente. Assim, ao invés de indústria, um termo relativamente neutro e pouco preciso, trata-se de capital, que expressa relações sociais de exploração e acumulação, em contraposição a um mero processo de produção não definido linguisticamente, tal como indústria ou empresa. É o domínio do capital nas empresas de comunicação, formando empresas capitalistas de comunicação que se tornam, com o passar do tempo, oligopolistas. O capital comunicacional não produz cultura, arte. Ele produz mensagens, divulgação, comunicação das obras artísticas, culturais ou de informação. Os seus funcionários são assalariados, os demais, que não possuem vínculo empregatício são remunerados através de direitos autorais, pagamento por prestação de serviços, etc. [...] Assim, o conceito de indústria cultural é impreciso e eufemístico, enquanto que o conceito de capital comunicacional é preciso e nem um pouco eufemístico: expressa a dominação capitalista no processo de comunicação via meios tecnológicos (VIANA, 2007c, p. 14 – itálicos nossos).
Como todo capital, o comunicacional tende a se expandir de forma concentrada e centralizada, formando grandes oligopólios comunicacionais, concentrado nas mãos de um pequeno grupo, que passa a controlar um poderosíssimo meio de dominação social: a dominação comunicacional. Com isso, o caráter autoritário e vertical da comunicação, presente em toda sociedade fundada na exploração de uma classe social sobre outra, se amplia significativamente, constituindo, dessa maneira, o modo dominante e autoritário de comunicação capitalista. Por serem empresas capitalistas de comunicação produzem mercadorias (mensagens, informação, discursos etc.) que visam o lucro. A comunicação torna-se, além de autoritária e vertical, mercantil e lucrativa.
O capital comunicacional, através das empresas capitalistas de comunicação, buscam dois objetivos fundamentais. O primeiro consiste na busca pelo lucro, tanto o fornecido pela produção da mercadoria jornal quanto aquele oriundo da propaganda comercial que ele veicula etc.; o segundo interesse caracteriza-se pela busca de melhores condições ideologêmicas que garantam a regularização da sociabilidade (modo de vida) burguesa. Logo,
todo este processo reproduz os interesses da classe dominante. A indústria cultural produz uma padronização e manipulação da cultura, reproduzindo a dinâmica de qualquer outra indústria capitalista, a busca do lucro, mas também reproduzindo as ideias que servem para sua própria perpetuação e legitimação e, por extensão, a sociedade capitalista como um todo (VIANA, 2007c, p. 23).
Nesse sentido, o capital comunicacional não apenas se utiliza da alta tecnologia dos meios de emissão de comunicação/informação, como o faz de determinado modo. Para garantir a regularização das relações sociais existentes, o conteúdo discursivo jornalístico deve ser ideologêmico e axiológico, deve apontar para a naturalização da realidade e para a reprodução das representações cotidianas e ilusórias, que expressam predominantemente o imaginário social, bem como para a formação de uma consciência coisificada e não contestadora.  Em síntese, o conteúdo discursivo jornalístico não deve apontar para além da aparência dos fenômenos sociais, tal como a perspectiva da burguesia comunicacional não pode ultrapassar os limites da sociabilidade burguesa (VIANA, 2013; 2007d; 2008a).
O discurso jornalístico tem como propósito fundamental realizar a propaganda, isso é a transmissão de determinadas ideias ou acontecimentos e/ou determinadas ideias sobre determinados acontecimentos. Existem, basicamente, duas modalidades de propaganda, a propaganda comercial e a propaganda ideologêmica. Essa última é a que nos interessa. A complexidade e maior sistematização exigida para a produção e propagação de uma ideologia são incompatíveis com o formato discursivo exigido pelo jornalismo (mesmo impresso). Esse precisa de uma linguagem simples, objetiva e de fácil acesso ao grande público, no entanto a qualidade dessa linguagem deve ser ideologêmica, quer dizer sua representação sobre os fenômenos sociais deve se fundamentar em fragmentos de ideologia (sistema de pensamento ilusório), numa representação cotidiana[3] da realidade, marcada pela naturalização das relações sociais e pelos padrões dominantes dos valores na sociedade (axiologia[4]). O discurso jornalístico, portanto, equivale a uma das formas em que o capital comunicacional transmite sua perspectiva, que é determinada pelo bloco dominante[5]. Esse, por sua vez, conta com seus ideólogos e aparatos institucionais (estado, partidos políticos etc.) para produzir uma concepção hegemônica, uma corrente de opinião predominante na sociedade, que é reproduzida pelo capital comunicacional, através dos discursos que ele veicula. As correntes de opinião são entendidas por nós em sua dinamicidade, tendo seu período de nascimento, difusão e perecimento; são relativas a acontecimentos, processos sociais e políticos, questões polêmicas, produções culturais e ideológicas, demandas sociais e também, como veremos, relativas à contestação social. “Elas influenciam a formação de opiniões momentâneas, simuladas e resistentes em determinada conjuntura e por isso são conjunturais” (VIANA, 2015b, p. 12).
Por último, para concluirmos, nos resta apresentar a compreensão teórica que temos sobre o discurso e que utilizaremos na fundamentação desse trabalho. Afinal, o que é um discurso? Para respondermos essa questão é necessário, primeiramente, realizarmos uma discussão sobre a linguagem, isto é sobre o meio de manifestação do discurso. Sendo assim, o que é a linguagem? A busca por respostas a essas duas questões compõe, no fundo, parte da procura por respostas a uma questão mais ampla, isto é, a relação entre discurso e poder. Diversos teóricos se debruçaram sobre essa questão, no entanto, nem todas as respostas foram satisfatórias, visto que algumas apontaram para uma concepção metafísica, tanto de poder (como relação), quanto de discurso (formação discursiva) (FOUCAULT, 2012; 2012a). Sendo assim, buscaremos respostas a essas questões partindo de uma concepção dialética de linguagem e poder.
Ao partirmos dessa perspectiva, evidenciamos nitidamente a existência de uma relação íntima entre a linguagem e as relações sociais de determinada sociedade dividida em classes sociais. Em A ideologia alemã (1991), Marx e Engels já apontavam elementos que levam a essa compreensão:
a produção de ideias, de representações, da consciência, de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens, aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo ocorre com a produção espiritual tal como aparece na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, ideias etc., mas os homens reais e ativos, os homens que realizam (die wirklichen, wirkenden Menschen – o ser humano, ação humana), tal como acham condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e do intercâmbio que a ele corresponde até às suas formações mais amplas. A consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real. E se em toda ideologia os homens aparecem de cabeça para baixo como numa Câmera obscura, é porque este fenômeno deriva do seu processo histórico de vida, da mesma maneira que a inversão dos objetos na retina deriva do seu processo diretamente físico de vida [...] não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou se representam, e também não dos homens narrados, pensados, imaginados, representados, para daí se chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos, e com base no seu processo real de vida apresenta-se também o desenvolvimento dos reflexos e ecos ideológicos deste processo de vida [...] A moral, a religião, a metafísica e a restante ideologia, e as formas da consciência que lhes correspondem, não conservam assim por mais tempo a aparência de autonomia. Não tem história, não tem desenvolvimento, são os homens que desenvolvem a sua produção material e o seu intercâmbio material que, ao mudarem esta sua realidade, mudam também o seu pensamento e os produtos do seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência (MARX e ENGELS, 1991, p. 36-37).
Nessa passagem, Marx e Engels (1991) nos oferece importantes pistas para pensar a linguagem como um ato social, visto que essa emana do comportamento material dos seres humanos, logo de relações sociais estabelecidas entre eles (a linguagem da política, das leis, da moral etc.) e não uma realidade autônoma, existente por si só, nem tão pouco neutra. O ser humano, ao surgir no mundo, se depara com um conjunto de relações sociais já constituídas, na qual ele não decide se participará ou não delas. Assim como uma série de atitudes lhe serão impostas, o idioma que ele aprenderá a falar não é da sua escolha. Os valores, as ideias, os sentimentos, enfim a mentalidade já estará determinada independentemente da vontade do indivíduo. Sua interferência no mundo se dá a partir do momento em que passa a desenvolver sua consciência com a experiência (vivência). Portanto, sua consciência individual se forma socialmente a partir da imposição da cultura dominante (MARX e ENGELS, 1991; VIANA, 2009c). Porém, ainda assim é preciso questionar qual é a origem da linguagem e o que ela é.
A partir do momento em que a linguística surge como ciência autônoma, através da obra de Ferdinand Saussurre, passou-se a estudar internamente a linguagem. Daí por diante, seguindo Fiorin (2007), parte expressiva dos linguistas abandonaram a preocupação com as relações entre linguagem e sociedade, assim como as vinculações entre a linguagem e os seres que dela fazem uso. “Sua preocupação básica passou a ser a análise das relações internas entre os elementos linguísticos. Estabeleceu-se assim a chamada linguística estrutural” (FIORIN, 2007, p. 05).  Essa teve seu momento de apogeu e declínio, influenciou diversos pensadores nas últimas décadas e foi tomada como “ciência-piloto” por alguns, porém, nos últimos anos sofreu duras críticas de diversas outras correntes (sociolinguística, psicologia da linguagem, a análise do discurso etc.), que passaram a apresenta-la como sendo ideológica em seu conjunto, uma linguística burguesa.
Rousseau, em sua obra Ensaio sobre a origem das línguas (1987), apresentou uma explicação confusa e limitada sobre a origem da linguagem. Para ele, a linguagem não tem origem nas necessidades e na razão, mas sim (sem argumentos que comprovem) na moralidade e na paixão: “não se começou raciocinando, mas sentindo [...] todas as paixões aproximam os homens, que a necessidade de procurar viver força a separarem-se. Não é a fome ou a sede, mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera, que lhes arrancaram as primeiras vozes” (ROUSSEAU, 1987, p. 164). Apesar da tese insustentável de que os sentimentos – apresentados por ele de maneira metafísica – são a origem da linguagem, Rousseau já apontava aquilo que na contemporaneidade é aceito por muitos: a origem social da linguagem. No fundo, a origem da linguagem é tanto afetiva quanto material, e as duas comprovam seu caráter social. A existência humana só foi possível graças à associação e essa necessitou, sem sombra de dúvidas, da linguagem para se articular e agir em conjunto, como forma de garantir a sobrevivência coletiva.
Então de que maneira, a partir de agora, definir a linguagem? Sapir (1980) e Viana (2007c) apresentam uma definição semelhante de linguagem, na qual estamos de acordo. Para eles, a linguagem equivale a um conjunto de signos[6] (sonoros, gráficos, gestuais) criados e utilizados pelos seres humanos como meios capazes de possibilitarem a comunicação de ideias entre eles. Desse modo, a linguagem se estabelece através das relações sociais.
A linguagem é tão velha quanto a consciência; ela é consciência prática, tal como existe para outros homens, e por essa razão está começando realmente a existir para mim também pessoalmente; pois a linguagem, assim como a consciência, só brota da necessidade, da exigência, do intercâmbio com outros homens. Onde há um relacionamento, ela existe para mim: o animal não tem “relações” com coisa alguma, nem as pode ter (MARX apud FROMM, 1975, p. 100 – negritos nossos).
A linguagem
está submetida ao processo social, possuindo, portanto, a mesma dinâmica, historicidade e singularidade da sociedade onde ela emerge. Assim, linguagem, tal como coloca Fromm (1979), está intimamente ligada à sociedade na qual ela emerge, sendo que existe uma sinonímia entre linguagem e sociedade. A sociedade produz uma linguagem adequada a ela, com um léxico, uma semântica, uma gramática etc. que é específica e socialmente organizada (VIANA, 2007c, p. 19).
Nas sociedades de classes, nas quais as ideias dominantes são as ideias da classe dominante, expressão dos seus interesses de classe e a serviço da manutenção das relações de exploração e da consciência coisificada, é de se esperar que a linguagem também esteja perpassada por tais interesses e pela luta de classes que deriva deles. Coube inicialmente a Bakhtin (2010) desenvolver a tese segundo a qual a linguagem é o ringue no qual se confrontam os valores sociais antagônicos. Na introdução da obra de Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem (2010), Yaguello apresenta a principal tese desse autor:
se a fala é o motor das transformações linguísticas, ela não concerne os indivíduos; com efeito, a palavra é a arena onde se confrontam os valores sociais contraditórios; os conflitos da língua refletem os conflitos de classes no interior mesmo do sistema: comunidade semiótica e classe social não se recobrem. A comunicação verbal, inseparável das outras formas de comunicação, implica conflitos, relações de dominação e de resistência, adaptação ou resistência à hierarquia, utilização da língua pela classe dominante para reforçar seu poder, etc. Na medida em que às diferenças de classe correspondem diferenças de registro ou mesmo de sistema (assim, a língua sagrada dos padres, o “terrorismo verbal” da classe culta, etc.), esta relação fica mais evidente (YAGUELLO, 2010, p. 14).
A preocupação central de Bakhtin (2010) nessa discussão vincula-se à questão de saber como a “infra-estrutura” de determinada sociedade determina seu signo (“superestrutura”) e como o signo reflete e refrata a realidade em transformação.  Em outras palavras, como o modo de produção determina a linguagem enquanto uma forma de regularização das relações sociais apropriadas para esse modo de produção: sociedade capitalista, linguagem capitalista. No entanto, Bakhtin enfatiza que o signo também pode refratar a linguagem dominante, ou seja, pode constituir-se em um elemento de resistência à essa linguagem e, consequentemente à sociedade que lhe dá fundamento:
na realidade, todo signo ideológico vivo tem, como Jano (deus romano das mutações e transições), duas faces (uma voltada para frente e outra para trás). Toda crítica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva não pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras. Esta dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária. Nas condições habituais da vida social, esta contradição oculta em todo signo ideológico não se mostra à descoberta porque, na ideologia dominante estabelecida, o signo ideológico é sempre um pouco reacionário e tenta, por assim dizer, estabilizar o estágio anterior da corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem como válida hoje em dia. Donde o caráter refratário e deformador do signo ideológico nos limites da ideologia dominante (BACKHTIN, 2010, p. 48 – negritos e parênteses nossos).
Nessa passagem, Bakhtin demonstra que a linguagem é perpassada pela luta de classes e essa gira em torno dos signos utilizados na comunicação humana, pois é do interesse da burguesia impor determinados signos e evitar o desenvolvimento de outros, objetivando emperrar o livre avanço da consciência para além das fronteiras do capital. Essa busca, nem sempre intencional, pretende impor a ideologia burguesa, seus valores, concepções e mentalidade. No entanto, há um processo de resistência, levado a cabo pelas classes exploradas, com o intuito de expressar uma linguagem diferenciada. Contudo, tal resistência se apresenta mais nitidamente apenas em períodos de radicalidade e avanço da luta proletária e/ou de outras classes sociais exploradas e desprivilegiadas (BAKHTIN, 2010). Apreendemos, por conseguinte, que embora existam enormes obstáculos para o desenvolvimento de uma consciência e mentalidade contrária à burguesa, existem também brechas que permitem a transformação da linguagem, pois “apesar da língua-padrão (ou “culta”) ser imposta socialmente pelo estado e instituições auxiliares, especialmente a escola, existe uma língua diferenciada, chamada linguagem coloquial (ou popular) que é muitas vezes vista com preconceito” (VIANA, 2007c, p. 20). 
A sociedade capitalista possui uma mentalidade e ideologia dominante, fundada no poder da classe burguesa. É essa classe que, através do auxílio de diversas outras classes sociais (burocracia, intelectualidade etc.), produz uma atribuição de sentido às palavras e a torna dominante. No entanto, outras classes sociais, no enfrentamento contra a classe dominante, tendem a atribuir outros sentidos às palavras, um sentido a partir da perspectiva das classes exploradas, uma ressignificação da linguagem conforme indica a tese bakhtiniana da “plurivalência do signo”. Deste modo, a palavra
é o lugar privilegiado para a manifestação da ideologia; retrata as diferentes formas de significar a realidade, segundo vozes e pontos de vista daqueles que a empregam. Dialógica por natureza, a palavra se transforma em arena de luta de vozes que, situadas em diferentes posições, querem ser ouvidas por outras vozes (BRANDÃO, 2012, p. 09).
Uma cena do documentário The Take – occupy, resist, produce (AVI e KLEIN, 2004) fornece uma demonstração clara de como classes sociais distintas significam a mesma realidade de forma também distinta. Em uma entrevista durante o processo de ocupação e tomada da fábrica Cerâmica Zanon, na Argentina (outubro de 2001), um operário ao ser questionado pelo produtor do filme, se a ocupação e tomada de uma fábrica não equivalia a um roubo, respondeu: “não, existe outra palavra para designar isso, chama-se expropriação, é por aí que entendemos”. Essa reinterpretação da ocupação e tomada da fábrica demonstra um elevado avanço da consciência operária, pois o termo expropriar, nesse caso, aponta para a restituição da posse aos seus verdadeiros proprietários: os produtores. Nesse sentido, enquanto a classe burguesa utiliza a palavra roubo para explicar determinada realidade, a classe operária, ao buscar reinterpretar a realidade, a partir da sua perspectiva, é coagida a utilizar outra linguagem, outras palavras. Deste modo, a luta contra a classe dominante e seus interesses exige uma linguagem não dominante, pois “o ponto de vista do proletariado se caracteriza discursivamente por tomadas de posição a favor de certas palavras, formulações, expressões etc., contra outras palavras, formulações ou expressões, exatamente como uma luta pela produção dos conhecimentos” (PÊCHEUX, 2009).
A compreensão sobre o caráter social da linguagem, e da luta de classes que a atravessa, facilita a compreensão da mensagem que a linguagem veicula. E com essa compreensão podemos, a partir de agora, focar nossa análise na relação entre discurso e poder. O conceito de linguagem não deve ser confundido com o de discurso, pois o primeiro é bastante amplo, uma vez que faz referência ao uso de todos os recursos simbólicos existentes em determinada sociedade para efetivar a comunicação social. Além disso, a linguagem é marcada pela polissemia.
De acordo com Viana (2007c), existem basicamente três razões para que discurso e linguagem sejam definidos de forma distinta: a) enquanto a linguagem é fundamentalmente um meio de expressão, o discurso é a própria expressão. Portanto, a linguagem é um meio de manifestação que pode comportar diversos discursos; b) Ao contrário da linguagem, o discurso é unissêmico, isto é, deve possuir uma coerência semântica. Na linguagem, um termo ou palavra pode possuir inúmeros significados (por exemplo, a palavra economia), já no discurso ele possui um significado único que pode conviver com outros significados externos ao discurso. Nesse sentido, o discurso é composto por seus elementos internos (estrutura) e por seus elementos auxiliares (conjuntura). Portanto, um discurso é unissêmico em sua estrutura, todavia pode ser polissêmico na sua conjuntura; c) Por fim, podemos afirmar que enquanto na linguagem predomina a heterogeneidade e a polissemia, no discurso só há a unissemia em sua estrutura. Dessa maneira, o discurso é uma forma particular de manifestação da linguagem e é da sua particularidade que se extrai sua definição e distinção.
Segundo as análises introdutórias de Helena Brandão (2012) e de Eni Orlandi (2012) sobre a análise do discurso, a abertura de um espaço para o ingresso no campo dos estudos linguísticos, daquilo que mais tarde veio a se chamar discurso, foi realizada pelos estudos dos formalistas russos (Bakhtin, Voloshinov, Medvedev) nos anos 1920 e 1930. Foi nos anos 1950 e 1960 que a análise do discurso se constituiu como disciplina, principalmente, com a obra de Harris – Discourse analysis, 1952 –apresentando a possibilidade das análises ultrapassarem o confinamento no qual as frases se encontravam, estendendo procedimentos da linguística distribucional americana aos enunciados, denominados de discursos. As contribuições de Jakobson e Benveniste sobre a enunciação também foram decisivas na constituição dessa nova disciplina. Uma das poucas e primordiais definições de discurso foi fornecida por Émile Benveniste: “deve se entender por discurso em sua extensão mais ampla: toda enunciação que pressupõe um locutor e um ouvinte e, no primeiro, a intenção de influenciar o outro de algum modo” (apud Viana, 2007c). Essa tentativa de definir discurso nos parece pouco frutífera, visto que ela se fundamenta em generalizações grosseiras, pois a interlocução é um traço de toda a comunicação humana e não apenas de uma modalidade específica de sua manifestação, como é o discurso. Da mesma forma, a persuasão é um traço de determinados discursos (religioso, político, científico etc.) e não de todos os discursos (VIANA, 2007c).
No fundo, encontramos pouquíssimas definições para o termo discurso. Mesmo o Dicionário de análise do discurso (2004), organizados por Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau, não apresenta uma definição clara de discurso. Esse se contenta em apresentar as formas de discurso (forma de ação, interativo, contextualizado, assumido etc.), o que ele realiza, sem necessariamente defini-lo.
Os trabalhos iniciais no campo da análise do discurso, mencionados acima, demarcariam duas das principais correntes teóricas da análise do discurso: a escola americana e a escola francesa. Nesse trabalho, nos contentaremos em dialogar apenas com a escola francesa, visto que a americana pouco avançou em relação à questão do discurso, apresentando-o como uma simples extensão da linguística. Nos anos 50 seu precursor, Harris, com seu método distribucional, conseguiu
livrar a análise do texto do seu viés conteudista mas, para faze-lo, reduz o texto a uma frase longa. Isto é, caracteriza sua prática teórica no interior do que chamamos isomorfismo: estende o mesmo método de análise de unidades menores (morfemas, frases) para unidades maiores (texto) e procede a uma análise linguística do texto como o faz na instância da frase, perdendo dele aquilo que ele tem de específico. Como sabemos, o texto não é apenas uma frase longa ou uma soma de frases. Ele é uma totalidade com sua qualidade particular, com sua natureza específica (ORLANDI, 2012, p. 18).
A chamada Escola Francesa de Análise do Discurso designou a corrente da análise do discurso predominante na França entre os anos 1960 e 1970. O conjunto de pesquisas que compuseram essa escola foi desenvolvido na segunda metade dos anos 1960 e se consagraria com a publicação do número 13 da Revista Langages, cujo título foi A análise do discurso, bem como com o lançamento da obra Análise automática do discurso, de Michel Pêcheux, no ano de 1969 (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004). Pêcheux foi o autor mais expressivo dessa corrente teórica. No entanto, antes de apresentar sua concepção de discurso, é preciso, antes apresentar as sistematizações ideológicas de Foucault sobre o poder e o discurso, reconhecendo algumas de suas contribuições e apresentando os limites de sua concepção burguesa tanto de poder quanto de discurso. Isso se justifica pelo fato de Pêcheux ter sido influenciado por algumas categorias analíticas de Foucault, que posteriormente são revistas.
O conceito de formação discursiva é central na ideologia sistematizada por Foucault, porquanto, como um bom filósofo, esse autor abusa demasiadamente da metafísica em suas conceituações. Para ele,
no caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão e, no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas se pode definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações) diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva (FOUCAULT, 1987, p. 43).
Mais adiante, na mesma obra Arqueologia do saber (1987), ele reforça: “chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar na história” (FOUCAUT, 1987, p. 135). Portanto, o discurso “seria concebido, dessa forma, como uma família de enunciados pertencentes a uma mesma formação discursiva” (BRANDÃO, 2012, p. 33).
Essas passagens confirmam aquilo que está presente ao longo de muitas de suas obras, isto é, a concepção estruturalista, metafísica e ideológica de um intelectual conservador e, diga-se de passagem, que vinha estreitando seus laços com a burocracia e com os poderes institucionais do estado[7]. É interessante perceber que a metafísica, tal como a de diluir o discurso em uma fantasmagórica “formação discursiva”, de um “sujeito” abstrato que não pode ser identificado etc., está presente em diversas obras de Foucault desse período. Sua concepção sobre o intelectual específico e intelectual universal é, como em toda metafísica, destituída de concreticidade[8], assim como sua discussão sobre o poder[9] (FOUCAULT, 2012).
Como bem constatou Baudrillard em sua obra Esquecer Foucault (1984): a metafísica do poder de Foucault nada mais é do que um discurso do poder. O vínculo que esse intelectual passou a ter com a burocracia estatal, a partir da segunda metade dos anos 1960, aliado com as teses ideológicas que ele passa a produzir, compõe parte da ofensiva burguesa expressa no plano intelectual/cultural e que caracteriza a transição do regime de acumulação conjugado para o regime de acumulação integral, cumprindo um papel importante na manutenção da hegemonia burguesa. É por isso que em suas produções ideológicas sobre intelectuais, o poder, o discurso etc. as classes sociais concretas desaparecem, assim como suas contradições e a luta de classes.
Pêcheux buscou elaborar as bases de uma teoria materialista do discurso através de uma dupla perspectiva. Para ele, a semântica não constitui parte da linguística como a fonologia e a morfologia, na verdade ela é para a linguística “o ponto nodal das contradições que atravessam e organizam esta disciplina sob a forma de tendência, direções de pesquisa, escolas linguísticas etc.” (BRANDÃO, 2012, p. 39); é exatamente nesse ponto nodal expresso pela semântica que a linguística circunscreve a filosofia e outras ciências sociais ou o materialismo histórico. Para esse autor, a interferência da perspectiva materialista nos domínios da linguística apresentaria uma série de questões em relação ao seu objeto e sobre sua relação com outros domínios científicos (ciências sociais em geral). Alguns mecanismos linguísticos irão compor, segundo o autor, uma área de articulação da linguística com a “teoria histórica dos processos ideológicos e científicos” (BRANDÃO, 2012). Para Pêcheux,
 sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista, para o revolucionário e para o reacionário, para aquele que dispõe de um conhecimento dado e para aquele que não dispõe desse conhecimento. Entretanto, não pode concluir, a partir disso, que esses diversos personagens tenham o mesmo discurso: a língua se apresenta, assim, como a base comum de processos discursivos diferenciados, que está compreendido nela na medida em que, como mostramos mais acima, os processos ideológicos simulam os processos científicos (PÊCHEUX, 2009, p. 81).
Nessa passagem, Pêcheux realiza uma separação abstrata entre língua e discurso que acaba por reproduzir a dicotomia de Saussurre (1995) entre língua (estrutura formal invariante) e a fala (manifestação concreta da língua). Dessa forma, “o discurso estaria no segundo caso, o que demonstra que Pêcheux não percebeu que o primeiro caso só existe na concepção ideológica de Saussurre e nunca na realidade concreta” (VIANA, 2007c, p. 27). Portanto, tanto a concepção de Foucault quanto a de Pêcheux pecam por sua abstração metafísica. No primeiro pela influência do estruturalismo e, no segundo, pela influência do pseudomarxismo estruturalista. Por esse motivo, tais concepções são insuficientes para percebermos a relação concreta entres seres humanos concretos, divididos em classes sociais, e seus discursos, os interesses que eles expressam etc. Nesse caso, nos resta buscar uma concepção dialética de discurso.
Essa concepção dialética do discurso nós encontramos na obra Linguagem, discurso e poder – ensaios sobre linguagem e sociedade, de Nildo Viana (2007c), e, portanto, é essa concepção que fundamentará nosso trabalho. Nessa obra, o discurso é definido como
uma manifestação concreta e delimitada da linguagem. As suas partes constitutivas são a estrutura e a conjuntura e o caráter de sua estrutura é unissêmico. Isto quer dizer que o discurso é algo concreto e delimitado, ou seja, é sempre o discurso de um autor, de uma escola, de um grupo social, etc., que possui uma estrutura unissêmcia e é uma totalidade. Assim, o discurso é uma manifestação particular, específica, concreta da linguagem que possui uma estrutura unissêmica, pois um todo coerente e organizado, embora o nível da consciência e organização varie dependendo do discurso. A coerência e organização dependem de quem profere o discurso (VIANA, 2007c, p. 27-28).

Ao contrário das concepções fetichistas da linguagem e das abstrações metafísicas de discurso, tal como a “formação discursiva” (FOUCAULT, 1987; PÊCHEUX, 2009), aqui o discurso é apresentado como uma manifestação concreta da linguagem do seu produtor, logo é sempre o discurso de alguém, de quem o profere (indivíduo, grupo social, instituição, classes sociais etc.). Se, como afirmou Marx e Engels (1991), “a consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente”, então o discurso só pode ser a manifestação, por meio da linguagem, da consciência desse ser consciente, que se expressa a partir da posição que ocupa na divisão social do trabalho, a partir da consciência que possui no interior dessa divisão, logo o discurso é um fragmento de uma consciência que para “descobrir seu processo de produção é preciso compreender o seu produtor” (VIANA, 2007c).
Os discursos são formados em determinados contextos sociais e culturais nos quais seus produtores estão inseridos e dependem da posição na qual os mesmos se encontram diante desse contexto, seus valores, interesses e perspectiva de classe. O discurso científico, por exemplo, vincula-se à ascensão do modo de produção capitalista, que vem acompanhado de um gigantesco desenvolvimento das forças produtivas, de uma maior necessidade de controlar o meio ambiente para maximizar os lucros etc. Nesse contexto nascem as ciências naturais (física, química, matemática, biologia etc.) e seus discursos. Porém, a sociedade capitalista não brota do nada, mas sim das ruínas do modo de produção feudal que, por sua vez, foi resultado da luta de classes, inclusive no campo cultural. Nesse sentido, o discurso científico não nasceu da teologia (expressão cultural dominante no feudalismo), mas sim da luta de classes no campo cultural, no qual o renascimento e, posteriormente, o iluminismo foram seus resultados essenciais:
o combate entre burguesia e nobreza feudal forjou as armas culturais que a primeira utilizaria para combater a segunda e seu próprio discurso. Estas armas foram retiradas da sociedade escravista que havia criado a filosofia [...] O renascimento e o iluminismo produziram o contexto cultural necessário para a formação da ciência [...] O contexto social e o contexto cultural forma as condições de possibilidade de formação de um discurso. Mas tanto um quanto o outro são formas de expressão da luta de classes e isto significa que as condições de possibilidade de um discurso estão indissoluvelmente ligadas ao desenvolvimento histórico da luta de classes e cada discurso corresponde ao interesse de uma ou outra classe em luta (VIANA, 2007c, p. 30 – negritos nossos).
O discurso é produto das relações sociais e essas são relações entre as classes sociais, logo o discurso é sempre o discurso de alguém, o discurso de uma classe social. As determinações do discurso, assim como de toda realidade social, são múltiplas, apesar disso sua determinação fundamental é o contexto social e cultural no qual ele emerge. Dessa forma, coexistem diversos discursos de indivíduos, grupos e classes sociais diversas. Eles são compostos pela estrutura e conjuntura e essas possuem nos termos, palavras, noções e conceitos suas unidades constitutivas. Em sua estrutura ocorre uma articulação entre os termos e em sua conjuntura os termos podem se encontrar desarticulados. Enquanto a estrutura do discurso é unissêmica, a conjuntura é polissêmica, podendo ou não ser coerente com sua estrutura. A depender do grau de articulação e organização de um discurso, ou melhor, do seu produtor, podem predominar a estrutura ou a conjuntura.
Enquanto as palavras estruturantes de um discurso se encontram na sua articulação interna, seus sentidos conjunturais remetem ao papel que desempenham em sua totalidade. A realização de um estudo semântico com vistas a compreender o significado das palavras exige que se remeta ao contexto discursivo na qual ela se encontra. Em síntese, para se compreender a unidade de um discurso é necessário compreender sua totalidade e vice-versa. O estudo das unidades do discurso remete à semântica e o estudo da totalidade (estrutura e conjuntura) do discurso remete à análise do discurso e, juntos, se complementam e oferecem ferramentas essências para o estudo da linguagem (comunicação, informação etc.).
É importante destacar, como faz Viana (2007c), que sendo o discurso estruturado em um contexto social e cultural atravessado pela luta de classes, seu estudo exige a compreensão de uma totalidade maior, ou seja, a totalidade da sociedade no qual ele é produzido e determinado, quer dizer a dinâmica da luta de classes na sociedade. Aqui temos um aspecto especial para a compreensão da relação entre discurso e poder, pois todo discurso decisivamente carrega em sua estrutura os valores e perspectivas do seu produtor e essa estrutura constitui seu conteúdo, já sua conjuntura é constituída pelos elementos da linguagem que auxiliam sua transmissão. Então, podemos concluir que a luta de classes existente no discurso é manifestação da dinâmica da luta de classes, que no capitalismo é marcada pela supremacia burguesa e se manifesta sob diversas formas.
A discussão realizada pelo freudomarxista Erich Fromm (1975), sobre o caráter social, proporciona uma análise interessantíssima a respeito de como esse caráter condiciona o comportamento social (pensamento e ação), levando os indivíduos a reproduzirem da forma mais adequada possível o funcionamento da sociedade; para isso é importante que os pensamentos e sentimentos passem por um filtro social com o objetivo de controlar e impedir o avanço da consciência para fora dos domínios capitalistas:
o caráter social, que faz as pessoas agirem e pensarem do ponto de vista do funcionamento adequado de sua sociedade, é apenas um elo entre a estrutura social e as ideias. O outro está no fato de que cada sociedade determina os pensamentos e sentimentos que poderão atingir o nível de consciência e os que terão de permanecer inconscientes. Tal como há um caráter social, há também um inconsciente social. Por inconsciente social entendemos as áreas de repressão comuns à maioria dos membros de uma sociedade; os elementos habitualmente reprimidos são aqueles de cujo conteúdo a sociedade não deve permitir que seus membros tenham consciência, para que possa, com suas contradições específicas, funcionar com êxito (FROMM, 1975, p. 86).
A existência do filtro social, ao qual Fromm (1975) faz referência nessa discussão, demonstra que nas sociedades classistas existe uma seleção daquilo que se pode ou não tornar-se consciente por parte dos indivíduos pertencentes a essas sociedades. Nesse sentido, o filtro social atua como um dispositivo que determina que tipo de discurso deva ser afirmado e que tipo deva ser negado, isto é, existe uma seleção e repressão do que pode ou não ser dito, um caráter coercitivo e repressivo da linguagem e do discurso. O autor aponta três elementos que, segundo ele, forma o filtro social: o sistema conceptual, a lógica e os tabus sociais.
Para que uma experiência se torne consciente é necessária que seja compreendida no interior de um sistema conceptual e categórico nos quais o indivíduo esta inserido, pois todo modo de vida desenvolve seu sistema de percepção (consciência) e esse “trabalha, por assim dizer, como um filtro socialmente condicionado: a experiência não pode atingir a consciência se não atravessar esse filtro [...] De modo geral, podemos dizer que raramente atinge a consciência a experiência para a qual a língua não dispõe palavras” (FROMM, 1975, p. 110). Outros elementos seletivos e repressivos da linguagem são formados pela sintaxe, gramática e etimologia das palavras. A lógica forma o segundo elemento que compõe o filtro, pois em toda sociedade existe uma lógica que comanda a consciência dos indivíduos e que é considerada natural e universal; fazendo com que o princípio da identificação predomine e, ao mesmo tempo, obscureça o princípio da contradição (VIANA, 2007c). O terceiro elemento do filtro social é fornecido pelo tabu social. Dentre os três elementos, Fromm destaca que esse é o mais importante, visto que os tabus sociais não permite que determinados sentimentos e ideias cheguem à consciência real e procura expulsá-los. Os tabus sociais tratam determinadas ideias como sendo perigosas, proibidas e impróprias. Por isso a repressão das mesmas deve ocorrer para evitar que a haja conscientização dos indivíduos. O processo de repressão e censura da consciência é algo concreto e cotidiano na sociedade capitalista. Está presente nas formas de discursos existentes e dificulta bastante a manifestação de um discurso alternativo ao dominante. Uma vez que o poder da classe dominante está presente em todas as instituições burguesas, percebe-se que essa domina e controla a produção discursiva na sociedade. 
Os Estudos Críticos do Discurso (VAN DIJK, 2015), com uma linguagem bem distinta da nossa, apresentam elementos consideráveis para a compreensão da relação discurso/poder na sociedade contemporânea. Por isso, vale a pena retomar algumas de suas contribuições. Nesse trabalho, ainda não será possível contestar o conjunto de termos utilizados por tais estudos, assim nos contentaremos em recorrer, em algumas ocasiões, às notas de rodapé e parênteses para apresentar os conceitos que achamos mais apropriado para esse ou aquele termo utilizado por esses estudos.
Em sua discussão sobre o controle do discurso e modos de reprodução discursiva, Van Dijk (2015) salienta que uma condição fundamental para a prática do controle social através do discurso está no controle do próprio discurso e na sua produção. Dito isto, pode-se questionar: quem pode discursar, o que, para quem e em quais situações? Quem tem acesso à produção discursiva e seus meios de reprodução? Onde são produzidos os discursos? 
As classes exploradas possuem infinitamente menores possibilidades de acessar a produção de discursos (escrita, fala) em quase todos os espaços sociais, principalmente porque os locus de produção dos discursos são controlados pela classe dominante, especialmente pela burguesia comunicacional que, juntamente, com as demais classes e grupos sociais que compõe o bloco dominante, monopolizam a produção comunicacional:
os grupos mais poderosos (bloco dominante) e seus membros controlam ou têm acesso a uma gama cada vez mais ampla e variada de papéis, gêneros, oportunidades e estilos de discurso. Eles controlam os diálogos formais com subordinados, presidem reuniões, promulgam ordens ou leis, escrevem (ou mandam escrever) vários tipos de relatório, livros, instruções, histórias e vários outros discursos dos meios de comunicação de massa (capital comunicacional). Não são apenas falantes ativos na maior parte das situações, mas tomam a inicitavia em encontros verbais ou nos discursos públicos, determinam o “tom” ou o estilo da escrita ou da fala, determinam seus assuntos e decidem quem será participante e quem será receptor de seus discursos. Deve-se ressaltar que o poder não apenas aparece “nos” ou “por meio dos” discursos, mas também que é relevante como força societal “por detrás” dos discursos. Nesse momento, a relação entre discurso e poder é próxima e constitui uma manifestação bastante direta do poder da classe, do grupo ou da instituição e da posição ou status relativos de seus membros (VAN DIJK, 2015, p. 44 – parênteses nossos).
A produção dos discursos jornalísticos é controlada pela burguesia comunicacional em nome dos interesses do bloco dominante, através do trabalho da intelectualidade e da burocracia que atua na produção dos discursos para o capital comunicacional. Tais indivíduos possuem uma relativa liberdade e, consequentemente, poder para decidir sobre os tipos e gêneros de discursos a serem veiculados, os estilos e formas de apresentação de determinados discursos sobre determinadas realidades sociais etc. O poder comunicacional detém o poder de influenciar a sociedade, determinando a agenda da discussão pública, a relevância dos tópicos, a quantidade e qualidade da informação, os valores destacados para o público etc. Ele, juntamente com o bloco dominante, é o produtor do conhecimento, dos padrões morais, do comportamento, das crenças, atitudes, normas e das ideologias. Nesse sentido, o poder comunicacional exerce o controle e a dominação social por meio da cultura.
O capital comunicacional, na sua forma jornalística impressa, exerce o controle do conhecimento através de diversas estratégias, tais como a seleção restritiva de assuntos, ocultação das informações que contrariam seus objetivos, através da reconstrução parcial das realidades sociais, políticas e econômicas. Tal processo é guiado por um sistema axiológico típico da profissão jornalística que define o que deve ou não ser notícia e como ser noticiado, direcionando o foco e o interesse das notícias para os membros das classes auxiliares, tal como a burocracia estatal e governamental que, principalmente em contextos de radicalização da luta de classes, tendem a monopolizar o discurso sobre a realidade, apresentando-o de forma unilateral, ocultando assim as verdadeiras razões das lutas sociais, das condições de vida dos que contestam a sociedade, bem como apresentando explicações metafísicas[10] para os problemas sociais, criminalizando os contestadores, construindo inimigos imaginários (guerrilheiros, terroristas, delinquentes, vândalos etc.) abusando de metáforas e expressões negativas e ameaçadoras (exército de ilegais, maré/onda de imigrantes, parasitas, violentos, duros) etc.


Referências:
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir – história da violência nas prisões. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
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FROMM, Erich. Meu encontro com Marx e Freud. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1975.
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VIANA, Nildo. Universo psíquico e reprodução do capital. Em: QUINET, Antônio et al. (orgs.). Psicanálise, capitalismo e cotidiano. Goiânia: Edições Germinal, 1996.
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____. As representações cotidianas e as correntes de opinião. Revista Espaço Livre. Volume 10, número 19, jan./jun./2015.
____. Blocos sociais e luta de classes. Revista Enfrentamento. Ano 10, número 17, jan./jul. 2015a.
YAGUELLO, Marina. Introdução da obra Marxismo e filosofia da linguagem. Em: BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010.






[1] O termo perspectiva aqui aponta para a questão do ponto de vista, do modo de ver, isto é, existe o que é visto (sociedade capitalista) e sob que ponto de vista se vê (perspectiva burguesa e perspectiva proletária, fundamentalmente). Por isso, podemos falar de visão de classe, ponto de vista de classe, que “é perpassado por uma mentalidade e é facilitado e incentivado pelo processo histórico real, bem como pela posição que o indivíduo ocupa nessa sociedade. A posição que um indivíduo ocupa numa dada sociedade se refere à qual classe ele pertence ou a partir de qual perspectiva ele se coloca. Embora seja raro, é possível um indivíduo de uma classe partir da perspectiva de outra, o que não o livra da possibilidade de mesclar perspectivas diferentes, ameaçando, assim, no caso do proletariado, a possibilidade de uma visão correta da realidade em sua totalidade. A perspectiva do proletariado, então, é a perspectiva de uma classe social determinada e que expressa como ela vê a sociedade a partir de sua relação com ela. Essa perspectiva, segundo Marx, marcaria a unidade entre o que é visto e a forma como se vê. A perspectiva de Marx busca ser essa perspectiva de classe e é nesse sentido que se pode compreender sua obra” (VIANA, 2007, p. 74-75).
[2] Cf. (VIANA, 1996).
[3] As representações cotidianas são “expressão da vida cotidiana, a manifestação das atividades cotidianas dos indivíduos não apenas em seu repertório temático (determinado por uma forma concreta de sociabilidade) mas também em sua forma de expressão, marcada pela naturalização, simplificação e regularidade” (VIANA, 2008a, p. 113-114).
[4] “Um padrão é, de certa forma, uma configuração, uma forma. Um padrão dominante é aquele que possui uma supremacia sobre outros padrões. Um padrão dominante de valores é, então, um padrão de valores que possui supremacia sobre outros padrões de valores. Uma configuração é uma determinada forma que assume os valores dominantes, que são os valores da classe dominante. Os valores dominantes podem assumir diferentes configurações, mas conservam sempre os valores fundamentais correspondentes aos interesses da classe dominante. É por isso que a axiologia é uma determinada configuração dos valores dominantes” (VIANA, 2007d, p. 33).
[5] Sobre o bloco dominante e a ideia de blocos sociais, conferir nesse número da Revista Enfrentamento o artigo de Viana (2015a).
[6] Chamado de recursos simbólicos por Viana (2007c) e de sistema de símbolos por Sapir (1980).
[7] De acordo com Mandosio, em 1965 Foucault “integra o jurí da École Nationale d’Administration, viveiro da alta burocracia francesa, e participa (como membro de uma comissão) da reforma da Universidade lançada pelo ministro Christian Fouchet, que entrará em vigor em 1967 – ‘um dos grandes projetos do gaullismo e mais particularmente de Georges Pompidou, o ‘Primeiro Ministro’, lembra Didier Éribon, informando que ‘Foucault levou muito a sério sua participação no estabelecimento da reforma’. Chegam a lhe oferecer o posto de subdiretor de ensino superior no Ministério da Educação Nacional. Esta proposta, que ele havia aceitado, não chegou a lugar nenhum devido a uma campanha orquestrada contra ele por conta de suas preferências sexuais” (MANDOSIO, 2011, p. 41).
[8]  Viana sintetiza essa crítica afirmando que “a discussão de Foucault sobre os intelectuais e o poder apenas revela o vínculo deste intelectual com as relações de poder expressa em sua ideologia, o que apenas manifesta a relação concreta que outros já demonstraram (Mandosio, 2011). A ideia de um intelectual específico em substituição ao intelectual universal é apenas a forma contemporânea assumida por uma das formas da ideologia dominante no sentido de desmobilizar e retirar o compromisso que alguns intelectuais tinham com a luta proletária e pela emancipação humana. Porém, também tem o papel de legitimar e justificar um microrreformismo e a desarticulação das lutas sociais em geral. No fundo, ambas as coisas provocam uma tentativa de isolar o proletariado em sua luta pela transformação social, pois busca afastar os intelectuais e demais grupos explorados e oprimidos de uma luta mais geral e articulada, gerando a fragmentação, o isolamento, além de produzir ideologias que reforçam isso (e faz isto dizendo que está fazendo justamente o contrário). O Maio de 68 é o grande fantasma que essa ideologia busca esconjurar” (VIANA, 2013a, p. 58).
[9] Chega a beirar o cinismo a “coincidência” da discussão que Foucault realiza sobre o poder, sua definição apontando para o poder como um exercício no qual ninguém é seu titular, não se sabe quem o detém, ele é relação, logo não se encontra em um único local/instituição etc., com o mesmo período em que ele se aproximava e flertava com o do poder do estado, almejando o poder de suas instituições etc. O que pode ser interpretado como uma estratégia desse intelectual para se auto camuflar e ocultar seus vínculos com o poder, assim como o serviço seus serviços prestados a ele.
[10] Como exemplo de tais “explicações”, poderíamos citar as duas notícias veiculadas pelo Jornal Clarín (Buenos Aires, Argentina), sobre o fuzilamento de contestadores sociais, em dois episódios de repressão ao movimento piqueteiro. Tanto o fuzilamento de Tereza Rodriguéz em Neuquén (1997), quanto o fuzilamento de Darío Santillán e Maximiliano Kosteki na Grande Buenos Aires (2002), foram apresentados, com destaque na capa dos seus jornais, como de responsabilidade da crise social: “a crise já produziu uma morte” e, posteriormente, “a crise causou duas novas mortes”.