Música para o Espírito

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

BREVE INTRODUÇÃO À TEORIA MARXISTA DAS CLASSES SOCIAIS E DO ESTADO

Breve introdução à teoria marxista das classes sociais e do estado
Originalmente publicado na Revista Enfrentamento, 19.

Lisandro Braga*

De imediato a principal questão que nos apresenta é: existe uma concepção de classes sociais na gigantesca produção teórica de Karl Marx? Sabemos que não há em toda a sua obra uma sistematização teórica pronta e acabada das classes sociais, nem nas sociedades pré-capitalistas, nem no capitalismo. O que há é um esboço teórico dessas e no caso do capitalismo uma teoria incompleta e com lacunas (VIANA, 2012). Então, de que maneira proceder para buscar uma concepção teórica das classes sociais na obra de Karl Marx?
Nessa busca trilharemos os árduos, porém necessários, caminhos apontados pela elucidativa análise de Nildo Viana, presente na obra A teoria das classes sociais em Karl Marx (2012), ou seja, juntando as peças do quebra-cabeça e reconstruindo um esboço da teoria das classes sociais em Karl Marx[1] em todas as sociedades classistas analisadas por esse intelectual engajado. Isso significa dizer que:
É necessário realizar uma leitura rigorosa das obras de Marx, focalizando aquelas em que desenvolveu mais a sua abordagem das classes e estando atento para as análises e complementos em outras obras, não perdendo de vista o processo de desenvolvimento das teses do autor, que não são estáticas, embora também não sejam a cada período radicalmente diferente umas das outras. Também é preciso estar atento ao período em que Marx viveu, os autores que o inspiraram, as problemáticas da época, as ideologias e concepções existentes, a coerência interna de seu discurso, a sociedade de sua época, entre outros elementos, visando entender o que ele quis dizer ao invés de atribuir a ele o que pensamos, como os maus intérpretes fazem. Assim, observar o contexto histórico, cultural e discursivo da obra é fundamental para evitar as deformações e interpretações equivocadas (VIANA, 2012, p. 08).
Sendo assim, será de extrema necessidade metodológica, como o próprio Marx apontava, e também o faz Viana, encontrar um fio condutor coerente e bem fundamentado que perceba as questões fundamentais expostas por Karl Marx em suas obras e que permita uma análise e interpretação/consciência correta da realidade, isto é, de sua teoria das classes sociais. Nesse sentido, faremos aquilo que Karl Korsch (2008) alertava para melhor compreender o pensamento de Marx e o próprio marxismo: aplica-lo a si mesmo.
A primeira abordagem teórica de Marx sobre as classes sociais foi realizada na obra A Ideologia Alemã (1984) e, por conseguinte, é com essa obra que iniciaremos nosso percurso. Nessa obra, outros conceitos se apresentam como sendo de suma importância para responder à pergunta: o que é uma classe social? Trata-se dos conceitos de divisão (social) do trabalho e modo de produção da vida. Segundo Marx:
as diferentes fases de desenvolvimento da divisão do trabalho são outras tantas formas diferentes de propriedade; ou seja, cada uma das fases da divisão do trabalho determina também as relações dos indivíduos entre si no que respeita ao material, ao instrumento e ao produto do trabalho (1984, p. 17).
Aqui é possível perceber a importância fundamental do conceito de divisão social do trabalho visto que este equivale a diferentes formas de propriedade, determinando as relações entre os indivíduos no processo de produção. Seguindo o raciocínio de Marx, percebe-se que o conceito de modo de produção da vida, também, é essencial (primeiro ato histórico), pois amplia a compreensão da relação existente entre divisão social do trabalho e classes sociais. Vejamos como ele coloca essa questão:
a produção da vida, tanto da própria, no trabalho, como da alheia, na procriação, surge agora imediatamente como dupla relação: por um lado como relação natural, por outro como relação social – social no sentido em que aqui se entende a cooperação de vários indivíduos seja em que circunstância for e não importa de que modo e com que fim. Daqui resulta que um determinado modo de produção, ou fase industrial, está sempre ligado a um determinado modo da cooperação, ou fase social, e este modo da cooperação é ele próprio uma força produtiva; e que a quantidade das forças acessíveis aos homens condiciona o estado da sociedade, e, portanto a história da humanidade tem de ser sempre estudada e tratada em conexão com a história da indústria e da troca (MARX e ENGELS, 1984, p. 32-33).
Apesar do conceito modo de produção ainda não se encontrar completamente desenvolvido nessa obra, já é possível visualizar a importância do mesmo na compreensão de toda essa discussão, pois este possui no seu interior um determinado modo de cooperação equivalente à determinada configuração da divisão social do trabalho, uma força produtiva. A análise de Marx demonstrará que divisão social do trabalho e propriedade são expressões idênticas, já que “[...] numa enuncia-se em relação à atividade o mesmo que na outra se enuncia relativamente ao produto da atividade [...]” (1984, p. 37). Precedendo essa citação encontra-se “uma das passagens mais importantes de toda a obra de Marx, que, curiosamente, caiu no esquecimento ou não foi devidamente considerada em sua importância” (VIANA, 2012, p. 26), pois ela aponta elementos importantíssimos na compreensão segundo a qual a divisão social do trabalho é essencial (a chave) para a compreensão do processo de exploração (de uma classe sobre outra):
Com a divisão do trabalho, na qual estão dadas todas estas contradições, e a qual por sua vez assenta na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em famílias individuais e opostas umas às outras, está ao mesmo tempo dada também a repartição, e precisamente a repartição desigual tanto quantitativa como qualitativa, do trabalho e dos seus produtos, e, portanto a propriedade, a qual já tem o seu embrião, a sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são os escravos do homem. A escravatura latente na família, se bem que ainda muito rudimentar, é a primeira propriedade, que de resto já aqui corresponde perfeitamente à definição dos modernos economistas, segundo a qual ela é o dispor de força de trabalho alheia” (MARX e ENGELS, 1984, p. 36 e 37).
Com a divisão social do trabalho está dada a contradição entre o interesse particular e o interesse coletivo, em outras palavras, a contradição entre o interesse do proprietário e o interesse do não proprietário. É exatamente por conta dessa contradição que o interesse comum “assume uma forma autônoma como estado, separado dos interesses reais dos indivíduos e do todo, e ao mesmo tempo como comunidade ilusória [...]” (MARX e ENGELS, 1984, p. 37). Aqui, uma vez mais, Marx apresenta elementos que apontam para a conclusão segundo a qual é a divisão social do trabalho quem gera o antagonismo entre interesses sociais diversos, que coage a classe proprietária a se apropriar do poder político da sociedade através da regularização das relações sociais pelo estado e esse, como não poderia deixar de ser, é composto, também por indivíduos interessados e que comporão outra classe social engendrada pela divisão social do trabalho. No capitalismo, trata-se da burocracia estatal. Mais adiante realizaremos uma discussão sobre essa classe social.
A divisão social do trabalho constrange os indivíduos a exercerem atividades que não foram escolhidas por eles mesmos e, portanto, se apresenta como uma força estranha, opositora e sobrepujante que escapa ao próprio domínio do indivíduo. Dessa maneira,
assim que o trabalho começa a ser distribuído, cada homem tem um círculo de atividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e do qual não pode sair; será caçador, pescador ou pastor ou crítico crítico, e terá de continuar a sê-lo se não quiser perder os meios de subsistência [...] Esta fixação da atividade social, esta consolidação de nosso próprio produto como força objetiva acima de nós, que escapa ao nosso controle, contraria as nossas expectativas e aniquila os nossos cálculos, é um dos fatores principais no desenvolvimento histórico até os nossos dias (MARX e ENGELS, 1984, p. 39).
A partir dessa passagem nossa compreensão começa a se ampliar, pois nela, mais do que nunca, está claro que é a divisão social do trabalho, a fixação do indivíduo em uma atividade que suscita o pertencimento de classe e esse ocasiona o conflito de interesses, inclusive, de interesses de classes antagônicas (VIANA, 2012). A expansão da divisão social do trabalho promove o surgimento das classes sociais e assim tende a continuar ocorrendo. No entanto, ainda nos resta responder o que Marx compreende como sendo uma classe social? O que é uma classe social na teoria marxista?
Segundo Marx (1984), a primeira e grande divisão social do trabalho (separação entre trabalho material e trabalho intelectual) foi promovida pela separação entre cidade e campo. Na primeira emerge a necessidade da administração, controle, repressão, cobrança de tributos, da organização municipal, em suma da política em geral.
Aqui se revelou primeiro a divisão da população em duas grandes classes, a qual assenta diretamente na divisão do trabalho e nos instrumentos de produção. A cidade é já a realidade da concentração da população, dos instrumentos de produção, do capital, dos prazeres, das necessidades, ao passo que o campo torna patente precisamente a realidade oposta, o isolamento e a solidão. O antagonismo entre cidade e campo só pode existir no quadro da propriedade privada (MARX e ENGELS, 1984, p. 64).
Nessa obra Marx já apresenta três condições para a constituição do pertencimento de classe e que nos permite sacar sua concepção de classe social: possuir um modo de vida comum (modo de vida da classe), interesses comuns (interesses de classe), e o estabelecimento de enfrentamento/aliança (enfrentamento/aliança entre classes) com outras classes sociais.
Aplicando estes elementos na compreensão da nascente burguesia como classe social, Marx apresenta de forma extremamente elucidativa sua concepção:
os burgueses de todas as cidades eram obrigados, na Idade Média, a unir-se contra a nobreza rural para salvarem a pele; a expansão do comércio, o estabelecimento de comunicações, levou as diferentes cidades a conhecer outras cidades, as quais tinham afirmado os mesmos interesses na luta contra o mesmo contrário. Das muitas corporações locais de burgueses tornaram-se, ao mesmo tempo, pelo antagonismo contra as relações vigentes, e pelo tipo de trabalho por aquelas condicionado, condições que a todos eles eram comuns e independentes de cada um deles. Os burgueses tinham criado estas condições na medida em que haviam cortado com o vínculo feudal, e foram por elas criados na medida em que foram condicionados pelo seu antagonismo contra a feudalidade que já encontravam vigente. Com o estabelecimento da ligação entre as diferentes cidades, estas condições comuns desenvolveram-se e tornaram-se condições de classe. As mesmas condições, o mesmo contrário, os mesmos interesses, tinham também de dar origem, por toda a parte e dum modo geral, a costumes iguais [...] Os indivíduos isolados só formam uma classe na medida em que têm de travar uma luta comum contra uma outra classe; de resto, contrapõem-se de novo hostilmente uns aos outros, em concorrência. Por outro lado, a classe autonomiza-se, por seu turno, face aos indivíduos, pelo que estes encontram já predestinadas as suas condições de vida, é-lhes indicada pela classe a sua posição na vida – e, com esta, o seu desenvolvimento pessoal -, estão subsumidos na classe (MARX e ENGELS, 1984, p. 82-83).
Dessa forma, a concepção de classe social esboçada por Marx nessa obra aponta para a conclusão segundo a qual é a divisão social do trabalho, derivada do modo de produção dominante, a responsável por gerar as classes sociais que passam a ser compostas por indivíduos que possuem modo de vida comum, determinadas por um conjunto de atividades fixadas socialmente, e que começam a deter interesses comuns e enfrentamentos a outras classes sociais (VIANA, 2012; MAIA, 2013). Juntamente com essa conclusão, constata-se, também, que
uma classe social significa que os indivíduos que a compõem possuem o mesmo modo de vida, já que suas condições de vida, oposição a outras classes, interesses, costumes e representações são compartilhados por todos os seus componentes. Daí se percebe que as classes sociais não são “construções arbitrárias” da mente humana e sim uma determinada relação social que é manifestação da vida de indivíduos reais. Também se percebe que o conceito de classes em Marx é relacional, uma classe só existe em relação com outras classes sociais, através da oposição e da luta. Esse modo de vida comum gera também costumes e representações semelhantes (VIANA, 2012, p. 30).
Vale ressaltar um aspecto de extrema importância na compreensão de Karl Marx sobre as classes sociais e seu papel na conservação ou transformação radical de um modo de produção. Trata-se do papel de destaque no qual o proletariado assume no modo de produção capitalista. Nessa obra, ele resgata alguns elementos que já estavam presentes na Introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel, isto é, a de que o proletariado é o agente da transformação social e emancipação humana geral:
para alcançar esta posição libertadora e a direção política de todas as esferas da sociedade, não bastam a energia e a consciência revolucionárias. Para que a revolução de um povo e a emancipação de uma classe particular da sociedade civil coincidam, para que uma classe represente o todo da sociedade, outra classe tem de concentrar em si todos os males da sociedade, uma classe particular deve encarnar e representar um obstáculo e uma limitação geral. Uma esfera social particular terá de surgir como o crime notório de toda a sociedade, a fim de que a emancipação de semelhante esfera surja como uma emancipação geral. Para que uma classe seja classe libertadora par excellence, é necessário que outra classe se revele abertamente como a classe opressora (MARX, 2008, p. 18).
Em que classe social e porque razões se encontraria então a potencialidade da emancipação? Marx responde:
Na formação de uma classe que tenha cadeias radicais, de uma classe na sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil, de uma classe que seja a dissolução de todas as classes, de uma esfera que possua carácter universal porque os seus sofrimentos são universais, e que não exige uma reparação particular porque o mal que lhe é feito não é um mal particular, mas o mal em geral, que já não possa exigir um título histórico, mas apenas o título humano; de uma esfera que não se oponha a consequências particulares, mas que se oponha totalmente aos pressupostos do sistema político alemão; por fim, de uma esfera que não se pode emancipar a si mesma nem emancipar-se de todas as outras esferas da sociedade sem as emancipar a todas – o que é, em suma, a perda total do homem, portanto, só pode redimir-se a si mesma mediante uma redenção total do homem. A dissolução da sociedade, como classe particular, é o proletariado (MARX, 2008, p. 20). 
A tese segundo a qual a emancipação do proletariado representa a emancipação de toda a humanidade foi inicialmente esboçada na introdução dessa obra, mas também aparece em diversas outras como, por exemplo, nos Manuscritos econômico-filosóficos (1844) que assim a expressava:
da relação do trabalho estranhado com a propriedade privada depreende-se, além do mais, que a emancipação da sociedade da propriedade privada etc., da servidão, se manifesta na forma política da emancipação dos trabalhadores, não como se dissesse respeito somente à emancipação deles, mas porque na sua emancipação está encerrada a [emancipação] humana universal. Mas esta [última] está aí encerrada porque a opressão humana inteira está envolvida na relação do trabalhador com a produção, e todas as relações de servidão são apenas modificações e consequências dessa relação (MARX, 2004, p. 88-89).
É comum nos depararmos com a absurda afirmação segundo a qual Marx só visualizava a existência de duas classes sociais na sociedade capitalista. Tal absurdo se deve à existência de milhares de mal-leitores e até mesmo não-leitores de Marx, dispostos a se posicionarem como aqueles que sabem realmente o que ele “disse ou não disse” e não, pelo contrário, interpretar e analisar de forma aprofundada a imensa análise realizada por esse autor. Nesse verdadeiro processo de simplificação e cristalização ideológica se “passa por cima de inúmeros textos, inúmeras afirmações, passa por cima da complexidade e até sobre a autoridade do próprio autor (onde os textos deixam de ter validade para fundamentar a interpretação) [...]” (VIANA, 2012, p. 38). Em diversas obras, Marx apresenta uma grande quantidade de distintas classes sociais tanto no período pré-capitalista, quanto no próprio capitalismo, porém, para mal-leitores e não-leitores, identificar isso é um trabalho quase impossível, quando não evitado propositalmente. Uma simplificação que, no mundo de inversões, se torna uma arma (de plástico) contra uma suposta análise simplificadora.
A título de exemplificação que contraria tais análises, nos contentaremos em apresentar brevemente diversas outras classes sociais, além das classes fundamentais, tão-somente na obra O capital de 1867[2]. Conforme já havia constatado Marx, a história da humanidade é a história da luta de classes, tal constatação foi mencionada em obras anteriores a O capital, contudo, é nessa obra que ele dedica uma análise pormenorizada sobre o processo de exploração de uma classe social sobre outra no capitalismo, sobre a luta de classes entre suas classes fundamentais (burguesia e proletariado), suas implicações na formação de outras classes (por exemplo, o lumpemproletariado), suas tendências e contra tendências, suas possibilidades, tal como a da construção concreta do comunismo etc. Em linhas gerais, é a partir dessa obra que se torna possível a visualização do seu esboço de uma teoria das classes sociais no capitalismo.
No primeiro prefácio de O capital, escrito por Marx em Londres, no dia 25 de julho de 1867, e equivalente à primeira edição dessa obra, é possível extrairmos alguns elementos importantíssimos, todavia não suficiente, para seguirmos juntando as peças do quebra-cabeça. Nesse, Marx assim se expressava:
para evitar possíveis erros de entendimento, ainda uma palavra. Não pinto, de modo algum, as figuras do capitalista e do proprietário fundiário com cores róseas. Mas aqui só se trata de pessoas à medida que são personificações de categorias econômicas, portadoras de determinadas relações de classe e interesses. Menos do que qualquer outro, o meu ponto de vista, que enfoca o desenvolvimento da formação econômica da sociedade como um processo histórico-natural, pode tornar o indivíduo responsável por relações das quais ele é, socialmente, uma criatura, por mais que ele queira colocar-se subjetivamente acima delas (1985, p. 13).
Aqui, conforme já nos alerta Maia em sua obra As classes sociais em O capital (2011), é possível apreendermos algumas questões importantíssimas, quais sejam: toda pessoa/indivíduo anuncia determinadas categorias econômicas, expressam relações de classe específicas logo, portam determinados interesses. E mais, tal pessoa se encontra envolvida em relações de classe, quer queira quer não, sendo condicionada socialmente pelas mesmas, quer tenha ou não consciência disso, e não pode ser compreendida fora da totalidade dessas relações sociais. Buscaremos, a partir dessas constatações, apreender algumas das classes sociais apresentadas em O capital (1985).
Sendo leal à própria tese segundo a qual é na produção material da vida (determinação fundamental) que devem ser buscadas as múltiplas determinações das diversas relações sociais existentes em uma dada sociedade é que Marx terá como ponto de partida nessa obra a análise da produção capitalista de mercadorias, ou seja, das relações sociais envolvidas no processo de produção de mais-valor. Aquela força estranha impetuosa que escapa ao controle dos produtores e que é utilizada objetivamente pela classe proprietária dos meios de produção. Por conseguinte, é sobre a relação-capital que iniciaremos nossa análise sobre as classes no capitalismo. Porém, não realizaremos aqui uma análise detalhada sobre as classes fundamentais[3] no capitalismo, pois esta tarefa já foi laborada em outro momento (BRAGA, 2013), mas apenas apresentaremos seus traços gerais.
Toda e qualquer sociedade deve, para continuar existindo, produzir suas condições materiais de existência e, no caso da sociedade capitalista, essa é garantida através da produção de mercadorias que possuem valor de uso e de troca. Essa atividade produtiva equivale ao fundamento (base, alicerce) da divisão social do trabalho dessa sociedade. Portanto, a produção de mercadorias é realizada através das relações sociais de produção estabelecidas entre as classes sociais diretamente envolvidas nessa atividade fundamental, isto é, entre a classe produtora e a classe não produtora e expropriadora. Em outras palavras, entre o proletariado e a burguesia.
Sendo assim, compreender o processo de produção de mercadorias equivale a buscar compreender quem são e como se relacionam as classes sociais fundamentais dessa divisão social do trabalho capitalista. Para isso, precisamos esclarecer a singularidade da produção de mercadorias no capitalismo, isto é, ser produtora de mais-valor. Mas, antes mesmo de compreendermos o que é o mais-valor, precisamos, primeiramente, questionar: O que determina o valor de uma mercadoria? Responder a essa questão foi um dos propósitos fundamentais do desenvolvimento da obra O Capital (1867) de Karl Marx. Para esse autor, a resposta a essa questão passa necessariamente pela constatação segundo a qual toda mercadoria é produto do trabalho humano e que o tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção possui relação direta com a determinação do seu valor.
A mercadoria possui valor de uso e valor de troca. Como valor de uso ela se caracteriza por ter utilidade, por servir para determinadas finalidades e como valor de troca ela equivale a produto destinado a ser comercializado no mercado, trocado por dinheiro. Toda mercadoria ao expressar seu valor de uso mostra o que a distingue de outras mercadorias. Portanto,
No processo de troca, uma mercadoria possui um valor equivalente ao de outras mercadorias. Uma casa pode valer 03 carros, 50 bicicletas, e assim por diante. Isto quer dizer que 50 bicicletas vale o mesmo que 01 casa e 03 carros e 03 carros valem 50 bicicletas e 01 casa. O que se deduz daí é que essas três mercadorias diferentes expressam algo que é igual. Há algo comum e da mesma grandeza entre as três mercadorias e não é o valor de uso, pois são mercadorias bem diferentes uma da outra, com utilidades distintas. O que existe em comum entre estas três coisas é uma terceira coisa, que não é o valor de uso e nem o valor de troca. Como valores de uso, são objetos diferentes, com diferentes utilidades, o que significa que são diferenças qualitativas. Como valores de troca, possuem – enquanto unidade – valores diferentes, que é uma diferença quantitativa. Essa terceira coisa é o trabalho humano. As mercadorias são produtos do trabalho humano e essa é sua “propriedade comum” (Marx, 1988c) [...] (VIANA, 2012, p. 98-99).
Nessa trajetória verifica-se que o que existe em comum em todas as mercadorias é serem produtos do trabalho humano e, portanto contêm determinada quantia de trabalho humano materializado, calculado em tempo de trabalho gasto na sua produção e que define seu valor de troca. Contudo, não se trata aqui de tempo de “trabalho concreto” despendido por trabalhadores individualmente, mas sim tempo de “trabalho abstrato”, isto é, trabalho social médio, pois,
o trabalho que é medido dessa maneira, isto é, pelo tempo, aparece não como o trabalho de diferentes sujeitos, mas, ao contrário, os indivíduos diversos que trabalham aparecem como meros órgãos do trabalho. Ou seja, o trabalho, tal como se apresenta em valores de troca, poderia expressar-se como trabalho humano geral. Essa abstração do trabalho humano geral existe no trabalho médio, que qualquer indivíduo médio de uma sociedade pode executar; um gasto produtivo determinado de músculos, nervos, cérebro etc. É trabalho simples, ao qual qualquer indivíduo médio pode ser adestrado, e que deve executar de uma ou de outra forma. O caráter desse trabalho médio é, ele próprio, diferente em diferentes países e épocas culturais, contudo aparece como dado em uma determinada sociedade (MARX, 1982, p. 33).
Dessa maneira, no capitalismo todas as mercadorias possuem em comum o fato de conterem em seu valor acréscimo de mais-valor materializado e que pode ser medido pelo tempo de trabalho dispendido na sua produção. No entanto, tal acréscimo de valor não é perceptível na aparência da mercadoria, mas sim na sua essência que consiste em ser expressão de trabalho social e que só se realiza e se revela na relação social entre mercadorias. O valor de uma mercadoria consequentemente é determinado pela quantidade de tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la (MARX, 1985; VIANA, 2012). Resta agora sabermos de que jeito o trabalho acrescenta mais-valor à mercadoria. Na tentativa de respondermos a essa questão é que nos deparamos com a forma como as classes fundamentais do capitalismo se relacionam. Vejamos.
Ao longo do processo produtivo de mercadorias os custos gerados pela aquisição de matérias-primas, ferramentas, maquinaria etc. (trabalho morto) devem ser repassados, visto que o propósito essencial dessa produção é o lucro. No entanto, tais elementos constituintes do trabalho morto não geram valor, pois somente o trabalho vivo, a força de trabalho (mercadoria) é que, no ato do seu consumo materializa o mais-valor, isto é acrescenta mais-valor no processo produtivo. Aqui consiste a singularidade do modo de produção capitalista de mercadorias. Nesse, o valor da força de trabalho também é determinado pelo tempo de trabalho necessário para sua (re) produção e manutenção, ou seja, na garantia dos meios de sobrevivência necessários para a reprodução do indivíduo e da sua força de trabalho. Todavia, a burguesia não está interessada em uma produção que apenas repasse os custos do trabalho morto e gere o necessário para o pagamento de salários, pois dessa forma não há produção de capital, seu desígnio fundamental. A classe burguesa só se interessa nessa reprodução da força de trabalho porque nessa contêm o segredo da produção capitalista: ser mercadoria que ao se consumir acrescenta mais-valor na produção. Logo, o processo de produção capitalista de mercadorias equivale a um processo de expropriação de horas de trabalho não remunerada, pois o montante do tempo de trabalho que não o utilizado para tais repasses consiste em tempo para a produção de mais-valor (exploração do trabalho).
Por ser marcado necessariamente pela exploração do trabalho e por conta das contradições derivadas da própria acumulação (concentração/centralização de capital, concorrência entre capitais, ampliação do trabalho morto em detrimento do trabalho vivo, tendência decrescente da taxa de lucro, maior disputa em torno do tempo de trabalho entre burguesia e proletariado etc.)[4] é que a produção capitalista é marcada pela luta de classes entre suas classes fundamentais. Das necessidades derivadas de todo esse processo (maior controle do proletariado, gerência e administração burocrática da fábrica, legislações favoráveis à acumulação, repressão das lutas operárias etc.) e da própria dinâmica da luta de classes (a questão do desemprego e do lumpemproletariado, por exemplo) surge a crescente tendência de formação de novas classes sociais.
A burocracia, por exemplo, é uma classe social que surge com o capitalismo, mas que no primeiro regime de acumulação (o regime de acumulação extensivo) ela ainda se apresentava de forma incipiente, numericamente reduzida e com papel político pouco influente. Em algumas passagens da obra O 18 Brumário (1997) já é possível notar que Marx estava atento a isso e percebia a expansão da burocracia estatal francesa, “esse poder executivo, com sua imensa organização burocrática e militar, com sua engenhosa máquina do estado, abrangendo amplas camadas com um exército de funcionários totalizando meio milhão” (1997, p. 125. Itálicos meus). No entanto, essa percepção ainda se apresentava de forma incipiente como não poderia deixar de ser. Todavia, analisando a história do capitalismo a partir da sucessão dos regimes de acumulação[5] nota-se um avanço numérico dessa classe social, o surgimento de suas frações de classe (burocracia partidária, sindical etc.), da sua força política, assim como de suas ideologias (VIANA, 2012).
Sendo uma classe social a burocracia possui um modo de vida comum, interesses derivados desse modo de vida que ora entram em aliança, ora entram em conflito com interesses de outras classes sociais. Mas a que se vincula o modo de vida de um burocrata?
O modo de vida de um burocrata está intimamente ligado ao processo de controle, gestão, domínio, direção e este é realizado diretamente ou via mediação de regulamentos, regimentos, ofícios, formulários, tecnicismo, especialização, culto à autoridade, conformismo, planificação, identificação com a organização/empresa/instituição, reuniões, hierarquias, formalismo, sigilo burocrático etc. Este é o seu papel na divisão social do trabalho da sociedade capitalista (VIANA, 2012, p. 246).
No caso da burocracia estatal seu modo de vida tem a especificidade de estar vinculado com a função que exerce o estado na sociedade capitalista, assim como seus interesses e enfrentamentos com outras classes derivam dessa função. Portanto, para seguirmos é essencial uma discussão sobre o papel do Estado na sociedade capitalista e para isso é importante não nos iludirmos com toda uma tradição interpretativa no campo do “marxismo” que acabou por transformar o par-conceitual “infra-estrutura e superestrutura” em uma espécie de “esquema básico” do suposto materialismo histórico que, ao invés de contribuir para a compreensão totalizante da sociedade, acaba por impedir tal compreensão(KORSCH, 2008; VIANA, 2007).
Pouquíssimas vezes Marx recorreu a esse par conceitual e quando o fez  no prefácio à Contribuição para a crítica da economia política (1977) tratou de explicitar que suas observações não passavam de uma “conclusão geral resumida” e que servia apenas como “fio condutor”. Ao que tudo indica e aponta Althusser (1983), Marx utilizou esse par-conceitual apenas para fins de “interesse teórico-pedagógico”.
O capítulo intitulado Para uma teoria das formas de regularização das relações sociais, presente na obra A consciência da história – ensaios sobre o materialismo histórico dialético (2007), de Nildo Viana, apresenta uma discussão importantíssima sobre toda essa problemática e que ilustra de forma suficiente “a construção do texto de Marx” e a presença das “relações existentes entre” “infra-estrutura e super-estrutura”:
[...] elevação, constituição, correspondência, condicionamento, determinação, contradição, alteração etc., e outras no interior delas: correspondência, desenvolvimento, contradição, transformação etc. Isto comprova a existência de uma relação concreta entre as duas noções, mas estas não são conceitos e sim noções ou construtos que não manifestam nenhuma realidade, apenas ilustram uma relação entre elementos desta (VIANA, 2007, p. 71).
A proposta de Viana nesse capítulo vem preencher essa lacuna existente na teoria marxista da sociedade, na qual o estado é parte integrante, dando conta de toda a totalidade pretendida e expressa por Marx nas relações entre esse par-conceitual. Tal proposta se realiza no desenvolvimento do conceito Formas de Regularização das Relações Sociais. Assim como em Marx, tais formas englobam desde o estado (a forma de regularização das relações sociais fundamental de toda sociedade classista) e suas instituições estatais, passando pelas instituições privadas (escolas, igrejas, partidos, sindicatos etc.), pelos regulamentos legais e o direito, até a sociabilidade, as ideologias e a cultura em geral. No fundo não existe nenhuma esfera social na qual o estado não exerça seu domínio. Ele é a expressão máxima de toda alienação/heterogestão social. Assim, as formas de regularização das relações sociais regularizam desde as relações de produção até todo o conjunto das relações sociais derivadas do modo de produção (VIANA, 2007). Nessas sociedades, o estado é a principal forma de regularização das relações sociais, pois ele deve e busca controlar todas as formas privadas de regularização das relações sociais, visando influenciar no seu funcionamento e no conjunto das relações de produção. Tudo isso com o propósito fundamental de garantir a reprodução das relações sociais capitalistas, ele procura regularizar a produção de capital e todas as demais formas de regularização das relações sociais.
O Estado realiza toda essa complexa e totalizante tarefa a partir de seres humanos reais: os funcionários das formas de regularização das relações sociais (VIANA, 2007). Essas também sofrem uma divisão social do trabalho improdutivo (que não produz mais-valor) e assim gera um conjunto diverso de funcionários que darão sustentação real a tais formas, ocupando e desenvolvendo da melhor forma possível as instituições burguesas. Portanto, esses compõem novas classes sociais, nas quais a burocracia (estatal, partidária, sindical, universitária etc.) cumpre o papel de dirigente nessas instituições.
Resumindo, as formas de regularização são determinadas relações sociais reais realizadas por indivíduos reais que utilizam determinados meios materiais com o objetivo de reproduzir as relações de produção dominantes e que são engendradas pelo modo de produção dominante. Acontece que as contradições de classe do modo de produção se reproduzem nestas formas de regularização. Estas também são responsáveis pela formação de novas classes sociais que se envolvem na luta das classes fundamentais e assim torna mais complexa a luta de classes (VIANA, 2007, p. 76).
O conceito de formas de regularização das relações sociais promove uma maior elucidação das relações sociais que se estabelecem entre o modo de produção capitalista e as demais formas de regularização das relações sociais capitalistas. Ao nos referirmos ao estado capitalista estamos, portanto nos referindo a essa principal forma de regularização das relações sociais que se concretiza no trabalho dirigente da burocracia estatal. Vejamos, portanto qual a finalidade fundamental desse trabalho dirigente.
O estado capitalista deve ser compreendido como um instrumento complexo no qual contêm desde sua origem um propósito fundamental, uma finalidade determinada. Tal finalidade foi apresentada diversas vezes na teoria marxista do estado, a partir da constatação segundo a qual o estado é um estado de classe, expressão dos interesses da classe dominante e consequentemente não poderá servir aos interesses do proletariado, classe antagônica à burguesia e a essa forma de regularização das relações sociais (VIANA, 2003; POGREBINSCHI, 2009). O estado sempre foi, pois é da sua essência, uma instituição que nasceu para tornar regular a exploração e opressão de uma minoria proprietária sobre uma imensa maioria desprovida de propriedade e, exatamente por isso, não se pode pensar na possibilidade de sua utilização para garantir os interesses das classes exploradas e desprivilegiadas conforme pretendem sociais democratas e bolcheviques, pois sua finalidade exclusiva é tornar regular a acumulação capitalista. Segundo Marx,
a burguesia, afinal, com o estabelecimento da indústria moderna e do mercado mundial, conquistou, para si própria, no estado representativo moderno, autoridade política exclusiva. O poder executivo do estado moderno não passa de um comitê para gerir os assuntos comuns de toda a burguesia (MARX e ENGELS, 1997, p. 12).
O caráter de classe de um Estado se define pela sua determinação fundamental, isto é pelo modo de produção de determinada sociedade. Portanto, no caso do modo de produção capitalista o estado só pode ser um estado capitalista. As relações de produção dominantes que são relações de classe é que formam o estado e “é a dominação de classe na esfera da produção que constitui o estado e lhe determina [...] as relações de produção capitalistas envolvem e subordinam o estado” (VIANA, 2003, p. 28-29).
Nesse sentido é que devemos entender o estado capitalista, ou conforme definiu Engels “o capitalista coletivo ideal”, pois desde sua constituição em estado absolutista ele interfere nas relações de produção e distribuição buscando garantir as condições de reprodução das relações de produção capitalistas. É o estado o responsável por garantir infraestrutura (estradas, ferrovias, hidrelétricas, parques industriais etc.), por garantir empréstimos aos empresários, por adotar uma política tributária favorável aos capitalistas e seus negócios, por salvar os banqueiros transnacionais em períodos de recessão econômica, por “perdoar” dívidas milionárias da burguesia (nacional e internacional) tornando-as públicas, é ele o responsável por transferir na contemporaneidade boa parte das empresas estatais altamente lucrativas para a iniciativa capitalista privada, assim como é ele quem garante a manutenção da propriedade privada e da sociabilidade capitalista, evitando o avanço e radicalização das lutas sociais, a partir do controle e ordenação dos aparatos repressivos do estado e sua ferocidade, que costuma bloquear qualquer tentativa de luta auto-organizada e, fundamentalmente, as lutas com tendências anticapitalistas.
A questão da repressão estatal também foi um dos temas frequentes em diversas passagens da obra de Marx e que reforça o caráter burguês do estado capitalista. Sobre essa questão,
realmente, Marx, em A luta de classes na França, referiu-se à república burguesa de 1848 como: “ela não pode ser mais do que o domínio aperfeiçoado e mais puramente desenvolvido de toda a classe burguesa... a síntese da Restauração e da monarquia de julho. Tema também frequente nos escritos de Marx sobre o assunto é o ponto em que essa forma de Estado chega a ser repressiva e brutal tão logo seus sustentadores e beneficiários se sentem ameaçados pelo proletariado. Com os dias de junho em Paris, a República, escreveu Marx no mesmo texto, “surgia em sua forma pura, como o Estado cujo propósito confesso é perpetuar o domínio do  capital e a escravidão do trabalho”; e “domínio burguês, isento de todas as amarras, era transformado, ao mesmo tempo, inevitavelmente, em terrorismo burguês”. No mesmo tom, Marx escreveu em A guerra civil na França, 20 anos depois, que o tratamento dispensado aos communards pelo governo de Thiers mostrava o que queria dizer “a vitória da ordem, justiça e civilização”: “A civilização e a justiça da ordem burguesa surgem à luz do dia sempre que os escravos e trabalhadores dessa ordem se levantam contra seus senhores. É então que essa civilização e justiça revelam-se como indisfarçável selvageria e implacável vingança” (MILIBAND, 1979, p. 74).
A repressão é uma das principais formas de ação do Estado visando conter a luta das classes exploradas para impedir a ruína das relações sociais burguesas. Nesse sentido, o Estado é em si mesmo expressão da luta de classes, demonstrando seu caráter burguês, bem como o papel da burocracia como classe auxiliar da burguesia no processo de dominação. É no estado capitalista que se revela o poder de classe da burguesia mediado pela burocracia estatal.
No regime de acumulação integral, essa classe se apresenta como uma das classes mais poderosas e perigosas para o proletariado, o lumpemproletariado e suas lutas mais radicalizadas, visto que ela tem a “possibilidade de usurpar revoluções proletárias ou proporcionar novo fôlego para o capitalismo, ou, ainda, instituir uma nova forma de dominação de classe” (VIANA, 2012, p. 256). O crescimento da repressão estatal é uma tendência crescente desde a crise do regime de acumulação conjugado e já prevista como condição essencial para a manutenção da sociabilidade burguesa no regime de acumulação integral, revelando o principal poder da burocracia estatal na contemporaneidade: sua capacidade de impedir, com níveis elevadíssimos de repressão brutal, a emergência e avanço da luta de classes e da contestação social[6] que ameace a manutenção da sociabilidade burguesa. Em outras palavras, garantir aquilo que lhe cabe enquanto classe social, isto é, as condições mais apropriadas para a reprodução capitalista. Somente assim poderemos compreender o estado capitalista, a que classes sociais ele essencialmente serve e porque toda e qualquer luta anticapitalista deve necessariamente lutar pela destruição completa do estado capitalista e de todas as demais instituições burguesas (partidos, sindicatos etc.) que servem, assim como o estado, tão somente para tornar regular a sociedade capitalista. Exemplo concreto disso é a inexistência de nenhuma demonstração histórica que comprove o contrário do que aqui afirmamos, isto é, que tais instituições contribuíram alguma vez com o combate efetivo ao capitalismo.

Referências bibliográficas:
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
BRAGA, Lisandro. Classe em farrapos – acumulação integral e expansão do lumpemproletariado. São Carlos, SP: Pedro e João editores, 2013.
KORSCH, Karl. Marxismo e filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
MAIA, Lucas. As classes sociais em O Capital. Pará de Minas, MG: Virtual Books, 2011.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Editora centauro, 1984.
____. O manifesto comunista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988.
____. O manifesto comunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1977.
____. Para a crítica da economia política – salário, preço e Lucro; o rendimento e suas fontes. São Paulo: Abril cultural, 1982.
____. O capital, Vol. 01. São Paulo: Nova cultural, 1985.
____. O 18 brumário. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
____. Os manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
____. Miséria da filosofia. São Paulo: Martin Claret, 2007.
____. A guerra civil na França. São Paulo: Expressão popular, 2008.
MILIBAND, Ralf. Marxismo e política. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1979.
POGREBINSCHI, Thamy. O enigma do político – Marx contra a política moderna. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2009.
VIANA, Nildo. Estado, democracia e cidadania – a dinâmica da política institucional no capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.
____. A consciência da história – ensaios sobre o materialismo histórico-dialético. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007b.
____. A teoria das classes sociais em Karl Marx. Florianópolis: Bookess, 2012.





* Cientista político e sociólogo, professor de Teoria Política/UFMS e militante do Movimento Autogestionário/MovAut.
[1] Para isso utilizaremos de diversas citações das obras de tais autores (Marx e Engels).
[2] Para constatar a existência de diversas classes sociais na obra de Karl Marx Cf. (MARX, 1985; MARX, 2007; MARX, 1997; MARX, 2008; MARX & ENGELS, 1998; MARX & ENGELS, 1984; VIANA, 2012).
[3]Nossa compreensão do que vem a serem as classes fundamentais de um modo de produção (feudal, capitalista etc.) se fundamenta na definição segundo a qual “as classes sociais fundamentais são aquelas que são constituídas pelo modo de produção dominante, tal como Marx deixou claro em várias passagens. Outras classes sociais são aquelas ligadas às demais relações de produção ou às relações de produção anteriores. Estes casos manifestam determinada divisão social do trabalho, na qual as atividades produtivas e de apropriação estão presentes e distinguem as classes sociais. Porém, isto não esgota a divisão social do trabalho. Esta se estende para outras relações sociais, promovendo atividades específicas voltadas para a reprodução das relações de produção. Sendo assim, as demais classes são derivadas das relações de produção e se incluem no que Marx denominou “superestrutura”, tal como o Estado, as formas “ideológicas”, etc. formando as classes sociais improdutivas. Marx desenvolve isso de forma mais profunda no caso do capitalismo, mas faz algumas breves referências a outros modos de produção onde existiriam tais classes. No caso do capitalismo, as referências são mais abundantes. Porém, resta saber o que determina a existência dessas classes, já que não formam uma única classe social. Isto vai depender de sua relação com o modo de produção dominante” (VIANA 2012, p. 67-68).

[4]  Para uma melhor compreensão da dinâmica da produção capitalista de mercadorias, suas tendências e contra tendências, contradições, possibilidades etc. conferir a totalidade da obra O capital de Karl Marx.
[5] Sobre a história do capitalismo como uma sucessão de regimes de acumulação Cf. (VIANA, 2009).
[6] Nossa compreensão sobre o conceito de contestação social, e que será utilizado ao longo desse trabalho, acompanha a definição de Viana (2015), que deixa claro: “o conceito de contestação social nos leva a pensar em relações sociais que produzem contestação, em indivíduos e grupos contestadores, e nos próprios atos e formas de contestação. Desta forma, podemos definir contestação social como uma relação social marcada pela recusa por parte de alguns indivíduos ou grupos das relações sociais estabelecidas. Assim, contestação pressupõe descontentamento com determinadas relações sociais e motivos para isso, tal como exploração, dominação, opressão, marginalização, violência etc. A contestação pressupõe o que é contestado, que é o que é dominante, estabelecido, hegemônico etc.” (VIANA, 2015, p. 98).

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

REVISTA ENFRENTAMENTO, ANO 11, NÚMERO 19.



Revista Enfrentamento, ano 11, número 19. Uma publicação do Movimento Autogestionário cujo objetivo fundamental é contribuir com a luta cultural revolucionária. Com textos de Lisandro Braga, Nildo Viana, Lucas Maia e Gabriel Teles, Edmilson Marques, Karl Korsch e Rubens Vinícius.

domingo, 1 de janeiro de 2017

A CONTRIBUIÇÃO DE MARX PARA A TEORIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

A CONTRIBUIÇÃO DE MARX PARA A TEORIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Texto publicado originalmente na Revista Despierta, volume 03, número 03, 2016.

Nildo Viana – Doutor em Sociologia/UNB e
Militante Autogestionário

Qual é a possível contribuição de Karl Marx para a compreensão e análise dos movimentos sociais? Talvez essa pergunta devesse ser antecedida por outra: Marx oferece alguma contribuição para a análise dos movimentos sociais? Por um lado, Marx é considerado um clássico da sociologia, bem como de outras ciências humanas (ciência política, economia, etc.) e da filosofia, e não poderíamos esquecer sua influência em diversas outras ciências, incluindo as naturais. Como autor clássico e considerado por muitos como atual, então certamente deve ter alguma contribuição para a compreensão dos movimentos sociais. Por outro lado, é tido por alguns como um autor do século 19 (e alguns até querem nos convencer que seria ultrapassado) e os movimentos sociais emergiram sob forma embrionária a partir do final dessa década, quando ele já havia morrido, apenas alguns embriões estavam emergindo.
Sendo assim, as duas questões iniciais continuam válidas. O nosso objetivo é responder estas indagações e para isso faremos o seguinte trajeto analítico: em primeiro lugar, apresentaremos algumas posições de alguns autores a respeito da possível contribuição de Marx para a análise dos movimentos sociais; em segundo lugar, realizaremos um esclarecimento conceitual que, de nossa perspectiva, é fundamental para nos posicionarmos diante dessas questões; em terceiro lugar, apontaremos quais são as contribuições de Marx para uma teoria dos movimentos sociais, que é nossa posição e resultado de nossa análise.
Marx e os Movimentos Sociais na Produção Sociológica
Existem, basicamente, três posições dentro da produção sociológica a respeito da possível contribuição de Marx para a análise dos movimentos sociais: 1) aqueles que consideram que sua contribuição ainda é atual e fundamental ou pelo menos que ele contribui de alguma forma; 2) aqueles que delimitam tal contribuição a um período histórico específico ou apenas ao caso do movimento operário; c) aqueles que negam tal contribuição. Estas duas últimas muitas vezes se confundem e alguns autores passaram de uma posição para outra no decorrer do tempo.
No primeiro caso, temos um conjunto de autores, de diversos países e distintas concepções a respeito dos movimentos sociais que defendem a existência e atualidade de Marx no processo explicativo desse fenômeno social. Vamos lançar mão de alguns poucos casos concretos para demonstrar isso.
Segundo Scherer-Warren, “a contribuição de Marx para a análise dos movimentos sociais de libertação das classes socialmente oprimidas foi uma das mais ricas já realizadas. A abrangência de seus estudos nesse sentido torna difícil a tarefa de selecionar suas contribuições mais significantes” (1989, p. 24). Essa autora afirma que todas as “categorias sociológicas” que ela privilegia na análise dos movimentos sociais estão presentes no pensamento de Marx. Tais “categorias sociológicas” seriam práxis, projeto, ideologia, organização e direção dos movimentos sociais. Isso é coerente com a definição de movimentos sociais apresentado pela autora, pois, em sua concepção, eles seriam “uma ação grupal para transformação (a práxis) voltada para a realização dos mesmos objetivos (o projeto), sob a orientação mais ou menos consciente de princípios valorativos comuns (a ideologia) e sob uma organização diretiva mais ou menos definida (a organização e sua direção)” (SCHERER-WARREN, 1989, p. 21). A autora analisa esses tópicos e busca retomá-los ou relacioná-los com o pensamento de Marx.
Essa posição, no entanto, nos parece muito problemática. Em primeiro lugar, teríamos que concordar com sua definição de movimento social. E seu conceito é demasiadamente amplo e por isso inaceitável, inclusive por poder englobar partidos, classes sociais e diversos outros fenômenos sociais (VIANA, 2016a). O seu campo lexical, no aspecto semântico, é distinto do de Marx em vários pontos, a começar pelo termo “ideologia”, que nesse autor é um sistema de pensamento ilusório (MARX e ENGELS, 1982; MARX e ENGELS, 1979; VIANA, 2010) e para a autora se tornou “princípios valorativos comuns”. A sua forma de elaboração conceitual é bem distinta da que é realizada pelo método dialético (VIANA, 2016a). Em segundo lugar, a sua análise da contribuição de Marx remete ao que este autor aborda no caso do proletariado, a classe revolucionária constituída pelo capitalismo segundo sua concepção. Ela transfere as afirmações de Marx, relativas ao proletariado, para os movimentos sociais, o que é sem sentido e equivocado, pois são fenômenos distintos[1]. Em último lugar, a autora realiza uma interpretação problemática do pensamento de Marx, confundindo-o com o pensamento de Lênin, ao atribuir a ele uma concepção de partido político como elemento de sua teoria da revolução e confusão conceitual (como ocorre com o conceito de classes, por exemplo).
Segundo Maria da Glória Gohn, retomando Scherer-Warren, Marx teria trazido como grande contribuição para a análise dos movimentos sociais o conceito de práxis política. Ela afirma que “em suas análises históricas, especialmente em Luta de classes na França (1850), Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte (1852) e Guerra Civil na França (1871), Marx explorou mais intensamente a questão da práxis política dos movimentos” (GOHN, 2002, p. 177).
Essa autora busca confirmar sua pressuposição de que Marx teria discutido os movimentos sociais a partir de algumas citações do mesmo, que não custa reproduzir:
Assim, além dos distintos movimentos econômicos dos operários, surgem em todos os lugares movimentos políticos, isto é, movimentos de classe, com o objetivo de impor os seus interesses de forma geral, de uma forma que possui força coercitiva-social geral. Se esses movimentos pressupõem certo grau de organização prévia, em compensação eles igualmente significam meios de desenvolver esta organização (MARX apud GOHN, 2002, p. 177).
Gohn não percebe que aqui Marx está abordando o movimento operário, que é um movimento de classe, e não movimentos sociais. Esse equívoco permanece na atribuição de referência aos movimentos sociais em outra citação: “não se diga que o movimento social exclui o movimento político. Jamais haverá movimento político que não seja ao mesmo tempo social” (MARX apud GOHN, 2002, p. 177-178).
Assim, Gohn toma as referências de Marx sobre movimento operário e movimento de classe como se fossem referências aos movimentos sociais. As análises históricas de Marx, o que é perceptível a começar pelos títulos de suas obras citadas por Gohn, são as lutas de classes, ou seja, movimento de classes e não movimentos sociais. A primeira citação de Marx apresentada por Gohn mostra uma contraposição entre movimento econômico e movimento político que é descontextualizada. A citação completa ajuda a compreender isso:
Mas, por outro lado, todo o movimento em que a classe operária enfrenta como classe as classes dominantes e tenta obrigá-las por meio de uma pressão externa é um movimento político. A tentativa, por exemplo, de impor aos capitalistas isolados uma redução do tempo de trabalho numa só fábrica ou num dado ramo industrial por meio de greves, etc., é um movimento puramente econômico; em contrapartida, o movimento para impor uma lei das oito horas, etc., é um movimento político. E deste modo surge em toda a parte, a partir dos movimentos econômicos isolados dos operários, um movimento político, isto é, um movimento da classe, para impor os seus interesses de uma forma geral, de uma forma que possua força geral, socialmente coercitiva. Se estes movimentos supõem uma certa organização prévia, eles são igualmente, por seu lado, meio do desenvolvimento dessa organização (MARX, 2016, p. 216).
Marx se refere aqui ao movimento operário. Ele distingue entre movimento operário “econômico”, ou seja, isolado, de movimento operário político, isto é, tendo força geral e coercitiva. Neste último caso, temos um movimento de classe, político. Seria impossível aplicar essa reflexão ao caso do movimento negro ou feminino. A segunda citação comete outro equívoco. Marx está se referindo, nesse caso, não especificamente a movimentos sociais e sim a processos sociais. O parágrafo seguinte deixa bem claro isso: “somente numa ordem de coisas em que não existam mais classes e antagonismos de classes as evoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas (MARX, 1989, p. 160). A contraposição que Marx efetiva aqui é entre o social e o político, sendo que o primeiro está presente em todas as sociedades e o segundo é um processo existente nas sociedades de classes. O uso da palavra “movimento” (social ou político) não tem o sentido atribuído por Gohn e sim apenas para mostrar a mudança e que toda mudança política é mudança social.
Um último elemento apontado por Gohn é o da questão da solidariedade, que em Marx é uma questão específica do proletariado (ele precisa romper com a divisão e competição imposta pelo capital e criar sua unidade, associação, solidariedade), que é generalizado para todos os movimentos sociais. Além disso não estar presente no pensamento de Marx, é um equívoco colocar a solidariedade como elemento fundamental para explicar os movimentos sociais.
Uma outra forma de conceber a contribuição de Marx para a análise dos movimentos sociais é a realizada pelos pesquisadores dos movimentos sociais urbanos, movimentos sociais rurais, ou movimentos sociais populares em geral. Estes não extraem citações descontextualizadas e mal compreendidas de Marx para afirmar que ele fez estudos sobre tais movimentos sociais, mas sim extraem da sua obra uma determinada compreensão da sociedade e dos problemas urbanos, rurais, populares, para explicá-los (CASTELLS, 1988; CASTELLS, 1989; LOJKINE, 1981; BORJA, 1975). Nesse caso, se reconhece uma contribuição do pensamento de Marx, mas indireta, com sua teoria do capitalismo, das classes, luta de classes, etc. Castells (1988; 1989), por exemplo, aborda os movimentos sociais urbanos a partir da questão da reprodução da força de trabalho, cujo espaço de realização ocorre na cidade e em relação com a estrutura urbana (transporte, moradia, etc.). Por questão de espaço nos limitaremos a estas abordagens, às quais seria possível acrescentar muitas outras.
Uma outra posição é a daqueles que limitam a contribuição de Marx a um período histórico específico ou ao caso do movimento operário. Para grande parte dos autores do que se convencionou chamar “teoria dos novos movimentos sociais”, o que preferimos denominar abordagem culturalista, as contribuições de Marx se limitam ao passado histórico do capitalismo:
Embora cada qual tenha sua própria teoria da modernidade, [os representantes da abordagem culturalista – NV] compartilham mais ou menos o mesmo argumento central. Ao longo do século XX, uma mudança macroestrutural teria alterado a natureza do capitalismo, cujo centro teria deixado de ser a produção industrial e o trabalho. Uma nova sociedade se vislumbraria, dando lugar também a novos temas e agentes para as mobilizações coletivas (ALONSO, 2009, p. 59).
Essa tese está presente em quase todos os autores que defendem que vivemos numa “sociedade pós-industrial” ou “pós-moderna”. As mudanças sociais teriam restringido a validade do pensamento de Marx ao período anterior e por isso seria necessário novas abordagens para analisar os movimentos sociais. A concepção marxista ortodoxa precisaria ser substituída por uma nova abordagem (ALONSO, 2009; GOHN, 2002). Esse seria o caso de autores como Touraine, Offe, Melucci, Laclau e Mouffe:
Partindo da inadequação do paradigma tradicional marxista, denominado por alguns clássico ou ortodoxo, para a análise dos movimentos sociais que passaram a ocorrer na Europa a partir dos anos 60 deste século, assim como fazendo a crítica aos esquemas utilitaristas e às teorias baseadas na lógica racional e estratégia dos autores (que analisavam os movimentos como negócios, cálculos estratégicos, etc.), Touraine, Offe, Melucci, Laclau e Mouffe, entre outros, partiram para a criação de esquemas interpretativos que enfatizam a cultura, a ideologia, as lutas sociais cotidianas, a solidariedade entre as pessoas de um grupo ou movimento social e o processo de identidade criado (GOHN, 2002, p. 121).
No entanto, alguns destes autores já apontavam para um rompimento com a tese da utilidade da concepção de Marx (e geralmente de tudo que ficou conhecido como “marxismo”) para explicar os movimentos sociais. O problema não seria apenas temporal, mas epistemológico. As correntes pós-estruturalistas apontam para a recusa da totalidade, luta de classes, etc. e assim consideram que nem no que se refere ao século 19 ou especificamente ao movimento operário as teses de Marx foram válidas. Esse é o caso de Laclau (1986) e Touraine a partir dos anos 1990 (GOHN, 2008). A ideologia da sociedade pós-moderna[2] ou pós-industrial acabou gerando uma epistemologia negadora do marxismo. É nesse contexto que a crítica ao pensamento de Marx deixa de ser por causa de inadequação temporal e passa a ser por causa de sua inadequação epistemológica.
Essas análises possuem limites que não poderemos explicitar em sua totalidade e detalhadamente, mas tão-somente fazer algumas rápidas observações críticas, por questão de espaço. A concepção segundo a qual as teses de Marx só eram válidas para o século 19 e/ou para o movimento operário é equivocada. As razões do equívoco serão aprofundadas adiantes quando abordarmos a contribuição de Marx para a análise dos movimentos sociais. No entanto, é preciso adiantar aqui que a teoria elaborada por Marx possui elementos que são expressão da época, do momento histórico, e elementos essenciais da sociedade capitalista, que vão além de sua época. Isso será melhor explicitado adiante, quando trataremos de sua teoria do capitalismo. No caso específico dos movimentos sociais, sendo que eles inexistiam na época da produção do Marx, estavam em anunciando o seu nascimento, obviamente que ele não poderia analisar o inexistente e sua análise do movimento operário e das lutas de classes não são aplicáveis a eles, mas possuem relação com os mesmos e não é possível compreendê-los sem tal análise, como desenvolveremos a seguir.
As diversas abordagens dos “novos movimentos sociais” são problemáticas, pois suas bases teórico-metodológicas são frágeis e mesmo as mais estruturadas são marcadas por problemas insolúveis, tal como uma recusa ou má compreensão da historicidade. Da mesma forma, outro problema é a tese da superação da sociedade “industrial”, “moderna”, “capitalista” por uma outra, coisa que não ocorreu de fato (VIANA, 2009). Seria necessário um grande desdobramento teórico para mostrar o equívoco dessa concepção, mas nos contentamos ao colocar que os autores que tentaram mostrar a alteração de uma sociedade industrial em uma sociedade pós-industrial (ou “pós-moderna”) não provaram absolutamente nada, pois, desde Daniel Bell (1969), passando por Alain Touraine (1970), Claus Offe (1989) até chegar a Toni Negri e Maurizio Lazzarato (2001), o que fizeram foram apenas demonstrar que a sociedade moderna alterou alguns de seus aspectos, como, por exemplo, aumentar o setor de serviços, o trabalho “imaterial”, etc., e não uma criação de uma nova sociedade, que, aliás, seria pós e não teria nome próprio (VIANA, 2009).
Os chamados “novos movimentos sociais” não são tão novos e a ideia de novidade precisaria de uma fundamentação mais ampla. O movimento das mulheres emerge embrionariamente no final do século 19, assim como o movimento estudantil. Outros movimentos vão emergindo e o que surge, efetivamente de novo, a partir do final dos anos 1960, é o movimento ecológico e pacifista. No entanto, todos os movimentos sociais são incluídos entre os “novos”, o que seria um equívoco. Aliás, a própria expressão “novos movimentos sociais” é um equívoco, pois generaliza para todos os movimentos sociais o que ocorre com apenas alguns. Vários autores já criticaram esse postulado (ALONSO, 2009) e Gunder Frank e Fuentes (1989) afirmam, corretamente, que “os ‘novos’ movimentos sociais não são novos, ainda que tenham algumas características novas” (p. 19). Na verdade, emergiram alguns novos movimentos sociais, que são, aliás, pouco abordados pelos representantes da abordagem culturalista, e os que já existiam sofreram algumas mudanças, de acordo com a própria mudança do capitalismo, tal como colocaremos adiante. Nesse sentido, a recusa da contribuição de Marx para a teoria dos movimentos sociais é um retrocesso intelectual e nosso objetivo é, a partir de agora, apresentar as contribuições deste autor.
Esclarecimento Conceitual
Antes de apresentarmos aquilo que consideramos a contribuição de Marx para uma teoria dos movimentos sociais, é necessário realizarmos alguns esclarecimentos conceituais. Para saber se Marx contribui ou não com a análise dos movimentos sociais precisamos, anteriormente, definir o que entendemos por isso. Aqui encontramos um dos problemas mais graves nas abordagens dos movimentos sociais: o problema conceitual. Muitos autores não definem o que entendem por movimentos sociais, mais ainda quando abordam movimentos sociais específicos (negro, feminino, ecológico, estudantil, etc.). Outros apresentam definições idiossincráticas, sem fundamentação e base teórico-metodológica. Essas definições idiossincráticas são, muitas vezes, empíricas, tal como observou Melucci (1989)[3]. As definições empíricas dos movimentos sociais são aquelas que partem de um movimento social, ou pior, uma mera organização ou ramificação de um, e o tomam como modelo para definir movimentos sociais em geral. Outra forma de definição é a modelar, fundamentada numa concepção racionalista criadora de modelos, que realiza generalizações que geralmente nunca se aplica ao conjunto dos movimentos sociais. Esse é o caso da definição de movimentos sociais de Scherer-Warren que apresentamos anteriormente. As definições idiossincráticas podem ser fundadas em casos empíricos ou então na imaginação daquele que faz a definição.
Todas essas formas de definição de movimentos sociais são distintas da concepção marxista, ou seja, da forma dialética de elaboração dos conceitos. A elaboração dialética do conceito parte de uma teoria da realidade e de uma teoria da consciência para elaborar os seus conceitos. O real, na concepção dialética, é o concreto e este é entendido como histórico, total, determinado. Como a célebre frase de Marx, “o concreto é o resultado de suas múltiplas determinações” (MARX, 1983a). Qualquer fenômeno social ou conjunto de fenômenos é histórico, não existiu desde sempre. As classes sociais, o Estado, os movimentos sociais, surgiram num determinado momento histórico, se desenvolve e perecem ou se transformam. Isso não ocorre aleatoriamente ou gratuitamente, é um processo determinado. O Estado aparece com o surgimento das classes sociais e suas lutas, sendo que ele surge para expressar os interesses da classe dominante e amortecer os conflitos de classes para que não haja revolução ou instabilidade que dificulte a reprodução dessa sociedade. Um fenômeno social é uma totalidade inserida noutra totalidade mais ampla que é a sociedade. O Estado é uma totalidade (que fica cada vez mais complexa com o desenvolvimento da humanidade) inserida na totalidade da sociedade em que existe. O mesmo vale para os demais fenômenos sociais. A sociedade, entendida como o “conjunto das relações sociais” (MARX, 1989) é uma totalidade que engloba em si diversas outras totalidades e é englobada por uma totalidade maior (natureza, universo). Um fenômeno social é histórico e isso ocorre também com o Estado e com a sociedade. O Estado surge num determinado momento histórico, assume várias formas com a passagem de uma sociedade de classes para outra, e tende a ser abolido com a superação do capitalismo.  A sociedade surge com a própria humanidade e se deixar de existir será junto com ela, mas assumiu diversas formas no decorrer da história.
A dialética marxista também tem uma teoria da consciência. A consciência dos seres humanos é um produto social e histórico, sendo, igualmente, determinada e uma totalidade. Ela é o ser consciente, ou seja, o indivíduo real, existente na vida real, que desenvolve sua percepção do mundo, através de seu processo histórico de vida. Os indivíduos são seres reais, históricos, falhos, e isso se manifesta na sua consciência. A consciência, assim, pode ser verdadeira ou falsa, pois o saber verdadeiro não depende apensa da capacidade mental dos indivíduos, mas, principalmente, das condições sociais. A divisão social do trabalho, os modos de vida, interesses, etc., derivados dela, constituem limites para a consciência humana que somente uma transformação social radical pode abolir de forma generalizada na humanidade. O desenvolvimento da consciência é uma necessidade humana, mas determinadas relações sociais acabam se tornando obstáculos para isso ocorrer. É por isso que Marx tematizou a questão das ilusões e da ideologia (VIANA, 2013).
Na obra A Ideologia Alemã (MARX e ENGELS, 1982), realizou a crítica da ideologia e mostrou as bases das representações ilusórias (a divisão social do trabalho e as relações sociais limitadas derivadas dela). No entanto, os seres humanos, superando os obstáculos sociais, tem a capacidade de desenvolver uma consciência correta da realidade e superar a consciência ilusória. Isso, para ocorrer, tem que ter bases sociais reais. Se os interesses gerados a partir da divisão social do trabalho e a própria constituição dessa, são obstáculos para uma consciência correta da realidade, então essa só pode surgir a partir daqueles que possuem interesse em desenvolvê-la. Marx encontrou nas classes sociais a base dos interesses, seja em ocultar a verdade ou em revelá-la. A emergência da sociedade moderna gera o proletariado, classe que tem interesse na verdade e necessita dela para sua autolibertação, que significa, simultaneamente, emancipação humana. Nesse caso, ao invés de interesses particularistas, como os da classe dominante e suas classes auxiliares, o proletariado representa os interesses universais e por isso não recusa a totalidade e o torna um de seus pressupostos.
No entanto, o proletariado não desenvolve uma consciência correta da realidade, nem sob a forma de representações cotidianas, nem sob a forma de teoria, pois ele tem esse interesse, mas está submetido à divisão social do trabalho e à hegemonia burguesa, bem como tem menor acesso às informações e condições sociais de reflexão e produção intelectual. Então como emerge essa consciência correta da realidade? Através das lutas de classes, que é quando o proletariado em sua luta se une, se organiza e desenvolve sua consciência[4], e isso ocorre de forma mais profunda e desenvolvida quando inicia um processo revolucionário, pois o início da transformação social radical permite romper com as ilusões, com os interesses imediatos que são obstáculos para o avanço da consciência, com o processo de totalização da transformação. Contudo, as experiências revolucionárias foram derrotadas e todas as revoluções proletárias ficaram inacabadas. A retomada desse processo, no entanto, torna possível a retomada da consciência correta da realidade generalizada no proletariado e todos que o apoiam e que, uma vez realizada a revolução, se generaliza em toda a sociedade.
Antes desse processo ocorrer, no entanto, já existem indivíduos que avançam num sentido de uma consciência correta da realidade, mesmo que poucos, marginalizados, estigmatizados, por não expressarem os interesses dominantes, os interesses particularistas, não estarem seguindo os modismos e ideias hegemônicas. Isso ocorre no interior do proletariado através de alguns indivíduos que avançam no sentido de representações cotidianas verdadeiras ou mesmo representações congruentes[5], especialmente utopias. Isso também ocorre no caso de intelectuais, como o próprio exemplo de Marx, mas também de outros pensadores, como Korsch, Pannekoek, etc. Nesse último caso é que a consciência revolucionária assume a forma de teoria, um saber complexo e amplo que consegue explicitar as relações sociais reais tal como elas são, realizando a “crítica desapiedada do existente”. Esses processos constituem não somente uma consciência correta da realidade presente, mas também aquilo que Ernst Bloch denominou “consciência antecipadora” (BICCA, 1987).
Assim, a emergência do proletariado como classe social e suas lutas são determinações do surgimento da teoria, aqui compreendida como um universo conceitual que expressa e explica a realidade social. A teoria é expressão da realidade sob forma totalizante e os conceitos, tal como colocou Marx (1989), são “expressões da realidade” em seus diversos aspectos.
Se o proletariado desenvolve sua consciência através de sua luta contra a classe capitalista, ou seja, na luta de classes, é dessa luta que os indivíduos de outras classes, incluindo os intelectuais, retiram suas fontes de inspiração e elaboram conceitos e teorias. Essa base social e histórica da elaboração dos conceitos é reforçada pelas necessidades da luta proletária, tal como a compreensão das mutações do aparato estatal, a emergência e significado dos movimentos sociais. A partir do momento em que surge a necessidade de compreensão dos movimentos sociais, surge a necessidade de sua conceituação e explicação. É nesse momento que se torna necessário um conceito e uma teoria dos movimentos sociais.
A elaboração dialética dos conceitos é distinta dos modelos, tipos ideais, etc. O objetivo é expressar a realidade tal como ela é, ou seja, o compromisso com a verdade e não com manipulação, estratagemas políticos, etc., é sua base intelectual. Não se elabora um conceito para servir aos interesses de uma disputa política específica e sim tendo o fim geral da transformação radical e total das relações sociais, a emancipação humana, como objetivo. E esse processo é realizado através da percepção da realidade e necessidade de expressá-la, o que é realizado através do conceito. O conceito, que é um signo, é expressão da realidade, que é o significado. O signo pode ser escolhido no interior de uma certa arbitrariedade ou convencionalidade, mas não pode ser mero capricho individual, idiossincrático. A escolha do signo, que será o conceito, obedece aos processos acima delimitados e busca ser o mais adequado possível à realidade que busca expressar. O significado, por sua vez, é o aspecto da realidade que o conceito busca expressar. Desta forma, na elaboração dialética do conceito se inicia pela necessidade de explicitar um significado e por isso esse processo começa pela distinção de qual aspecto da realidade se busca expressar. O significado é o ser, o aspecto da realidade, que o signo visa expressar e, portanto, é por este que se deve iniciar.
Logo, para que o conceito de movimentos sociais seja elaborado é preciso saber a que conjunto de fenômenos sociais ele se refere. Trata-se de um conjunto de fenômenos que podemos denominar movimento estudantil, movimento negro, movimento feminino, movimento ecológico, entre diversos outros. Uma vez esclarecido qual é o conjunto de fenômenos que são englobados no conceito de movimentos sociais[6], então o passo seguinte é sua conceituação. A melhor definição de movimentos sociais é como “movimentos de grupos sociais” (JENSEN, 2016; VIANA, 2016a). Porém, é preciso compreender que não se trata apenas de palavras e vínculos de palavras com fenômenos sociais, pois um conceito, que é uma unidade de uma teoria, remete a diversos outros conceitos (a começar pelo de grupos sociais)[7]. Essa definição é apenas uma parte do conceito, que precisa outros conceitos para se constituir enquanto tal. Os movimentos sociais são movimentos de grupos sociais quando estes, devido insatisfação com determinada situação social específica, gera um senso de pertencimento, objetivos e mobilização (VIANA, 2016a) e cada um desses elementos necessita explicação e desenvolvimento.
É preciso deixar claro que este conceito de movimentos sociais aponta para sua concreticidade, pois engloba a totalidade do fenômeno, sua historicidade e sua determinidade: os movimentos sociais só surgem quando os grupos sociais se tornam “efetivos” ou “em fusão”, a partir dos outros elementos constitutivos acima delimitados, o que depende de condições sociais externas ao mesmo (a insatisfação social não é do grupo com ele mesmo e sim com sua situação social específica). Isso é apenas parte da questão, pois é necessário analisar as variedades de movimentos sociais, as suas ramificações (tendências, organizações, etc.), entre diversos outros fenômenos correlatos e derivados.
Assim, aqui já mostramos uma contribuição de Marx, que é a elaboração de um conceito de movimentos sociais a partir do método dialético desenvolvido por ele. No entanto, outra contribuição, derivada do método dialético, é a questão da especificidade dos movimentos sociais. Os movimentos sociais não são movimentos de classes sociais e por isso o movimento operário, o movimento camponês, etc., não se incluem nesse conceito. Esse esclarecimento conceitual é fundamental, inclusive para termos uma compreensão mais adequada da contribuição de Marx para a teoria dos movimentos sociais. O ponto fundamental aqui é o que diferencia movimentos sociais e movimentos de classes sociais.
Os movimentos sociais são gerados por grupos sociais e os movimentos de classes, obviamente, por classes sociais. Aqui a diferenciação entre grupos sociais e classes sociais se torna fundamental. Um movimento de classe (como o operário, camponês, etc.) tem como objetivo os interesses de classe, sejam eles interesses imediatos ou fundamentais[8]. As classes sociais são compostas por um conjunto de indivíduos que possui um modo de vida comum, interesses comuns e luta em comum contra outras classes, derivados da divisão social do trabalho, que, por sua vez, é determinada pelas relações de produção (MARX e ENGELS, 1982; VIANA, 2012)[9]. As lutas e os interesses das classes sociais remetem para a totalidade da sociedade, tanto nas relações de produção quanto nas formas sociais (“superestrutura”), pois as classes são relacionais e só existem em suas relações e lutas[10].
Entre os interesses imediatos de todas as classes sociais está a luta em torno do mais-valor. No caso das classes fundamentais, o proletariado luta para diminuir a extração de mais-valor e, quando se torna classe autodeterminada, para a abolir, enquanto que a burguesia luta para a manter e aumentar. Essa luta se manifesta imediatamente na luta por aumentos salariais e outras reivindicações proletárias e na busca de aumento do lucro, por parte da classe capitalista. Uma vez produzido o total de mais-valor num determinado contexto, o mais-valor global é repartido em toda a sociedade e cada classe social busca para si um montante maior do mesmo. A burocracia, como classe auxiliar da burguesia, fica com uma parte considerável do mais-valor global, bem como, em menor grau, a intelectualidade. Em certos momentos históricos de uma sociedade, a classe latifundiária fica com uma parte considerável do mais-valor global. As classes desprivilegiadas, com exceção do proletariado, ficam com uma parte irrisória do mais-valor global e as classes instituídas por relações de produção não-capitalistas, como o campesinato, sofrem com os “métodos secundários de exploração capitalista”. Assim, aparentemente, a luta de classes gira em torno da renda e de várias formas em que ela se reparte (incluindo o acesso aos bens coletivos e culturais), mas que é, no fundo, uma luta pela repartição do mais-valor global.
Essa luta, por sua vez, se relaciona com o aparato estatal, que é um dos principais mecanismos de repartição do mais-valor global. O Estado drena uma parte considerável do mais-valor global via impostos e outros meios e sustenta sua imensa máquina burocrática (o que inclui a burocracia estatal, tanto a estatutária quanto a governamental, além de subalternos e todos os demais)[11] e reparte parte do mais-valor sob outras formas, como a prevaricação[12], as políticas estatais de assistência social, etc.
Seria necessário dedicar um tempo e espaço extenso para apresentar todas as formas de repartição dos mais-valor global e por isso nos limitamos a esses aspectos[13]. A base de todo esse processo é a divisão social do trabalho, que constitui as classes sociais e é de onde elas lutam por tal repartição do mais-valor. A luta de classes é uma luta que remete à totalidade da sociedade, mesmo quando se limita aos interesses imediatos.
Os grupos sociais que constituem os movimentos sociais possuem outra dinâmica e interesses. O movimento negro, por exemplo, combate o racismo, que é um problema específico dos negros. Sem dúvida, ele pode, em alguns de seus setores, para combater o racismo, entrar na luta pela repartição do mais-valor. Ao exigir políticas de ação afirmativa, que significa dispêndio estatal, exige uma parte do mais-valor global. A justificativa para a exigência, no entanto, não é as necessidades de uma classe social e nem a divisão social do trabalho, e sim o passado histórico e/ou a situação racial. Mas também pode reivindicar uma legislação antirracista, o que não entra diretamente na repartição do mais-valor. O primeiro caso não seria semelhante? Apresenta um elemento de semelhança, pois remete ao processo de repartição do mais-valor, mas a reivindicação não é para beneficiar uma classe social e sim um grupo social, o que revela sua diferença. No segundo caso, a diferença é radical, pois se trata de uma questão específica de um grupo específico. Isso é derivado da diferença entre classe social e grupo social.
Sem dúvida, setores do movimento negro podem colocar como objetivo a revolução socialista ou apoiar determinada candidatura ao governo ou defendê-lo, mas isso é derivado de como os indivíduos dos grupos sociais que atuam nos movimentos sociais compreendem a sociedade, o que remete, por sua vez, ao problema da hegemonia (na sociedade e no movimento), as tendências internas, as distintas organizações com seus distintos interesses, etc. Essa posição diante das questões nacionais, governamentais, luta por transformação social, são parte do “duplo objetivo” existente nos movimentos sociais (VIANA, 2016c). Nenhum grupo social está fora da sociedade ou existe sem ligação com as lutas de classes (incluindo a política institucional, que remete ao problema das eleições, governos, disputas partidárias, etc.). O objetivo específico é o que constitui, legitima, o movimento social ou suas ramificações. Este é a sua razão de existir. O objetivo geral é um apêndice ou um segundo objetivo que pode ganhar força dependendo da ramificação do movimento social, podendo, inclusive se tornar principal em algumas ramificações, que, no entanto, não abandona o objetivo específico, pois se o fizer deixa de ser parte do movimento social[14].
No entanto, resta uma questão. A luta salarial numa empresa determinada ou numa categoria profissional é manifestação indireta da luta de classes, mas a luta salarial em nível nacional é manifestação direta da luta de classes. No primeiro caso, temos a reivindicação de setores, categorias, etc., da classe social e, noutro, da classe em seu conjunto. Essa foi a distinção que Marx realizou ao abordar a diferença entre “movimento econômico” (reivindicativo para setores da classe) e movimento de classe (reivindicativo para o conjunto da classe, ou seja, “político”). A distinção do movimento reivindicativo de parte da classe e movimento político do conjunto da classe serve como base para entendermos que os movimentos sociais são fundamentalmente movimentos reivindicativos quando se limitam aos objetivos específicos e, portanto, manifestam indiretamente a luta de classes[15]. Quando setores dos movimentos sociais realizam reivindicações mais gerais para os grupos sociais de base dos mesmos, isso não altera o quadro que continua meramente reivindicativo. Isso só se rompe quando setores dos movimentos sociais se unem com uma classe social e sua luta, especialmente no caso do proletariado, pois é somente com ele que o processo de superação positiva do capitalismo pode ocorrer.
Desta forma, movimentos sociais e movimentos de classe são distintos, tanto pela base social de cada um (grupo ou classe)[16] quanto pelos objetivos e outros elementos derivados. Um elemento fundamental de diferenciação é que as classes sociais são relacionais (divisão social do trabalho, exploração e distribuição de bens, aparato estatal, etc.) e os grupos sociais nem sempre. Esse esclarecimento conceitual é fundamental para observar a contribuição de Marx para uma teoria dos movimentos sociais. A partir dessa clarificação conceitual podemos dizer que Marx não abordou diretamente os movimentos sociais, a não ser algumas poucas referências aqui ou ali a um processo embrionário dos mesmos, como mostraremos adiante. O movimento operário, assim como o camponês, são movimentos de classe e não movimentos sociais.
Portanto, a abordagem de Marx sobre o movimento operário não serve de “modelo” para analisar os movimentos sociais, tanto por ele não ser um movimento social quanto por ter bases e dinâmica bem distinta. Obviamente que, em alguns casos, isso é feito para “resgatar Marx” para uma discussão em evidência, a dos movimentos sociais. Só que isso é feito através de uma forma equivocada e que acaba confundindo mais que esclarecendo. Em outros casos, a motivação oculta é colocar Marx como apenas mais um dos pensadores que se dedicou ao estudo dos movimentos sociais ou tornar o movimento operário apenas mais um movimento social entre outros e que estaria em declínio diante dos demais, que estariam em ascensão. Nesse sentido, é preciso superar esses equívocos e mostrar a real contribuição de Marx para uma teoria dos movimentos sociais.
A Contribuição de Marx para a Análise dos Movimentos Sociais
Se Marx não abordou diretamente e profundamente os movimentos sociais, em parte por causa da época em que produziu suas obras, e sim o movimento operário e outros fenômenos, então qual é sua contribuição para uma teoria dos movimentos sociais. Consideramos que sua contribuição é diversificada e sob formas distintas, umas mais diretas, outras mais indiretas. Sinteticamente, podemos dizer que Marx contribui para uma teoria dos movimentos sociais através do método, da teoria da história e da sociedade, da teoria do capitalismo, elementos mais específicos, e em alguns casos esparsos, de sua obra que podem ser vinculados com os movimentos sociais (teoria da ideologia, das formas de consciência, do Estado, etc.), apontamentos sobre os grupos sociais de base que geram movimentos sociais.
Seremos sintéticos na análise dessas contribuições, especialmente no caso do método dialético. Marx, ao elaborar o método dialético, forneceu uma ferramenta intelectual imprescindível para a análise da realidade e, por conseguinte, para a análise dos movimentos sociais e constituição de uma teoria sobre eles. Demonstramos, anteriormente, como, através do método dialético, é possível elaborar um conceito de movimentos sociais que ultrapassa os problemas e limites das demais definições (desde as embasadas em ideologias quanto as “empíricas”). Da mesma forma, contribui com sua teoria da realidade que nos permite perceber que os movimentos sociais são determinados, históricos e totalidades no interior de outra totalidade. Partindo dessa concepção é relativamente fácil perceber que os movimentos sociais surgiram em determinado momento e se desenvolveram graças à diversas determinações que expressam mudanças sociais (ou seja, na totalidade, que é a sociedade). Ele também contribui ao fugir da ilusão que foi denominada por Hegel como o “espírito da época”, especialmente possibilitando uma perspectiva crítica e não apologética dos movimentos sociais.
A teoria da história das sociedades desenvolvida por Marx, que contém uma teoria da sociedade, é outra contribuição fundamental. Não apenas, e novamente, por recuperar a historicidade, mas por ressaltar a questão da especificidade histórica[17]. A percepção da especificidade histórica é fundamental para entendermos que certos fenômenos existem em todas as sociedades (modo de produção, cultura, etc.), e outros que só existem em determinado conjunto de sociedades (Estado, classes sociais, exploração, etc.) e, ainda, alguns que só existem em uma sociedade (como, no capitalismo, mais-valor, acumulação de capital, proletariado, burguesia, movimentos sociais, etc.). Assim, fica mais claro a questão da historicidade dos movimentos sociais, que surgem a partir de certo momento do desenvolvimento capitalista e se transformam junto com suas mutações (que denominamos regime de acumulação). A teoria da sociedade de Marx, incluída em sua teoria da história, também traz elementos fundamentais para pensar os movimentos sociais, como a questão das classes sociais, das lutas de classes, da ideologia e formas de consciência que emergem a partir delas, das formas sociais (“superestrutura”) em geral. A análise dos interesses, das formas de consciência, etc., são elementos imprescindíveis para uma compreensão mais profunda dos movimentos sociais.
Uma das principais contribuições é a teoria do capitalismo de Marx. Embora seja pouco compreendida (a maioria se limita a ler apenas o volume 01 de O Capital, onde coloca a questão essencial da produção do mais-valor, mas que tem desdobramentos e que estão nos demais volumes da obra), a sua teoria do capitalismo apresenta uma análise do modo de produção capitalista ampla que ajuda a entender a sociedade capitalista em geral. A teoria do mais-valor, ao lado dos elementos complementares (especialmente a acumulação de capital), são fundamentais, bem como o processo de produção de mercadorias, o fetichismo das mercadorias, as lutas operárias (tal como a pela redução da jornada de trabalho), o significado do capital improdutivo (comercial, bancário, etc.), as necessidades da reprodução ampliada do capital, etc. Para entender os movimentos sociais é preciso entender essa sociedade e sua dinâmica, e, nesse sentido, Marx oferece uma contribuição fundamental.
A teoria do modo de produção capitalista de Marx oferece a chave explicativa do desenvolvimento capitalista e sua ressonância nos movimentos sociais, tanto em seu processo de formação, alteração, hegemonia interna, etc. Sem a teoria do modo de produção capitalista de Marx não seria possível compreender a evolução do capitalismo como uma sucessão de regimes de acumulação (VIANA, 2009; VIANA, 2015c). Os regimes de acumulação explicam as mutações e características de cada fase do capitalismo, o que significa uma determinada forma estatal (e isso incide sobre a análise das relações entre movimentos sociais e aparato estatal), processo de valorização e relações internacionais, elementos que exercem determinações sobre as formas sociais em geral e os movimentos sociais em particular.
A luta de classes, que está na base desse processo (a própria produção de mais-valor é luta de classes, pois é quando a burguesia impõe o trabalho alienado e a exploração e o proletariado resiste) e se generaliza em toda sociedade, se manifestando na produção, sociedade civil, cultura, etc. A dinâmica do movimento operário, por sua vez, é fundamental para entender a dinâmica dos movimentos sociais. Pois é nesse processo que emerge as divergências e tendências no inferior dos movimentos sociais, bem como as forças hegemônicas e isso se altera com a dinâmica da luta de classes. Em momentos de crise de um regime de acumulação e de radicalização das lutas de classes, os movimentos sociais também radicalizam e avançam (como no final dos anos 1960)[18]. A dinâmica da luta de classes e do processo de intensificação da repressão que lhe acompanha também é importante para explicar a dinâmica dos movimentos sociais, entre diversos outros aspectos.
É também a partir dessa análise de Marx que se torna possível analisar a mercantilização das relações sociais. A compreensão do processo de mercantilização das relações sociais e como isso afeta os movimentos sociais[19] só é possível a partir da teoria do modo de produção capitalista de Marx, bem como de diversos outros elementos derivados. A sucessão de regimes de acumulação, por sua vez, explica o processo de intensificação da mercantilização e isso ajuda a compreender a dinâmica dos movimentos sociais e a transformação de setores do mesmo em organizações burocráticas que já não fazem mais parte dele (VIANA, 2016). A análise das ondas de mercantilização (e de burocratização) e das escalas de mercantilização (e grau de burocratização) são elementos fundamentais para explicar como determinadas ramificações de movimentos sociais se transformam em organizações burocráticas e abandonam seu vínculo com os mesmos. Sem a análise de Marx sobre a produção especificamente capitalista de mercadorias e sobre o processo de acumulação de capital, a percepção desse processo teria sido impossibilitada.
Entre estes elementos podemos citar a questão da consciência, ideologia, aparato estatal, etc., em suas formas mais concretas, ou seja, tal como se manifestam no capitalismo. A hegemonia e as ideologias burguesas e seu impacto sobre os movimentos sociais é uma questão fundamental. É nesse campo específico que se coloca a questão da cultura e das mutações culturais do capitalismo. O vínculo das formas de consciência com as classes e interesses de classes é outro ponto fundamental. A partir da teoria geral de Marx sobre consciência e ideologia, bem como de sua análise específica de suas manifestações na sociedade capitalista, temos toda uma base teórica para uma compreensão mais adequada da relação entre movimentos sociais e cultura[20]. E nesse contexto, as mutações do capitalismo são também mutações culturais e as renovações hegemônicas e novas ideologias que emergem são produto dessa mudança histórica, expressa pela sucessão de regimes de acumulação. Uma compreensão mais adequada das novas concepções, ideologias, representações, criadas e que possuem impacto sobre os movimentos sociais, tal como o neoliberalismo, pós-estruturalismo, etc. é uma necessidade analítica.
A burocratização das relações sociais também é outro elemento fundamental que acompanha a mercantilização. Esses processos culturais e que se desenvolvem na sociedade civil e aparato estatal são elementos importantes para a compreensão dos movimentos sociais. A relação entre movimentos sociais e aparato estatal é uma das mais importantes e a análise que Marx realizou do Estado capitalista assume grande importância para entender essa relação. A análise de Marx da burocracia, especialmente a estatal e a empresarial, abre espaço para a percepção da crescente burocratização das relações sociais. Na época de Marx, a burocracia civil estava surgindo embrionariamente e ele vislumbrou isso e foi um dos pioneiros da crítica da burocracia partidária e sindical (VIANA, 2015d), apesar do seu estágio rudimentar, o que trouxe limites para a crítica, mas não a impossibilitou.
Por fim, Marx também contribui com alguns apontamentos sobre grupos sociais que geram movimentos sociais. Nesse caso, é uma contribuição que abarca o processo da situação social específica que gera insatisfação nos grupos sociais que são elementos necessários para a emergência de um movimento social. A grande maioria dos grupos sociais que vão gerar movimentos sociais surgirá muito tempo depois. Alguns já existiam, mas só gerarão movimentos sociais muitas décadas após. Marx fez alguns apontamentos muito breves sobre questão racial e outras, como a questão nacional, relacionadas com alguns movimentos sociais, mas teve um grupo social que apontou elementos que contribuem para a compreensão da razão dele ter gerado um movimento social.
Trata-se das mulheres. Marx fez várias declarações sobre a questão da mulher na sociedade capitalista (e também sob forma mais generalizada). Uma das principais razões para a emergência do movimento feminino é a opressão da mulher na forma específica realizada na sociedade capitalista. Em várias passagens de sua obra ele aborda essa questão. Marx mostra como, na sociedade capitalista, se cria um conjunto de problemas sociais derivados dela e coloca que não é apenas o proletariado que sofre nessa sociedade:
Em alguns trechos sobre o “suicídio”, extraídos das “mémoires tirés desenvolvimento archives de la police etc., par Jacques Peucheut, darei um exemplo dessa crítica francesa [...], que ao mesmo tempo pode nos mostrar até que ponto a pretensão dos cidadãos filantropos está fundamentada na ideia de que se trata apenas  de dar aos proletários um pouco de pão e educação, como se somente os trabalhadores definhassem sob as atuais condições sociais, ao passo que, para o restante da sociedade, o mundo tal como existe fosse o melhor dos mundos (MARX, 2006, p. 22).
O que Marx mostra nesse breve texto no qual expõe o material autobiográfico de Jacques Peucheut, é justamente o processo no qual o capitalismo gera um processo destrutivo dos seres humanos em geral. Aqui Marx mostra, ao contrário do que alguns pseudocríticos afirmam, que somente o proletariado é atingido pelos males do capitalismo e que ele não sabia ou desconhecia outros problemas sociais além dos que acometiam essa classe. Obviamente, que, por ser o proletariado a classe revolucionária, o seu foco era sobre ela, mas ele via na emancipação dos trabalhadores a emancipação humana em geral (MARX e ENGELS, 1988; MARX e ENGELS, 1982). Marx afirma que Peucheut, devido sua experiência militante, proporcionou uma “crítica das relações de propriedade, das relações familiares, e das demais relações privadas – em uma palavra, a crítica da vida privada” (MARX, 2006). Esse rebento que aparece como novidade para a abordagem culturalista ou dos supostos “novos movimentos sociais” já era efetivada por Marx muito antes. Antes de Habermas tratar do “mundo da vida”, Marx já mostrava a existência de uma crítica da vida privada. Contudo, há uma diferença fundamental entre a crítica marxista e a abordagem culturalista. Adiante retornaremos a isso.
O modo de vida capitalista, que é um “modo de vida fútil” (LEROY, 2014), gera o suicídio até nas classes privilegiadas, tal como se vê na citação de Peucheut por Marx, no qual cita um conjunto de motivos para tal nos “meios abastados”, tal como os “amores traídos”, “falsas amizades”, “desgosto de uma vida monótona”, etc. A razão do suicídio encontra-se na sociedade: “que tipo de sociedade é esta, em que se encontra a mais profunda solidão no seio de tantos milhões” (PECHEUT apud MARX, 2006, p. 28). A partir das citações de Peucheut, Marx mostra o suicídio feminino gerado por repressão sexual, ciúmes, moral sexual. A sociedade capitalista, que gera uma competição desenfreada e torna o ciúme um sentimento predominante, bem como a preservação da propriedade, especialmente no século 19, quando os métodos contraceptivos ainda não haviam se desenvolvido como ocorrerá posteriormente, gerando repressão e moral repressiva, são processos que atingem principalmente as mulheres.
A crítica de Marx da família burguesa (MARX e ENGELS, 1988) complementa a crítica da opressão feminina expressa neste opúsculo. Da mesma forma, a opressão feminina é gerada pela sociedade capitalista[21] e por conseguinte é preciso superar tal sociedade. Ao afirmar que o grau de civilização da humanidade pode ser medido pelas relações entre homens e mulheres (MARX, 1983b) aponta para não somente uma crítica da opressão capitalista da mulher, como também para sua superação, pois, em outra obra, afirma que o objetivo do comunismo é arrancar a mulher da situação de ser “instrumento de produção” (MARX e ENGELS, 1988). O processo de humanização significa a superação da opressão da mulher e o comunismo[22] seria a forma de concretização desse processo.
Essa abordagem de Marx, apesar de ser apontada em escritos esparsos e não em uma obra estruturada visando abordar especialmente esse tema, mostra a situação de um grupo social que posteriormente será gerador de movimento social, e da necessidade de entender a situação social específica de tal grupo e sua insatisfação social, no interior do conjunto das relações sociais em que ele existe. Aqui o método dialético reaparece, no sentido de mostrar a relação entre o particular e o total, que é sua forma específica de inserção na totalidade (VIANA, 2007). A especificidade de um grupo social gera a especificidade do movimento social que emerge a partir dele e por isso é necessário entender os movimentos sociais em geral e os movimentos sociais específicos (JENSEN, 2016). Assim, no contexto da época em que Marx viveu, já apontou para a crítica da vida privada e também para a situação da mulher na sociedade capitalista, antes de surgir o movimento feminino e as ideologias feministas, bem como antes de surgir o culturalismo e o discurso sobre o “mundo da vida”. Essa consciência antecipadora, no entanto, possui outra base teórico-metodológica e por isso seu desenvolvimento significa uma contribuição muito mais sólida e importante do que as de algumas abordagens contemporâneas, especialmente as culturalistas, fundadas no reducionismo e na recusa da totalidade concreta. O reducionismo, elemento característico do pensamento burguês busca se opor ao marxismo, mas o marxismo é a superação teórica e prática de todas as formas de reducionismo.
Considerações Finais
Em síntese, o que buscamos aqui foi apresentar a contribuição de Marx para uma teoria dos movimentos sociais. Antes foi necessária uma análise dos escritos de alguns que abordaram essa contribuição ou a limitaram/recusaram e, posteriormente, um esclarecimento conceitual que já apontou algumas das contribuições, o que foi complementado por um item dedicado especificamente a isso.
A conclusão geral a que chegamos é que Marx foi um autor que ofereceu uma inestimável contribuição para a constituição de uma teoria dos movimentos sociais. Desta forma, aqueles que recusam ou negam tal contribuição deixam de lado um rico referencial teórico-metodológico para a análise dos movimentos sociais e também vários aspectos da realidade que seriam incorporados ao utilizá-lo. Por outro lado, aqueles que não compreendem adequadamente o pensamento de Marx, buscam extrair dele elementos de sua concepção que são descontextualizados e, assim, deformados. Um desses elementos é utilizar a análise de Marx do movimento operário, o movimento de uma classe revolucionária, e sim apresentar uma concepção apologética dos movimentos sociais.
Assim, querer usar o termo “práxis” ou mesmo “solidariedade”, que Marx utilizou para analisar o movimento operário é uma extrapolação. Sem dúvida, o conceito de práxis é muito amplo e por isso pode ser percebido em alguns movimentos sociais, bem como a solidariedade. Porém, se manifesta de forma distinta e, o mais importante, não se manifesta em todos os movimentos sociais ou em todas as ramificações de um movimentos sociais. Os movimentos sociais conservadores e as tendências conservadoras nos movimentos sociais reformistas não possuem a solidariedade como valor e essa transposição acaba reforçando uma concepção ingênua e apologética dos movimentos sociais. Desta forma, a contribuição real de Marx é esquecida (e não praticada, tal como o uso do método dialético) e em seu lugar aparece uma contribuição fantasmática que mais confunde e cria representações ilusórias do que ajuda a compreender os movimentos sociais.
Por tudo isso, fica claro que Marx traz uma grande contribuição para uma teoria do movimentos sociais, ainda muito incipiente e incompleta, e que precisa se inspirar nesse autor para avançar e se desenvolver. O nosso objetivo foi destacar esse elemento fundamental e fundamentá-lo e consideramos que o alcançamos.

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[1] Adiante vamos discutir a relação entre movimento de classe e movimentos sociais, mas mesmo para as abordagens que consideram o movimento operário como um movimento social, essa transferência é indevida, pois ele seria parte e não o todo e seria necessário realizar essa distinção e compreender tudo que é derivado disso, o que não ocorre no caso. Por exemplo, Marx considera o proletariado como uma classe revolucionária e apenas as classes que se aliam (o que é a tendência das classes que podemos denominar “desprivilegiadas”, tais como campesinato, lumpemproletariado, etc.) a ele exerceriam um significado análogo, sendo que as demais classes (que podemos denominar “privilegiadas”, como a burguesia, os latifundiários, os burocratas, etc.) são tidas como conservadoras. Os movimentos sociais, em sua maioria, são policlassistas e isso, por si só, já coloca um problema e dificilmente poderíamos esquecer que os movimentos sociais são hegemonicamente reformistas e que existem movimentos sociais conservadores (VIANA, 2016a).
[2] Para uma crítica do uso do termo “pós-moderno” (pós-modernidade e pós-modernismo) e crítica de algumas ideologias chamadas “pós-modernas”, cf. Viana (2009). Essas concepções também foram criticadas por Eagleton ( (EAGLETON, 1998; BRAGA, 2013).
[3] Melucci distingue definições empíricas e definições analíticas. Apesar de concordarmos parcialmente com suas considerações, julgamos mais adequado denominar as demais como “definições modelares”, pois acabam funcionando como um “modelo” ou sendo derivados de um modelo (tal como o funcionalismo).
[4] Isso foi explicitado por Marx (1989), Pannekoek (1978), Viana (2012), entre outros.
[5] Sobre representações cotidianas, cf. (VIANA, 2008; VIANA, 2015a).
[6] O signo (palavra) “movimentos sociais”, por sua vez, é o que um grande número de autores assim denominou, embora muitas vezes impropriamente. Mas também é usado nos próprios movimentos sociais, nos meios de comunicação, etc. Outro signo poderia ter sido escolhido, como, por exemplo, movimentos grupais. Contudo, isso seria um obstáculo para o entendimento e para a difusão da teoria. Por isso, como o termo “movimentos sociais” não é obstáculo e nem traz dificuldades, pode ser usado. Nesse caso, é a sua conceituação que se torna o problema, mas, sendo realizada adequadamente, atende à necessidade de expressar a realidade.
[7] Sobre grupos sociais, cf. Viana (2016a).
[8] Os interesses imediatos são aqueles que estão ligados à reprodução da classe dentro do capitalismo (no caso das classes desprivilegiadas, é o caso da sobrevivência, do acesso a bens culturais e coletivos, etc.) e os interesses fundamentais são aqueles ligados à solução definitiva dos seus problemas (no caso do proletariado, abolição da extração de mais-valor, ou seja, do capitalismo e de si mesmo). O proletariado tem como interesses imediatos melhores salários e condições de trabalho e como interesse fundamental a instauração da autogestão social.
[9] Obviamente que aqui se trata da concepção de Marx, muito mais complexa que a simplificação economicista de Lênin (VIANA, 2012) e reproduzida por diversos outros, que relacionam classes sociais e meios de produção ou, em alguns casos, relações de produção, deixando de lado o que as caracteriza enquanto classes e também que nem todas as classes estão ligadas diretamente às relações de produção e muito menos aos meios de produção, pois existem as classes improdutivas, ligadas às formas sociais, ou “superestrutura” (VIANA, 2012).
[10] Isso é suficiente para ver a diferença entre a concepção marxista de classes sociais e as ideologias da estratificação social e as simplificação que é a divisão da sociedade em classes A, B, C, D, ou alta, média e baixa, que não passam de sistemas classificatórios arbitrários (VIANA, 2012).
[11] Sobre burocracia como classe social, cf. Viana (2012; 2015b).
[12] A prevaricação é a conversão da renda estatal em renda pessoal ou empresarial, ou, em palavras mais simples, do público em privado, tal como no caso da corrupção, subsídios para empresas capitalistas, etc. (VIANA, 2016b).
[13] A teoria da repartição do mais-valor está exposta em O Capital (MARX, 1988) e é retomada e desenvolvida em Viana (2016b).
[14] O movimento negro é apenas um caso concreto, pois esse fenômeno se manifesta em todos os movimentos sociais, com diferenças e sob formas distintas, dependendo do movimento social específico em questão.
[15] Uma outra consequência desse processo é que as classes sociais podem gerar grupos sociais específicos que, por sua vez, podem gerar movimentos sociais específicos. É o caso do lumpemproletariado, que pode gerar, em um dos grupos sociais gerados por ele, um movimento social, como o movimento piqueteiro na Argentina ou, então, setores do movimento operário que geram grupos situacionais que podem gerar um movimento social urbano. Os grupos sociais derivados de apenas uma classe social também podem gerar um duplo objetivo, sendo que o objetivo específico não ultrapassa os limites reivindicativos e o objetivo geral pode ser nacional (como reforma urbana no caso dos movimentos sociais urbanos), governamental (eleger determinado governo que promete reforma urbana ou qualquer outra coisa que beneficie o grupo social) ou revolucionário (aqui se reaproxima do caráter de classe, mas ainda continua sendo parte de um movimento social se não abandonar os objetivos específicos).
[16] Seria interessante acrescentar que, em relação a determinados grupos sociais geradores de movimentos sociais, existem alguns cujas diferenças são ainda maiores. Esse é o caso dos grupos sociais cujo pertencimento é definido pela corporeidade. Um indivíduo que nasce negro não pode sair do grupo, enquanto que um indivíduo, apesar da raridade e dificuldade no caso ascendente, pode mudar de classe. Sem dúvida, há alguns casos em que o indivíduo pode tentar isso através de meios artificiais (remédios, cirurgias, etc.), mas a sua eficácia é relativa e o fantasma do passado sempre assombra e cria vínculos irremovíveis.
[17] Korsch foi o autor que mais ressaltou essa característica do materialismo histórico (KORSCH, 1983; VIANA, 2014).
[18] Isso foi perceptível no movimento estudantil e teve como expressão máxima a Rebelião Estudantil de Maio de 1968 na França, bem como no Movimento Negro, nos Estados Unidos, com a emergência de tendências contestadoras e radicais (Panteras Negras, Poder Negro, etc.), entre outros casos concretos.
[19] A chamada “teoria da mobilização de recursos” (ALONSO, 2009; GOHN, 2002) foi a abordagem que mais se aproximou de uma análise desse processo de mercantilização, ao focalizar as organizações e recursos. No entanto, sua base ideológica (Weber, economia marginalista, escolha racional), geralmente implícita, dificultava um avanço explicativo do fenômeno. Se essa base ideológica tivesse sido substituída pela teoria do capitalismo de Marx, então teria rompido com seus limites e teria podido explicar de forma muito mais profunda e ampla o significado dos recursos no desenvolvimento das organizações e sua atuação social na sociedade civil e em relação ao aparato estatal.
[20] A chamada “teoria dos novos movimentos sociais” (ALONSO, 2009; GOHN, 2002) apontou para alguns elementos dessa relação, mas sob forma metafísica e sem uma teoria da consciência ou da ideologia mais especificamente. Assim, termos como “cultura”, “identidade”, “imaginário”, entre outros construtos ideológicos, aparecem como se surgissem do nada ou como se fossem “a verdade”, aquilo que seria “definitivo” ou único, mesmo que sendo uma suposta “pluralidade”. As bases reais e sociais (inclusive o estágio do desenvolvimento capitalista, ou seja, o regime de acumulação da época) não aparecem. As ideias, a cultura, a identidade, são apresentadas como descoladas da realidade ou superficialmente ligadas a ela, ou, ainda, a partir de uma concepção evolucionista do saber, pois na sociedade mais recente emergem as ideias melhores. Assim, a abordagem da cultura e sua relação com os movimentos sociais é fundamental, mas da forma em que a abordagem culturalista a efetiva, é mais um obstáculo do que uma solução.
[21] Marx estava distante dos maniqueísmos simplificadores que isolam as relações entre homens e mulheres e atribuem aos indivíduos do sexo masculino a responsabilidade da opressão feminina, gerando uma essencialização que tem no termo “machismo” a sua concretização mais cristalina. Uma passagem de Peucheut, descrita por Marx, mostra o suicídio de um homem, por ter ficado desempregado e não poder sustentar sua família (uma esposa e duas filhas) e ter que viver dos parcos rendimentos do trabalho delas. Isso é apenas um exemplo de que a opressão não é apenas feminina, mas também masculina, embora em menor grau, mas ambos são constituídos por esta sociedade e não pelo outro sexo. O moralismo e a moral dominante são produtos sociais e históricos que atingem ambos os sexos e não foi mera criação dos indivíduos do sexo masculino e sim de uma determinada sociedade com suas relações sociais e necessidades derivadas, incluindo o controle do corpo da mulher como forma de controle da propriedade e da herança.
[22] Não custa recordar que o que Marx entendia por “comunismo” nada tem a ver com o que os partidos, países, indivíduos, autodeclarados “comunistas” dizem ou realizam.