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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Emergência e Criminalização da Contestação Piqueteira na Província de Neuquén (Argentina, 1996)



Lisandro Braga*

 Neoliberalismo e Movimento Piqueteiro na Argentina – A Experiência Neuquina (Argentina, 1996)
Lisandro Braga*

A emergência de um tardio, porém robusto, movimento de contestação à regularização neoliberal nas cidades petroleiras de Cutral-Có e Plaza Huincul, província de Neuquén - Argentina (junho de 1996, reemergido em abril de 1997), representou um significativo avanço na capacidade organizativa dos grupos e classes sociais que se movimentaram para impedir e/ou reverter as formas sociais[1] neoliberais aprovadas para a região. Em seu trabalho, realizado no interior do PIMSA[2], Las formas de organización emergentes del ciclo de la rebelión popular de los ’90 en la Argentina (2007), Paula Klachko apresenta algumas das principais características desse movimento de contestação social. Segundo a autora, as cidades de Cutral-Có, Plaza Huincul, foram tomadas por esse movimento que, posteriormente, denominou-se de Movimento Piqueteiro. Segundo a autora, esse expressou uma
organização mais complexa e sistemática para manter os piquetes de bloqueio de estradas que sustentam a ocupação das cidades por vários dias e para resistir à Gendarmeria, mas prevalece a prática espontânea, já que se dilui quando conclui os enfrentamentos; Realização de assembleias populares diárias; Participação massiva e socialmente heterogênea nas assembleias; Emerge a personificação de “piqueteros” primeiro e “fogoneros” depois, os que representam maior disposição à luta; Organização assembleiaria, horizontal, prática democrática que acarreta a desinstitucionalização; Delegados revogáveis das assembleias por piquetes para a coordenação entre eles e para a negociação com os governos (os delegados devem consultar as assembleias sob o que foi negociado antes de assinar os acordos) [...] (KLACHKO, 2007, p. 159-160).
Como é possível perceber, o movimento piqueteiro emergido na província de Neuquén recupera uma série de ações e ferramentas radicais, próprias do movimento operário, tais como piquetes, assembleias diárias, ações diretas, auto-organização /organização horizontal, decisões coletivas, revogabilidade da representação etc., que tendem a caminhar de forma autônoma e com certo grau de desinstitucionalização das lutas. É necessário entendermos como esse movimento se desenvolveu, qual a particularidade da região na qual ele emerge, que razões explicam a emergência de sua radicalidade, que dinâmica adquiriu seus enfrentamentos etc. Para isso é imprescindível recuperarmos um pouco da história da região na qual ele insurge.
A origem da Província de Neuquén está íntima e exclusivamente ligada ao intervencionismo estatal na região que, logo após o extermínio da população indígena local, através da “Campanha do Deserto”, se encarregou de criar as melhores condições para o início da ocupação da Patagônia, visto que os latifundiários agropecuaristas não manifestavam interesse em fazê-lo, nem tampouco contribuir com o projeto de ocupação territorial. Portanto, os Territórios Nacionais nasceram mediante o saque violento dos territórios indígenas, constituindo-se em entidades jurídicas distintas das províncias, nas quais sua administração territorial era exercida pelo governo central, com o propósito de promover a organização econômica-social e demográfica adequada para seu processo de provincialização (BUCCIARELLI, 1999).
 Desde a incorporação (massacre genocida) desses territórios ao estado nacional, entre o final do século XIX até a primeira metade do século XX, a economia local se baseava na pecuária e na agricultura em menor medida. Somente a partir da década de 1960 e, principalmente a partir de 1980, é que a província passará a se destacar como polo produtor de energia: petróleo, gás e eletricidade. A estrutura econômico-administrativa aí instalada fundamentou-se no crescimento extraordinário dos serviços em geral e do funcionalismo estatal. O setor de comércio e de serviços privados era responsável por aproximadamente um terço da ocupação da força de trabalho, em conjunto com os funcionários públicos, somavam dois terços os trabalhadores que estão ocupados no setor terciário da economia (comércio, administração pública, transportes, finanças, saúde, educação etc.).
Conforme aponta Bonifacio (2011), a província de Neuquén foi marcada por duas modalidades de regularização estatal, em períodos distintos: a) a regularização integracionista[3] (estado integracionista – 1960/1980) e b) a regularização neoliberal (estado neoliberal – 1990/dias atuais). Segundo esse autor,
essas formas de intervenção estatal na economia foram acompanhadas por diferentes lógicas de intervenção social. Na primeira etapa, a intervenção estatal se aproxima ao denominado Estado de Bem-Estar. Em uma sociedade dinâmica que cresce com as contribuições das migrações nacionais e estrangeiras, o Estado favorece a integração social mediante constante oferta de trabalho e a cobertura da infraestrutura social: saúde, educação, habitação e ação social. Na segunda etapa a intervenção estatal adquire um forte conteúdo neoliberal cujo resultado foi a formação de uma sociedade polarizada, caracterizada por um processo de desintegração crescente, com altos níveis de conflitividade social. Durante as duas etapas o Estado foi conformando sólidas redes clientelares para garantir o controle político dos setores subalternos, através de diversas estratégias de intervenção territorial (BONIFACIO, 2011, p. 66).
Durante o período de regularização interventora, o estado nacional encarou sua determinação fundamental de regularizar as relações de produção (e reprodução) capitalistas que, em um contexto de capitalismo subordinado, no qual inexiste uma burguesia com autonomia suficiente para incitar o processo de acumulação por conta própria, o estado se apresenta como o único com capacidade de impulsionar o desenvolvimento capitalista com suas singularidades regionais: “o fato decisivo é a inexistência de uma burguesia local importante, com bases de acumulação independentes do Estado [...] é sintomático que o grosso dos mais importantes empresários provinciais seja seus provedores ou empreiteiros. O setor produtivo da economia é raquítico” (PETRUCCELLI, 2005, p. 17). As duas exceções são compostas pelo setor energético, uma atividade mais extrativa do que produtiva, e a indústria de construção que se desenvolveu à sombra das obras estatais.
Essas peculiaridades em muito se deve à correlação de forças políticas existentes na província desde os anos 60, marcadas pelo monopólio político do Movimento Popular Neuquino (MPN), que reinou absoluto ao longo de quatro décadas, estando intimamente ligado à estrutura econômica provincial e exercendo um papel preponderante no seu interior. Como resultado das intervenções estatais no setor produtivo local, consolidou-se uma economia fundamentalmente caracterizada pela especialidade nas atividades de extração de petróleo, gás e eletricidade. Essa economia especializada possibilitou a emergência de uma burguesia comercial local que se fortaleceu amparada pela intervenção estatal. Nesse sentido, exercer o controle sobre as decisões do estado tornou-se decisiva para essa classe social e, por essa razão, a burguesia neuquina está composta por indivíduos diretamente vinculados com a burocracia estatal e com a burocracia partidária do MPN. Na verdade, “em Neuquén os políticos são empresários e os empresários são políticos” (PETRUCCELLI, 2005, p. 18).
As classes sociais que se enriqueceram e prosperaram sob o amparo do estado nacional foram os responsáveis por fundar, no ano de 1962, o MPN. A partir de 1963, com a eleição de Felipe Sapag a governador da Província, dá-se início ao processo de constituição do estado, formação de uma burocracia estatal composta por técnicos-administrativos especializados e influenciados pelas ideias dominantes da época, em torno do modelo de industrialização predominante na América Latina. Em tal modelo, era o estado nacional quem exclusivamente financiava todas as atividades de grande envergadura, tais como a extração de hidrocarbonetos, construção de grandes obras de infraestrutura, que possibilitariam o crescimento econômico provincial. A nascente burocracia estatal, de origem burguesa, soube muito bem utilizar as redes mercantis, clientelistas e de parentesco para garantir o apoio político de diversas classes sociais e, também, a subordinação das classes subalternas. Nesse sentido,
a riqueza estatal permitia gerar uma ampla rede de obras, serviços e empregos públicos, que beneficiava tanto os assalariados e os pequenos produtores, como aos empresários que acessava as licitações ou eram beneficiados com prêmios diretos de legalidade duvidosa, porém absolutamente habituais. As sucessivas ondas de trabalhadores imigrantes que chegavam a Neuquén tinham poucos motivos para estarem em desacordo com a província que lhes “brindava” oportunidades laborais, salariais, educativas, habitacionais e de saúde com as quais, em muitos casos, não poderiam nem sequer sonhar em seus lugares de origem. Esses tangíveis benefícios eram a base material de uma forte identificação simbólica e emotiva com a Neuquén e seu partido, que redundava e ainda redunda na supremacia indisputada do MPM. Ao longo desses anos o partido do governo – quase um partido-Estado, como gosta de dizer meu amigo Silvio Winderbaum – tem tecido uma frondosa rede de clientelismo político, que se estende não apenas entre as classes assalariadas, senão que também inclui a muitos produtores, formalmente autônomos, mas que de fato dependem do Estado (PETRUCCELLI, 2005, p. 18-19).
Demonstração clara do monopólio político absoluto do MPN em Neuquén é fornecida pelo fato de que as grandes disputas partidárias na província equivalem a disputas intrapartidárias. Tal monopólio, em parte, se deve a existência de uma oposição política fragmentada e dividida entre os dois maiores partidos políticos nacionais, a União Cívica Nacional (UCR) e o Partido Justicialista (PJ). Apesar dos discursos federalistas e suas constantes críticas ao estado nacional, o MPN sempre foi um partido “oficialista”. Governe quem governe o estado nacional (peronistas, radicais, militares), o MPN sempre oferta apoio político, direta ou indiretamente, aos governos nacionais em troca de benefícios. É importante perceber que o MPN soube capitalizar muito bem as benesses políticas, oriundas principalmente da adesão das classes exploradas, ao seu discurso federalista, pois
este componente ideológico possibilitou exitosamente a remissão do conflito de classe à relação entre a província e o poder centralizado de Buenos Aires. Este tipo de federalismo constituiu-se no princípio ideológico articulador, mediante o qual as classes dominantes na província lograram capturar com êxito as orientações dos setores populares, inscrevendo assim seus interesses em termos de “interesse geral provincial”. Dessa forma, se reduziu o potencial antagônico das classes subalternas aos setores dominantes (PALERMO apud BONIFACIO, 2011, p. 71).
Ademais, o estado neuquino usufruía de uma importante autonomia financeira, proveniente, fundamentalmente, dos royalties do petróleo, mas também da exploração de gás e eletricidade e da arrecadação provincial, que juntas equivaliam a mais da metade das receitas da província. Através do Regime de Coparticipação Federal dos Impostos, das receitas provinciais e dos royalties, a província conseguia cobrir seus gastos operacionais, ficando livre de quaisquer riscos que o corte nos envios discricionários federais pudessem representar, fato que facilmente seria aproveitado pela oposição ligada ao governo central. Tal autonomia deixava os governos provinciais em uma situação favorável para negociar com o estado nacional, visto que esse “não podia afogá-los, e o apoio às políticas do oficialismo em escala nacional sempre era em troca de contrapartidas materiais” (PETRUCCELLI, 2005, p. 20).
Outra determinação importante que auxilia nossa compreensão sobre a emergência de um movimento de contestação social (movimento piqueteiro) na província, remete a existência prévia de uma cultura contestadora na região. Desde a década de 1960 passava a existir na província, essencialmente na sua capital Neuquén, uma cultura contestadora que, por mais que fosse marginal, era bastante ativa e numerosa. Tal cultura contestadora não era homogênea, nem tão pouco se inspirava em uma única fonte político-teórica (ou ideológica no sentido marxista), no entanto, compartilhavam de muitos valores e práticas sociais: desejo por igualdade, um genérico anti-imperialismo, uma visão positiva da contestação e militância social, uma concepção crítica em relação à sociedade, uma organização e mobilização coletiva cotidiana, a preocupação com os direitos humanos (herança da última ditadura burguesa), uma postura opositora ao MPN e certo nível de consciência de classe (PETRUCCELLI, 2005). Bonifacio sintetiza a existência dessa cultura contestadora (denominada por ele de contracultura do protesto) da seguinte maneira:
uma história que combina processos políticos e lutas coletivas contribuíram na formação desta contracultura do protesto: a) as greves dos operários da construção nas grandes hidrelétricas, b) a migração de chilenos (sob posse de uma cultura contestadora) logo após o golpe militar de 1973, c) o papel da igreja neuquina durante a última ditadura militar (catolicismo progressista militante), d) o papel da Universidade Nacional de Comahue (movimento estudantil combativo) e e) a própria cultura que se recria nas constantes lutas sociais. Esses processos remontam a uma história de mais de três décadas, foram interiorizados por sujeitos que tem uma disposição a perceber, valorizar, sentir, pensar e atuar no marco de uma cultura militante e combativa [...] (2011, p. 88 – parênteses nossos).

A chegada da regularização neoliberal promoveria alterações drásticas na paisagem social neuquina. De uma província notada, em meados dos anos 70, pelo desenvolvimento econômico, se tornaria, nos anos 90, em uma ilha de desemprego e precarização laboral, mas também de resistência ao neoliberalismo, marcada pela emergência de um arrojado movimento de contestação social, responsável por árduos enfrentamentos contra o processo de regularização da acumulação integral. Nascia aqui o Movimento Piqueteiro.
Iniciada na segunda metade da década de 1980, a fase de regularização neoliberal promoveu uma acentuada redução das receitas públicas, através da diminuição do pagamento dos royalties dos setores energéticos, levando o estado a adotar uma série de regularizações neoliberais para readequar as contas públicas. No ano de 1991, com a consolidação do processo de privatização das empresas estatais, a forma de intervenção do estado e sua relação com as empresas, assim como as relações sociais em conjunto, alteraram significativamente.
 É importante destacar que nessa província desenvolveu-se aquilo que Carrera, Podestá e Cotarelo (1999) denominam de capitalismo de estado en enclaves, isto é, caracterizado por uma atividade da grande indústria, com características singulares, típicas da atividade extrativista energética, tais como a pequena quantidade de parques industriais, com elevada ocupação do proletariado na indústria petroleira, construção, eletricidade, gás e água, nas quais o estado é o proprietário dos meios de produção. Porém, com a regularização neoliberal, tais empresas se privatizam e tornam-se poucos grandes complexos oligopólicos extrativistas internacionais.
Conforme aponta diversos estudiosos do tema, a empresa Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), maior empresa produtiva-extrativista da Argentina, modelo de empresa estatal petrolífera para toda a região, constituía um verdadeiro estado dentro do estado, no qual o conjunto da vida social estruturava-se, direta ou indiretamente, em torno de suas atividades (SVAMPA E PEREYRA, 2009; ARTESE, 2009). Seguindo Svampa e Pereyra (2009), o modelo de desenvolvimento social instituído pela empresa era expressão máxima do estado social interventor argentino, no que se refere à garantia dos direitos sociais em geral. Os trabalhadores da YPF eram os trabalhadores mais bem remunerados pelo estado e pertencer ou não pertencer a YPF marcava fronteiras sociais nítidas no interior dessa sociedade. Assim como as relações sociais internas eram também caracterizadas por uma alta hierarquia entre os diferentes setores que a compunham.
Ao longo de todo o século XX a exploração petrolífera estatal conviveu com a exploração privada, em um quadro de grande instabilidade nos quadros regulatórios dessa indústria extrativa. Em diversos governos houve reformas que regularizavam a participação de capitais privados nas atividades de exploração e comercialização do petróleo, de acordo com o sistema de concessões mineiras. Tais concessões eram suspensas e retornavam segundo as políticas estatais nacionais, no entanto,
logo após o golpe de estado militar, uma nova mudança na orientação petrolífera indicaria uma política mais firme em direção a abertura para a exploração privada. Não é casual, aliás, que o endividamento externo e o agravamento da situação financeira da empresa se deram durante o período da ditadura militar. Assim, até o final do Processo de Reorganização Nacional e início do regime democrático, as constantes desvalorizações do peso levaram as empresas privadas a desenvolverem uma forte política de pressão para a renegociação dos contratos (Gadano, 1998). A isso tem que somar a política de “subsídio” que YPF se permitia desenvolver para com outras do Estado, que não pagavam seus consumos. Assim, a setenta anos de sua criação, a empresa que havia sido o “modelo de indústria petrolífera estatal” na América Latina, se encontrava distante da performance de seus pares mexicano e venezuelano, pois, paradoxalmente, em lugar de representar uma fonte de divisas para o Estado, havia se constituído em uma empresa onerosa, na qual havia que assistir financeiramente. Nesse contexto, exacerbado pelo discurso neoliberal do governo Menem, se prepara e se dispõe primeiro à privatização, logo após a reestruturação e, por último, a reorganização laboral da YPF (SVAMPA e PEREYRA, 2009, p. 106-107).
Desde 1989 o processo de privatização da YPF vinha sendo instrumentado por decretos (1.055, 1.212 e 1.589) que determinavam a transferência de vastas áreas de extração para a iniciativa privada. Em 1992, com a nova Lei de Hidrocarbonetos (21.145), transferia-se para as províncias a posse sobre os hidrocarbonetos e, ao mesmo tempo, declarava a YPF sujeita à privatização integral. No primeiro momento, buscou-se vender suas ações de forma fragmentada, com o intuito de não deixar nas mãos de um único operador internacional, no entanto a partir de 1999 a YPF convertia-se em propriedade da empresa espanhola Repsol.
 Sua privatização promoveu uma verdadeira devastação social para a província de Neuquén e outras províncias petroleiras. A consequência imediata do processo de reestruturação produtiva e, logo após a privatização da YPF, foi a intensa lumpemproletarização social[4] ocorrida na região de Cutral-Có e Plaza Huincul. Para termos uma ideia da intensidade desse processo, basta resgatarmos alguns números. Em 1990 a empresa possuía 50 mil funcionários, depois da privatização, foram demitidos 44.400 trabalhadores. O número de demissões entre 1990 e 1997 foram os seguintes: Província de Salta – 3.400; Província de Neuquén – 5.000; Região da Bacia Austral – 1.660; em Comodoro Rivadavia – 4.402; Santa Fé – 1.777. Juntamente com a lumpemproletarização, a privatização trouxe as formas de valorização do regime de acumulação integral e sua intensificação do trabalho, a precarização dos contratos e consequentemente do trabalho, a redução do pagamento de horas-extras etc. daqueles que permaneceram empregados.
A política de reestruturação (demissão) da YPF foi marcada pela existência de duas modalidades: retiros voluntários e licenciamentos. Parte expressiva das indenizações recebidas pelos demitidos foi utilizada para aquisição de pequenos empreendimentos comerciais individuais (lojas e remisería – tipo de serviço parecido com o taxi) ou para a aquisição de bens (automóvel, residência etc.). Passado alguns anos, boa parte de tais empreendimentos faliram, seus bens foram vendidos e a lumpemproletarização se expandiu. Um exemplo nítido de como esse processo ocorreu, pode ser fornecido pela experiência dos ex-trabalhadores da YPF.
Com o intuito de levar à cabo a enorme quantidade de demissões na YPF e, ao mesmo tempo, mascarar a lumpemproletarização e controlar o nível de conflitividade social que nasceria dela, o estado procurou, juntamente com a empresa privatizada e com a conivência do principal sindicato do setor petrolífero (SUPE), impulsionar a criação de pequenas empresas prestadoras de serviços, formadas pelos seus ex-trabalhadores, e de acordo com a área em que trabalhava, através do repasse de maquinarias e outros bens como parte das indenizações por demissão. No primeiro momento, essas pequenas e médias empresas alavancaram com a assinatura de contratos de serviços de 18 a 24 meses. Passado esse momento, tais empresas começaram a ter enormes dificuldades para renovar os contratos visto que a Repsol
continuou multiplicando suas exigências. Reclamando bonificações, subdividindo os contratos por zonas; em suma, fixando tarifas a níveis de custo tais que para muitos se tornou impossível manter os empreendimentos. Em segundo lugar tem que agregar que a maior parte dos equipamentos vendidos pela YPF era obsoleta. Em pouco tempo, as dificuldades de renovação tecnológica coincidiram com o aumento das exigências tecnológicas da empresa. Por último, as contratadas deviam competir com as outras empresas de serviços de alta performance e acostumadas às regras do mercado [...] Por conta da ausência de uma verdadeira política de recursos humanos, muitas das empresas naufragaram muito cedo, atravessadas por dificuldades ligadas ao reconhecimento da autoridade, a tomada de decisões, a escassa capacidade negociadora, a impossibilidade de obter contratos por incumprimento das obrigações impositivas, a carência de prédio próprio e impossibilidade de acesso a créditos por falta de garantias de penhor e hipotecárias; por último, a problemas associados ao elevado nível de endividamento (SVAMPA e PEREYRA, 2009, p. 109).
Somadas à intensidade da lumpemproletarização, em consequência da privatização da YPF, outras determinações contribuíram para a emergência de uma forte contestação social na região. Referimos-nos fundamentalmente às lutas internas no MPN e a consequente decisão da burocracia provincial de cancelar um contrato realizado pelo governo anterior, com a empresa canadense Agrium que se instalaria na região. Tal instalação era encarada pela população local como prováveis condições de desenvolvimento e oferta de trabalho. Outra determinação foi fornecida pela greve docente que contestava a lei neoliberal de educação e das consequências da privatização, que “em busca de solidariedades sociais, encontraram nos habitantes de Cutral-Có e Plaza Huincul, aliados inesperados” (BONIFACIO, 2011, p. 163). Vejamos essas determinações.
Em dezembro de 1995, eleito novamente governador de Neuquén, Sapag assume o poder com a missão de programar as medidas de regularização neoliberal na província. Envolto na dinâmica das lutas intestinais da burocracia partidária, Sobisch, arqui-inimigo histórico de Sapag, foi o ex-governador que iniciara as negociações com a empresa canadense, decide cancelar as negociações para sua instalação na região[5]:
na noite de 19 de junho de 1996, Sapag anunciou a ruptura do contrato com a empresa canadense “Agrium”, para construir uma planta de fertilizantes. O acordo havia sido firmado pelo anterior governador Jorge Sobisch (linha branca do MPN). Tratava-se de um contrato leonino: o estado cedia os terrenos e a provisão de água e energia elétrica, renunciava aos royalties das reservas de gás “El mangrullo” e, como se isso fosse pouco, comprometia-se a investir 100 milhões de peso/dólares para a instalação. Agrium teria um prazo de 24 meses para a construção. Os moradores das localidades de Cutral-Có e Plaza Huincul não conheciam em detalhe os termos do acordo; mas a construção da planta supunha emprego temporário por um par de anos para umas 1.500 pessoas, mas uns duzentos postos permanentes. O desaparecimento desses postos laborais esperados por longa data incendiou o pavio da rebelião, em uma das localidades em que o desemprego havia se convertido em uma verdadeira praga (PETRUCCELLI, 2005, p. 43).
O oportunismo político de Sobisch e de seus partidários se manifestou na manhã do dia 20 de junho de 1996 quando a Radio Victoria, porta-voz histórica de Sobisch na região, transmitiu a notícia do cancelamento do acordo com a empresa canadense Agrium e disponibilizou seus microfones para que os ouvintes emitissem suas opiniões a respeito de tal cancelamento. Sem dúvida alguma, essa rádio e alguns burocratas “blancos” contribuíram para a convocatória de uma mobilização que, logo em seguida caminharia no sentido da composição de um robusto movimento de contestação social radical que lhes escaparia o controle. O enfático anúncio sobre o não cumprimento do acordo (traição de Sapag), emitido pelo proprietário da rádio, Mario Fernández, foi decisivo para o início das convocações mobilizatórias. Ás 09 da manhã ele exclamou: “acaba de consumar a traição de Felipe Sapag, não teremos a planta de fertilizantes. É a traição de Felipe a Cutral-Có”.
Tratou-se, no primeiro momento, de um oportunismo faccioso interno ao MPN, articulado pelos partidários “blancos” de Sobisch contra o governo de Sapag. Diversas ações confirmam essa articulação política, dentre elas podemos citar: a) a convocatória lançada pela Radio Victoria para uma mobilização às 16 horas no acesso a Plaza Huincul; b) Por volta das 11 horas Leticia García, legisladora da fração “blancos”, informava a um jornalista do diário Río Negro que em Cutral-Có haviam bloqueado uma estrada, fato que se concretizaria somente às 16 horas. No dia seguinte, vereadores e deputados “blancos”, junto com alguns de seus aliados peronistas, estiveram presentes no bloqueio da estrada; c) No dia 20 de junho, partidários “blancos” convocam para um protesto no setor da Torre Uno, meia hora depois um militante (Opazo) do MPN atravessar seu automóvel sobre a estrada 22 – “Opazo sabia o que fazia mas ignorava o peso dessa primeira pedra” (Río Negro, 25/06/2006); Adolfo Grittini, ex-prefeito de Cutral-Có, partidário “blanco”, auxiliou o bloqueio da estrada fornecendo produtos e gasolina para aqueles que mantiveram a estrada e as cidades bloqueadas por dois dias[6] (BONIFACIO, 2011).
Por volta das 16 horas começaram a concentrar os primeiros manifestantes na Torre Uno. Os primeiros a se concentrarem ali foram estudantes secundaristas e professores. Com apoio concedido por partidários “blancos” taxis e remises (serviço parecido com o de taxi) começavam a levar pessoas para o bloqueio na estrada 22 e aos poucos a concentração de pessoas tornou-se massiva e pneus incendiados começaram a ser utilizados para o bloqueio da estrada nacional 22 e a provincial 17. Diversos comerciantes em apoio ao bloqueio fecharam seus estabelecimentos, às 22 horas os postos de gasolina suspendem o serviço, passando a abastecer somente ambulâncias, taxis utilizados para levar pessoas ao bloqueio, viaturas policiais e bombeiros. Em seguida passaram a bloquear a entrada dos principais postos de fornecimento de combustível, assim como suas estradas de acesso alternativas. Às 08 da manhã, do dia 21 de junho, o município de Cutral-Có concede folga a todos os seus funcionários, logo depois a Cooperativa de Energia Elétrica, assim como o município de Plaza Huincul, faz o mesmo. Ao meio dia todas as escolas suspendiam suas atividades, os comércios fechavam suas portas, os serviços de transporte coletivo paralisavam e o aeroporto era bloqueado por piquetes, com todos os voos cancelados. Os bloqueios começavam a preocupar o abastecimento de combustíveis para a região. Em cidades vizinham começavam a formar filas para o abastecimento de automóveis e a YPF começava a rearticular seu abastecimento (PETRUCCELLI, 2005; BONIFACIO, 2011).
Os contestadores sociais que passaram a improvisar com pedras, pneus e todo tipo de escombro que pudesse auxiliar no bloqueio das estradas, assim como no fogo para amenizar o implacável frio patagônico, construíam, naquele momento, os primeiros traços daquilo que entraria para a história com o nome de piquete e seus mantenedores ficariam conhecidos como piqueteiros. Vejam, portanto, que os piqueteiros de Cutral-Có e Plaza Huincul não se restringiam ao lumpemproletariado (desempregados), pois os comerciantes auxiliaram fechando seus negócios e fornecendo alimentos e outros produtos que ajudavam na manutenção dos piquetes. Milhares de pessoas foram se concentrando nos piquetes, no entanto, aqueles que se prontificaram a garantir a segurança e proteção aos mais de vinte piquetes instalados na estrada, sustentar a queima de pneus e enfrentar todos aqueles que tentassem ultrapassar o boqueio, eram compostos basicamente pelos desempregados (lumpemproletários).
Durante a jornada de sábado, 22 de junho de 1996, os piquetes se multiplicaram e atingiram a quantidade de 21, cercando toda a cidade. Durante a tarde foi realizada uma assembleia no piquete próximo ao setor da Torre Uno, com aproximadamente 05 mil contestadores sociais que decidiram com vigor e força sua ordem: Que venha Sapag! Essa assembleia foi realizada logo após o descaso da burocracia governamental que insistia em afirmar, com vistas a descaracterizar a contestação social, que a mesma não passava de manobra política da oposição composta pelos “blancos”. Por volta das 15 horas, a burocracia estatal provincial modera sua posição e busca iniciar um diálogo com os contestadores sociais, com o objetivo de propor a formação de uma comissão de representantes para se reunir com o governador na capital. Na verdade, trata-se da estratégia da burocracia para fragmentar o movimento e negociar com as lideranças, algo inexistente nessa mobilização. A proposta é apresentada por uma radio local e atinge um resultado oposto ao esperado, ao afirmarem que não sabiam se o governador poderia chegar a Cutral-Có e que isso não mudaria etc., incendiaram os ânimos dos piqueteiros que nesse momento levantam o lema “ninguém viaja, ninguém negocia, a menos que o governador venha falar conosco”. Com o passar das horas tal lema se resumiria no grito: Que venha Sapag!
Os piqueteiros afirmavam que os piquetes só se levantariam após a resolução concreta para o problema do desemprego. Aqui se percebe uma forte manifestação do interesse imediato do lumpemproletariado no interior dessa mobilização.  No dia 23 de junho de 1996, circulava pelos piquetes um texto, apresentado no Jornal La Mañana del Sur, que foi lido em diversas rádios da região e expressava as razões e objetivos do movimento de contestação social, na qual possibilita a preocupação com algumas questões que remetem aos interesses imediatos do lumpemproletariado:
Hoje o povo de Cutral Có y Plaza Huincul está de pé, lutando pela dignidade de sua gente, bloqueamos as estradas de ingresso a essas duas cidades porque pretendemos fazer escutar nossos direitos em busca de uma reativação econômica real e concreta. O desemprego, a fome e a falta de respostas do governo provincial nos levaram a isso. Se hoje bloqueamos as estradas é porque sentimos indignação, marginalidade e esquecimento. Nossa gente que hoje ocupa as estradas é a mesma que durante várias décadas brindou seu trabalho de sol a sol para que esta província e o país crescera… Então considerando a “falta de respostas oficiais”, o mínimo que podemos pretender é uma reparação histórica. (…) Já não nos servem as mentiras de alguns segundões … Hoje queremos a Felipe Sapag sim ou sim (Jornal La mañana del Sur, 23-06-96 - negritos nossos)
Acostumado com o jeito caudilho de ser, Sapag tinha pouca habilidade para lidar com a contestação social. Sua postura conservadora e reacionária já não amedrontava os contestadores sociais, pelo contrário, servia de lenha para seus piquetes. Nesses primeiros dias da mobilização social, concederia algumas entrevista para os jornais locais, na qual sua postura inflexível se destacaria, assim como seu discurso criminalizador da contestação social:
Jornalista: “A população quer que você vá a Cutral-Có...”.
Sapag: “Lhes digo que venha eles”.
Jornalista: “Mas eles não querem vir”, lembrou o periodista.
Sapag: “Eu lamento, mas terão que vir. Eu poderia, mas primeiro devem conversar comigo. Não posso ir a nenhum lugar que tenha insubordinação”.
Jornalista: “Tão pouco vai permitir que alguém do seu gabinete vá”?
Sapag: “Não, porque eles estão com uma atitude de força que não é legítima, ocupar a rua e impedir que a gente se mova e trafique é um delito” (Jornal Río Negro, 22/06/1996).
“A gente que continua com essas drásticas medidas estão cometendo um delito, e nessas condições não posso dialogar com a investidura de governador, Não posso dialogar com gente que está cometendo um delito. Se a gente quer que eu vá, terá que voltar para sua casa e despejar a estrada” (Sapag, governador de Neuquén, Jornal La Mañana del Sur, 24/06/96).
Enquanto por um lado a burocracia estatal acusava a oposição de controlar o movimento de contestação social e a burocracia partidária opositora buscava, realmente, formas de controla-lo; por outro lado, no interior dos piquetes se organizava a contestação social através dos debates nas assembleias e da participação direta e igualitária nas decisões, crescia entre os contestadores uma forte desconfiança em relação à burocracia partidária tradicional e seus interesses em canalizar a contestação social para seus interesses particulares e oportunistas. Os burocratas, que desde o início do bloqueio das estradas, estiveram presentes e auxiliaram na sua manutenção, assim como outros que tentavam se aproximar dos bloqueios, passaram a ser duramente hostilizados nos piquetes:
o ex-prefeito Grittini, no momento de chegada ao cenário (local dos bloqueios e piquetes) foi agredido verbalmente, não obstante persistindo em seu discurso conseguiu arrancar aplausos dos assembleístas. Não tiveram a mesma sorte os prefeitos Martinasso e Pérez que não puderam chegar ao cenário e em suas intervenções foram objetos de constantes vaias e agressões verbais. Pior ainda foi a situação que tiveram que atravessar o senador nacional pelo Partido Justicialista Daniel Baum, os deputados provinciais e vereadores; quando chegaram ao local lhes foram lançados elementos contundentes que os obrigaram a desistir da ação (Jornal La Mañana del Sur, 03/06/96).
No jornal Página 12, um representante piqueteiro declarava que,
 na sexta-feira pela noite o ex-prefeito Adolfo Grittini se pôs a frente do protesto [...] Nos convocaram a todos os piqueteiros a uma assembleia na torre da YPF, mas não nos deixaram falar, eles tiveram sempre o microfone [...], então nos retiramos dali. Nos demos conta de que estavam usando-nos. Fomos até a rádio e convocamos a nossa própria reunião no outro extremo da cidade, mas pedimos que os políticos se abstenham de vir. [...] O povo já não queria nada com os políticos. Diziam-nos que éramos seus representantes [...] Aí nos demos conta de que o povo tinha seu poder e podíamos ganhar (Jornal Página 12, 30/06/96).
 A hostilidade dos contestadores sociais contra a burocracia estatal e partidária (tradicional) não era gratuita, mas sim fruto do avanço, mesmo que ainda limitado, da consciência de classe, no interior da luta de classes. Dessa maneira, passaram a se organizar nos piquetes e pretenderam canalizar eles mesmos suas demandas, através de representantes eleitos sob o calor do fogo e fumaça dos piquetes. Já nos primeiros momentos da contestação social, setores da classe subalterna[7] e do lumpemproletariado com tendências mais radicais recuperaram ferramentas de luta e organização tradicionalmente pertencentes ao movimento operário revolucionário. Dentre as principais estavam os piquetes, a assembleia coletiva, a auto-organização, a decisões horizontais e a ação direta. O uso combinado dessas ferramentas afastaram decididamente as pretensões da burocracia partidária de exercer o controle sobre o movimento de contestação.
Nascia, assim, um novo sujeito histórico com consciência política própria: os piqueteiros. Svampa e Pereyra (2009) indicam, ainda que através de uma linguagem problemática, que a identidade piqueteira foi percebida naquele contexto de forma diversa. Tanto negativamente, apoiando-se em três argumentos centrais: a) apontando a militância social como um aspecto negativo em um contexto de precariedade laboral, no qual se introjetava uma autoculpabilização de sua condição social; b) o segundo fundamenta-se em um dos elementos centrais do ser piqueteiro, presente principalmente entre os mais jovens, apontando para a experiência de enfrentamentos com os aparatos repressivos do estado, estruturada originalmente na disputa pelo controle territorial. “A imagem dos jovens fogoneros de Cutral-Có até os piqueteiros encapuzados dos grupos autônomos” (SVAMPA e PEREYRA, 2009, p. 171); c) e o terceiro, marcado por aqueles que rechaçam como indigna a aceitação dos subsídios estatais, “um certificado da condição de pobre e desempregado”. Por último, existe uma leitura oposta que apresenta a identidade piqueteira como sinônimo de dignidade. Ao se definirem como piqueteiros, produz-se mentalmente um deslocamento muito significativo em relação aos que se intitulam como desempregados, a percepção de sua condição altera de forma considerável e radicalmente. Ao contrário do termo desempregado, que carrega uma carga negativa e estigmatizadora que aponta para a passividade, o termo piqueteiro se define por sua condição ativa, ou seja, o trabalho de organização da contestação social e da militância prática, que vai desde a sustentação (alimentação, água etc.) daqueles que estão nos piquetes, passando pelas decisões cotidianas, até a questão da segurança e dos enfrentamentos com as forças repressivas etc.
 Dessa maneira, no primeiro momento, a atividade piqueteira se expressou na própria realização dos bloqueios e piquetes que deram lugar a toda uma simbologia que caracteriza a dignidade da luta, a liberdade como o próprio ato de se organizar para lutar e resistir à regularização neoliberal. A assembleia também se apresentou como símbolo de outra forma organizativa, marcada pela deliberação horizontal. O controle territorial exercido pelas classes desprivilegiadas, algo possibilitado pelos piquetes. “A insurreição como horizonte dos bloqueios” (SVAMPA e PEREYRA, 2009).
 O segundo momento da mobilização, entre os dias 23 e 25 de junho, caracterizou-se por uma expressiva desinstitucionalização do movimento de contestação. A partir daí começa a aparecer com maior nitidez uma divisão no interior do bloco reformista, marcada pela existência de um setor mais radicalizado, constituído pela maioria que exigia a presença de Sapag em uma assembleia popular, com o objetivo de apresentar soluções concretas aos problemas sociais da província. Esse setor, composto majoritariamente pelo lumpemproletariado, detinha maior disposição à luta, à ação direta e ao enfrentamento com as forças repressivas, e por isso tornaram um dos principais alvos da estigtamização e criminalização realizada pelo capital comunicacional, que passava a apresenta-lo como o setor mais duro da contestação social. O outro setor detinha uma postura moderada, marcada pela crença nos caminhos e negociações institucionais, encarnadas em um grupo que defendia a viagem do mesmo até a capital provincial para uma negociação com o governador. Proposta essa que esbarrava na decisão da assembleia coletiva de não permitir a saída de ninguém da localidade (KLACHKO, 2007).
A situação nas localidades começava a ficar tensa. O governador não dava nenhum sinal de que iria ceder à exigência dos insubordinados e delinquentes, como vinha intitulando os contestadores sociais nos jornais locais, a manutenção dos piquetes começava a se apresentar como uma tarefa árdua, os pneus estavam acabando e por isso só os mantinham incendiados pela noite, o desabastecimento de alimentos passava a prejudicar a todos e tornava uma pressão a mais, os serviços de emergência hospitalar passam a receber alguns jovens intoxicados pela fumaça dos piquetes, os serviços de saúde começam a recomendar o uso de máscaras ou que tapem os rostos com suas roupas (imagem que passava a compor a identidade piqueteira) e começava a circular pelas rádios locais a notícia da intervenção da juíza e da presença de gendarmes nas regiões próximas, preparados para desbloquearem as vias. Tal notícia, fez com que os hospitais de Cutral-Có e Neuquén decretassem estado de emergência pela impossibilidade de atender a possíveis feridos pela repressão. Todo esse quadro gerava uma tensão muito grande no interior dos piquetes, porém, ainda assim, os piqueteiros mantiveram-se firmes e decididos na manutenção dos bloqueios (KLACHKO, 2007; BONIFÁCIO, 2009; ARTESE, 2009).
Diante desse quadro de forte tensão, que tendia a ampliar com o ingresso de 300 gendarmes do esquadrão antimotins que pousaram às 12h5min, do dia 24 de junho de 1996, de 03 aviões hércules, com armamento de guerra, tanque hidrantes e preparados para uma violenta repressão; o setor mais moderado do movimento de contestação seguiu buscando a aprovação do envio de um grupo à capital para negociar com o governador e convocou uma reunião no edifício da Cruz Vermelha de Plaza Huincul, com vereadores, comerciantes, profissionais técnicos, comissão de vizinhos etc. Tal convocação, gerou um conflito entre o setor moderado e o setor radicalizado que tentou invadir a reunião, sem obter êxito. No entanto, incendiaram uma camionete que estava do lado de fora do edifício, se armaram com pedaços de pau e se prepararam para impedir a saída de tal comissão da região.
 Após impedirem a saída da comissão, formada pelo setor moderado, da região, as possibilidades de resolução do problema se esgotaram e o setor radicalizado se preparou para resistir ao avanço da gendarmeria, enquanto o moderado utilizou as rádios locais para desaconselhar o enfrentamento e os pais para que retirassem, preventivamente, seus filhos dos piquetes (Jornal Mañana del Sur, 26/06/1996).
 Nesse momento, todas as pretensões de frações da burocracia emepenista de apropriar-se do descontentamento social e canalizá-lo para interesses próprios “vai por água abaixo” e os desempregados (lumpemproletariado) adotam uma postura política alternativa ao clientelismo estatal dominante, caracterizada pela ação coletiva direta e auto-organizada. Como já podemos perceber nesse contexto histórico, o lumpemproletariado adotou uma postura política bastante contestadora, soube resgatar ferramentas radicais, forjadas pelo movimento operário revolucionário, e utilizá-las ao longo do vasto território argentino para contestar as consequências da acumulação integral. Nesse sentido, a novidade histórica está na postura política do lumpemproletariado e não nas ferramentas utilizadas[8] por essa classe social e outras classes desprivilegiadas.
Ao longo de toda a madrugada do dia 25 de junho de 1996, parcela significativa da população aguardava ansiosa e tensa a chegada da gendarmeria. Os piqueteiros se preparavam para o enfrentamento e reforçavam as barricadas/piquetes. Todo tipo de automóvel em desuso, alambrados e outros materiais que pudessem dificultar a travessia de um automóvel foram utilizados e incendiados nos piquetes. De uma ponta a outra, entre os 21 piquetes existentes, os piqueteiros lotaram as estradas com pedras e escombros, se dividiram em grupos e mantiveram-se dispostos ao enfrentamento com a gendarmeria. A maior disposição vinha da juventude lumpemproletária, residente dos bairros pobres próximos à estrada nacional 22, e que, no geral, já possuíam um histórico cotidiano de enfrentamento com a repressão policial preventiva nesses bairros.
Um aspecto fundamental a ser destacado, em um contexto em que a contestação social atinge uma radicalidade substancial e desafia os poderes institucionais, seus canais tradicionais de política etc., é o papel que cumpre o capital comunicacional na preparação de um terreno favorável à repressão estatal. Não existe repressão efetiva sem um capital comunicacional efetivo. Conforme poderemos perceber, desde o primeiro momento da organização da contestação social, iniciou-se também uma batalha discursiva-ideologêmica, orquestrada pelo bloco dominante e veiculada pela burguesia detentora do capital comunicacional, com o objetivo de deslegitimar e criminalizar a contestação social, vinculando os contestadores sociais ao delitivo, à violência (atitude de força), à insubordinação política etc. (ARTESE, 2009). Os discursos a seguir foram veiculados pelo capital comunicacional (local e nacional) nos últimos dias que antecederam o início da repressão:
“Não posso ir a um lugar onde existe insubordinação. Eles estão em uma atitude de força que não é legítima. Ocupar o caminho e impedir que a gente se mova e trafique é um delito” (Felipe Sapag, governador de Neuquén. Jornal Río Negro, 22/06/96).
“(A investidura do governador) corre perigo de ser maltratada ou contrariada por um capricho de quem está cometendo um delito [...] praticamente todo o interior da província tem ficado ilhado. Os que protestam não representam a ninguém ... talvez no geral a todo o povo, mas o governo está representado pelos que foram eleitos. O povo não governa nem delibera senão através de seus representantes. Os manifestantes que participam da pueblada estão interrompendo o trânsito, o trabalho, a produção. No fundo eles possuem o direito legítimo de manifestarem, mas sem retirar dos demais a liberdade de trabalho” (Felipe Sapag, governador de Neuquén. Jornal Río Negro, 24/06/96).
“Não é com violência que se pode resolver o problema. A crise está culminando; a gente que está na estrada 22 deve desalojá-la imediatamente. Que voltem aos seus lares porque a lei deve ser cumprida” (Felipe Sapag, governador de Neuquén. Jornal Río Negro, 25/06/96).
“Não se pode entorpecer uma via de comunicação. Se não acatam a ordem, se desocupará a estrada mediante o uso da força pública” (Margarita Gudiño Argüelles, juíza federal, Jornal Página 12, 25/06/96).
“Vamos atravessar os piquetes, não pode ser que não nos deixem sair de nosso povoado. Que venham os gendarmes e entrem descendo o cacete, já me fuderam quatro dias, não aguento mais. O povo não pode ser manejado por duas ou três pessoas, vamos passar” (César Pérez, prefeito de Plaza Huincul, Jornal La Mañana del Sur, 25/06/96).
No início da manhã do dia 25 de junho/1996, a juíza federal Margarita Gudiño, acompanhada de 400 gendarmes completamente preparados para o enfrentamento (armamentos pesados, bala de borracha, canhão de água, gás lacrimogênio, cães adestrados etc.) avançam sobre os piquetes. Inutilmente a juíza tenta convencer os contestadores sociais a desocuparem a estrada e esses respondem com insultos e “Que venha Sapag!”. Um grupo de jovens lumpemproletários, responsáveis pelo primeiro piquete, lançam pedras sobre os gendarmes que passam a lançar água gelada e gás lacrimogênio contra os mesmos. No entanto, o ataque gendarme é inutilizado pelos ventos patagônicos que sopram a água e o gás lacrimogêneo na direção das tropas. A juventude lumpemproletária foi quem mais demonstrou disposição e força para enfrentar a repressão. Foram eles quem lançaram uma chuva de pedras e tijolos, enfrentaram e mataram vários cães das forças repressivas que os atacavam na estrada. Nesse primeiro enfrentamento saíram 27 contestadores feridos, um detido e 10 gendarmes feridos (BONIFACIO, 2011; ARTESE, 2009).
Após atravessar o primeiro piquete, as forças repressivas se depararam com uma multidão de contestadores (aproximadamente 20 mil pessoas) agitados e dispostos[9] ao enfrentamento, que impressionaram tanto o comandante do operativo repressivo quanto a juíza, pois já não se tratava mais de simples jovens lumpemproletários, mas sim de uma imensa quantidade de indivíduos pertencentes a diversos grupos (estudantes) e classes sociais (proletários, lumpemproletários, subalternos etc.). A quantidade e diversidade das classes sociais envolvidas na contestação inibiram uma maior repressão. O que revela, inclusive no discurso do comandante do operativo[10] e da juíza, o caráter axiológico da explicação da burocracia para impedir o avanço da repressão, assim como o caráter seletivo da mesma:
“Não é sacanagem, não podemos seguir porque é todo o povo, não são moleques ... “Existe gente bem vestida” (Comandante do operativo, Jornal Río Negro, 26/06/96).
“Depois de um trecho olhei e vi que ao redor de mim já não havia encapuzados, senão gente de cara descoberta que começava a correr e que não atirava pedras. Então disse ao comandante: ‘Me diga você o que está acontecendo? E ele me disse’: ‘Deixamos para trás o grupo de choque e essa gente que está aqui é gente do povo” (Juíza federal e comandante do operativo, Jornal La Mañana del Sur, 28/06/96).
Nesses discursos é possível perceber a existência de alguns signos que selecionam, com base em estereótipos, aqueles que são merecedores da repressão (jovens lumpemproletários mal vestidos e encapuzados, grupo de choque) e aqueles que não são (gente bem vestida, o povo).
Não acostumada com a auto-organização social, além da mentalidade fetichista institucional, naquele momento a burocracia (representada pela juíza e pelo comandante dos gendarmes) não entendeu o que exatamente estava ocorrendo ali e por isso não soube como lidar com a situação. Ao procurar pelos líderes da contestação e não encontra-los, pois de fato não existiam - não se tratava, como muitos defendiam, de um movimento monopolizado por frações da burocracia do MPN[11] -, a juíza, tremendo de medo[12], como havia confessado, se declarou incompetente para resolver a situação, alegando se tratar de um crime político, isto é, sedição; buscando desqualificar e criminalizar o movimento de contestação. Nos próximos dias, quase todos os jornais veicularam essa notícia, buscando insistentemente, como é costume do capital comunicacional, disseminar essa corrente de opinião que encara a contestação social como violenta, ilegal e, consequentemente, ilegítima. Percebam que tais discursos são majoritariamente expressão da burguesia, através do bloco dominante (burguesia comunicacional, burocracia privada, burocracia governamental, burocracia estatal, intelectualidade etc.) que está sob o domínio da hegemonia burguesa, dos seus valores, interesses e perspectivas:
“A atitude de vocês é uma clara demonstração de levantamento contra um governo provincial. É um delito maior que o de sedição e por tal motivo me declaro incompetente e me retiro do lugar junto com as forças de segurança que me acompanham” (Juíza federal, Jornal Río Negro, 26/06/96).
“Eu vim para levantar um bloqueio de estradas. Mas isto é mais que isso. Isto é uma rebelião popular. Se tem que qualificar penalmente isso é sedição, e me supera” (Juíza federal, Jornal La Mañana del Sur, 26/06/96).
“Isso é um virtual levantamento do povo contra o governo da província. É mais que sedição” (Juíza federal, Jornal Clarín, 26/06/96).

“Não possuem representantes, estão atuando através daqueles que eles auto elegeram, por eles mesmos. Me lembrei da faculdade de direito, de uma figura penal que está dentro do título de sedição, que é o motim, e que fala da ‘assembleia dos povos’, aquele que se constitui em assembleia sem reconhecer a seus representantes e pede ou atua por ele. E ai foi quando pensei que estava frente a uma figura penal maior [...]” (Juíza federal, Jornal La Mañana del Sur, 28/06/96).
“O distrito centro do MPN diante dos acontecimentos que são de domínio público, manifesta seu incondicional apoio ao senhor governador da Província, Don Felipe Sapag, uma vez que repudia as ações de violência gestadas por grupos devidamente individualizados que tem como único objetivo arrebatar concessões em proveito próprio, fato inadmissível em um governo legitimado pelo voto popular” (Juan Carlos, Ramón Reynal e Hector Fernández – burocratas do NPM, Jornal La Mañana del Sur, 27/06/96).
“Nada justifica o avassalamento das instituições democráticas legitimamente constituídas por decisão popular [...] A violência não é o método para encontrar uma solução” (Prefeitos da região, La Mañana del Sur, 26/06/96).
Reforçando a corrente de opinião que buscava ser predominante, a contestação social e seus métodos chegaram a ser vinculada, por alguns discursos, com a insanidade[13], mesquinhez e espírito de destruição dos piqueteiros:
“O que está ocorrendo é uma loucura coletiva com o único espírito de destruir Felipe Sapag e com o interesse mesquinho de não reconhecer uma trajetória (de Sapag) de mais de 30 anos à serviço da província” (Alberto Fernández, deputado provincial, La Mañana del Sur, 28/06/96).
É interessante perceber que com o desenvolvimento da contestação social, principalmente após a retirada das forças repressivas, que recuaram sob uma chuva de pedras e um coro potente de “Que Venha Sapag!”, o movimento de contestação social ganhou muita expressividade. A capacidade de auto-organização da contestação social, utilizando-se de ferramentas eficazes para pressionar o bloco dominante, juntamente com seu caráter massivo, adquiriu grande legitimidade perante as classes exploradas e subalternas da sociedade neuquina[14] e argentina. Vale lembrar que tudo isso ocorre em um contexto de grande precarização e intensa lumpemproletarização de milhares de argentinos. Além da legitimidade, os piqueteiros (termo que designaria os contestadores sociais, principalmente os setores lumpemproletarizados), forneceria para todo o país uma demonstração clara e eficaz de como sair da invisibilidade social, contestando a regularização neoliberal. O próprio capital comunicacional contribuiria com essa propaganda (não proposital) ao apresentar em seus jornais, em todo o país, alguns dos principais elementos que comporiam a nova dinâmica da luta de classes na Argentina contemporânea:
os piqueteiros conseguiram este objetivo, todos os meios de imprensa nacionais deram cobertura, na primeira página, dos fatos que estavam acontecendo em Cutral-Có e Plaza Huincul. O que os piqueteiros não sabiam e os meios de imprensa não buscavam, era que no resto do país essas imagens eram apreciadas por outros desempregados – que também começavam a se organizar a partir de recriar as redes sociais preexistentes – como o modelo a seguir para ganhar visibilidade social. Com sua luta, transmitida a todo o país pelos meios de comunicação (capital comunicacional), estavam mostrando quais eram os métodos mais eficazes para fazer ouvir os que detêm o poder político. Nesses vertiginosos dias se estava criando os marcos para a ação de novos protagonistas: os piqueteiros. Nos dias do Cutralcazo, os piqueteiros atropelaram as intenções da facção “blanca” que pretendiam instrumentaliza-los, logo impediram que os prefeitos canalizassem as negociações segundo as condições impostas por Sapag, posteriormente fizeram render as forças repressivas com a força da massividade. Agora só faltava negociar com o governador (BONIFACIO, 2011, p. 155-156).
A radicalidade e massividade da contestação social fizeram curvar o intransigente caudilho Felipe Sapag. Com a notícia do recuo da gendarmería, da indicação de uma sedição contra seu governo e da forte insistência dos piqueteiros na sua presença na região, se viu coagido a abandonar a reunião do Encontro dos Governadores Patagônicos, na Província de La Pampa. Às 14h00min viajaria diretamente para Cutral-Có, onde chegaria 17h30min, e assim que atravessou o primeiro piquete foi muito bem recebido com vários insultos: “recebi todo tipo de puteadas (xingamentos acompanhados de gestos) no aeroporto, lhes sorri porque os compreendo” (Felipe Sapag, La Mañana del Sur, 26/06/96 – parênteses nossos). Aqui o discurso de Sapag em relação à contestação e os contestadores começa a “alterar”. Às 21h30min horas, depois de ser coagido, novamente, agora para comparecer à Torre Uno, onde se encontra com cinco mil piqueteiros que aos gritos exigiam fonte de trabalho e a renúncia dos prefeitos da região.
Em seu discurso, o velhaco Sapag, político profissional que era, procura amenizar as coisas, faz promessas, diz que iniciará as mudanças necessárias e várias outras mentiras e demagogias, como a de elogiar a contestação social e “discordar” da acusação da juíza federal do crime de sedição. Uma nítida demonstração da arte da mentira, da simulação-dissimulação típica da burocracia, que visava, essencialmente, capitanear a contestação social, ocultar o antagonismo/tensão social, reforçar o fetichismo da preocupação com a representatividade política, transferir as responsabilidades para o governo federal etc. Iniciou parabenizando a população por “ter chamado a atenção do país”, solicitando confiança para que “comecem a resolver os problemas” (Sapag, Página 12, 27/06/96). Porém, não conseguiu discursar por mais de 10 minutos, pois recebeu vaias, insultos, empurrões dos piqueteiros e uma pedrada ao se retirar, enquanto os piqueteiros se mantinham na estrada em assembleia (BONIFACIO, 2011).
 Em diversos jornais, nesse mesmo dia, seus discursos confirmam a simulação-dissimulação de Sapag:
Não foi uma sedição, senão que Cutral-Có tem se colocado de pé depois de 06 anos em que se produziu o esvaziamento da YPF” (Sapag, La Mañana del sur, 26/06/96).
“Fiz vários pedidos ao governo nacional pela situação dessa região, mas nunca nos escutaram. Espero que agora vejam a gente na rua, com frio e fome e comecem a nos escutar” (Felipe Sapag, Clarín, 26/06/96).
“(Los piqueteros) é algo que surgiu do povo, da gente comum. Não sei em virtude de qual questão ... talvez a pobreza e a angústia os tem unido. Tem se organizado e estão muito conscientes do que estão fazendo. Tem sido muito razoáveis comigo. Também possuem o mérito de através dessa comoção terem produzido – não apenas na região mas em todo o país – o reconhecimento de uma realidade que não se conhecia em profundidade e não se entendia tampouco desde longe” (Sapag, Río Negro, 29/06/96),
No dia 26 de junho/1996, conforme combinado, a Comissão de Piqueteiros foi recebida por Sapag, junto com um conjunto de reivindicações levantadas e aprovadas em assembleia pelos piqueteiros. Durante a reunião Sapag afirmou que havia recebido do governo federal auxílio com roupas, alimentos e medicamentos aos mais necessitados, assim como se comprometeu a religar em 48 horas o fornecimento de energia e gás aos que se encontravam sem devido à falta de pagamentos, garantiu a criação de postos de trabalho com a instalação de indústrias e realização de obras públicas, declarou a região em estado de emergência social e ocupacional, prometeu a criação de linhas de créditos para comerciantes e industriais no Banco da Província, bem como a não punição dos contestadores sociais e, por fim, o retorno da negociação com a fábrica de fertilizantes.
Laura Padilla, quem fora eleita na assembleia dos piquetes para representa-los, interferiu no discurso de Sapag e exigiu: “você coloca o que está dizendo por escrito e assina. Está nevando, tem gente na rua. Faça algo, uma ata” (AUYERO apud BONIFACIO, 2011, p. 158). Além disso, ela ponderou que levaria a ata, fundamentada nessas propostas e sistematizada em 12 pontos, até os piquetes para que fosse aprovada. Nesse momento Sapag se irrita e afirma “isso é uma piada, acabamos de fazer um acordo”. Laura solicita duas horas para que consulte a assembleia, demonstrando que a ata possivelmente seria aceita.
Na fria tarde do dia 26 de junho, os piqueteiros aprovam a ata em assembleia e encerram o bloqueio das estradas, porém se mantendo em estado de alerta diante dos trâmites para o cumprimento da ata. Houve comoção coletiva, passeatas e carreatas pela cidades da região. Contudo, a política assistencialista e paliativa que caracterizava diversos pontos da ata nunca chegou a ser suficiente em termos qualitativos e quantitativos, pois não chegava para todos e para os que chegavam não resolvia o problema. Não tardou para que a situação crítica ressurgisse na região e junto com ela o retorno da contestação social, porém agora com uma bagagem cultural de enfrentamento maior que a do ano de 1996, visto que a organização das lutas passadas gerou maior consciência e aprendizado. Em abril de 1997, o movimento piqueteiro retornaria com mais força e maior capacidade de contestação.
Com o objetivo de compreender que tipo de discursos, de quem, com que conteúdo eram veiculado pelos jornais sobre a contestação social, seus métodos de luta e a luta cultural expressa no capital comunicacional, nos fundamentamos em um registro de aproximadamente 100 declarações, extraídas de 05 jornais, relativas ao período junho/julho/1996. A análise desse conjunto de informações apresenta:
Figura 08 - Discursos veiculados pelo capital comunicacional (entre os dias 26 de junho e 04 de julho de 1996, em Cutral-Có e Plaza Huincul).

Sujeitos
Antes do Enfrentamento
Depois do Enfrentamento
Total
Contestadores sociais
15
30,6%
12
26,1%
27
28,4%
Outros sujeitos[15]
7
14,3%
7
15,2%
14
14,7%
Burocratas
(estatais, governamentais, partidários)
27
55,1%
27
58,7%
54
56,8%
Total
49
100%
46
100%
95
100%
Fonte: Elaboração própria sobre a base de dados extraídas dos jornais Clarín, La Nación, Página 12, Río Negro, La Mañana del Sur.
A primeira constatação que extraímos desses registros é que os discursos emitidos pelos contestadores sociais ocupam um espaço infinitamente menor (28,4%) que o espaço ocupado pelos discursos da burocracia (56,8%). A maioria absoluta dos discursos dos contestadores sociais demonstra, tanto antes quanto depois dos enfrentamentos, um elevado grau de descontentamento e impaciência com a burocracia (apontada como a responsável pela situação social) e exigências de soluções imediatas da parte da burocracia (estatal e governamental) provincial. Mesmo nos discursos dos contestadores sociais, que também é produzido pelo capital comunicacional que seleciona, recorta, fragmenta o discurso etc., existe uma mensagem implícita que os apresenta de forma negativa (ameaçador, duro, violento, radicais, impacientes), parecendo confirmar a corrente de opinião do capital comunicacional[16].
Em segundo lugar, as declarações que buscaram caracterizar os contestadores sociais e seus métodos compõe um total de 56 discursos dos quais 34% vinculam a contestação social com o delitivo, com a violência e como prejudiciais para as instituições burguesas. Tais caracterizações foram emitidas majoritariamente pela burocracia estatal/governamental (aproximadamente 80%), o que revela um monopólio discursivo por parte dessa classe social. Mais de 20% dos discursos analisados nesse período apontaram para denúncias contra os bloqueios das estradas e da exigência de encerramento da contestação social com o uso da repressão institucional; mais de 40% dos demais discursos tem no seu conteúdo acusações entre frações da burocracia partidária/estatal/governamental buscando mutuamente na oposição os verdadeiros responsáveis pela contestação social (ARTESE, 2013).
Podemos observar que o bloco dominante, desde o início dos enfrentamentos sociais, veio construindo uma corrente de opinião hegemônica que apontava para a criminalização da contestação social, apresentando-a negativamente e de forma estereotipada como delitiva, violenta, perigosa para o estado de direito e suas instituições e, portanto, ilegítima. Coube ao capital comunicacional produzir e reproduzir essa corrente de opinião diariamente, em diversos jornais provinciais e nacionais, ao longo dos dias que antecederam e precederam a repressão institucional. Porém, é importante ressaltar que para os milhares de contestadores sociais essa corrente de opinião era falaciosa, pois em seus discursos o significado de delito era interpretado de forma muito distinta, como exemplifica o discurso de um jovem lumpemproletário que esteve presente nos piquetes e enfrentou o avanço da gendarmeria:
delito é deles. Delito é não trazer pão às crianças, não comprar os materiais da escola, isso é delito. De que delito estão nos acusando quando o que você quer é trabalho e algo para suas crianças? E te vem atacar com a gendarmeria ... isso diretamente é matança, não delito, uma agressão moral. Aqui tem criancinhas que estão anêmicas, que tem desnutrição, gente que não tem nem o que comer. Delito é ter que levar meus filhos a um refeitório comunitário, e que não haja fonte de trabalho para que comamos todos os dias na mesa juntos. Não sei de que delito a juíza vem me acusar (ARTESE, 2013, p. 43).
A primeira Pueblada de Cutral-Có, como ficou conhecido esse episódio, apresentaria de forma mais transparente os elementos que combinariam a nova dinâmica da luta de classes (a ação direta com fortes tendências à autonomização, decisões horizontais em assembleia, auto-organização da luta etc.), seu principal protagonista social (os piqueteiros que inicialmente formavam uma diversidade de grupos e classes sociais e, posteriormente, passou a ser composto majoritariamente pelo lumpemproletariado – desempregados, subempregados etc.), seus principais métodos de luta (os piquetes bloqueando estradas, ruas e pontes de acesso), sua eficácia contra a invisibilidade social (a radicalidade dos piquetes garantiram a atenção do capital comunicacional e sua propaganda) e sua principal exigência (trabalho).
Nessa pueblada, conheceríamos mais nitidamente também a postura dos seus principais inimigos (burguesia e burocracia) diante da contestação social. Para esses não haveria espaços para canais políticos alternativos, ou está dentro da normalidade institucional, seguindo suas regras e aceitando a regularização neoliberal ou será considerado um delinquente/criminoso/inimigo imaginário e, portanto, passivo de repressão, criminalização e eliminação (fuzilamentos). Para isso, a burguesia contaria com o capital comunicacional e, fundamentalmente, com a burocracia para produzirem e reproduzirem um discurso ideologêmico que criminaliza, apontando a contestação social como delitiva, violenta; criando inimigos imaginários (franco-atiradores, infiltrados, guerrilheiros, terroristas, comunistas etc.); e construindo, a partir desses discursos, uma corrente de opinião hegemônica, contrária à contestação social e seus métodos, temerosa do “perigo” representado pelos piqueteiros e, por conseguinte, favoráveis à repressão institucional. Nesse sentido,
se trata de um produto de noções próprias de um paradigma ideológico no qual se considera a autogestão como uma instância de periculosidade que deve ser remediada, se necessário mediante castigo. A elaboração desse paradigma conforma o germe, semente do processo de criminalização e penalização simbólica do protesto que seria aplicado a outros episódios nos sucessivos governos (ARTESE, 2013, p. 43).
Nessa pueblada podemos encontrar com maior nitidez as principais características da nova dinâmica da luta de classes no capitalismo contemporâneo (não só argentino), isto é a emergência de uma postura política do lumpemproletariado com maior potencialidade para contestar as formas sociais neoliberais, a recuperação de antigas, porém poderosas, ferramentas de enfrentamento, com destaque para o bloqueio de estradas, ruas, pontes e outras vias importantes para a reprodução da sociabilidade burguesa, a auto-organização assembleiaria e horizontal como alternativa às moribundas instituições tradicionais (partidos e sindicatos), a ação direta e o enfrentamento declarado ao poder estatal burguês etc. Está claro que em resposta a essas ferramentas e a radicalidade que as lutas contemporâneas tendem a adquirir, o bloco dominante vem engendrando diversas maneiras de evitar o avanço da contestação social que, no entanto, não possui grandes novidades. Na verdade, o receituário repressivo burguês se apresenta como sendo mais do mesmo, isto é, discurso criminalizador via capital comunicacional, construção de uma corrente de opinião dominante que aponte para a deslegitimação da contestação, invenção de inimigos imaginários em torno dos contestadores sociais, criminalização de toda e qualquer luta social que apresente dificuldades e barreiras para o avanço da insaciável acumulação capitalista e, por fim, uma brutal repressão política, travestida de luta contra inimigos sociais (imaginários) perigosos. É contra esse receituário que os contestadores sociais contemporâneos precisam aprender a lidar para poder superá-lo e promover o avanço da luta pela total transformação social.


Referências:
ARTESE, Matías. La construcción de representaciones sociales en torno protesta social y a la represión institucional. Seis estudios de caso entre los años 1996 y 2002. 2009. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade de Buenos Aires, Buenos Aires, 2009. 355 p.
ARTESE, Matías. Cortes de ruta y represión – la justificación ideológica de la violencia política entre 1996-2002. Buenos Aires: Eudeba, 2013.
BONIFACIO, José Luis. Protesta y organización – los trabajadores desocupados en la província de Neuquén. Buenos Aires: Editorial El Colectivo, 2011.
BRAGA, Lisandro. Classe em farrapos – acumulação integral e expansão do lumpemproletariado. São Carlos, SP: Pedro e João editores, 2013.
BRAGA, Lisandro. Repressão estatal e capital comunicacional – O bloco dominante e a criminalização do movimento piqueteiro na Argentina. Tese (doutorado em Sociologia) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2016, 310 p.
BUCCIARELLI, Mario. El estado neuquino – Fortalezas y debilidades de una modalidade de intervención. Em: FAVARO, Orieta (org.). Neuquén – la construcción de un orden estatal. Neuquén: Universidad Nacional de Comahue, 1999.
KLACHKO, Paula. Las formas de organización emergentes del ciclo de rebelión de los ’90 en la Argentina. Publicación del Programa de Investigación sobre el Movimiento de la Sociedad Argentina – PIMSA, número 67, 2007.
PETRUCCELLI, Ariel. Docentes e piqueteros – de la huelga de ATEN a la pueblada de Cutral Có. Buenos Aires: El cielo por assalto, 2005.
SVAMPA, Maristella e PEREYRA, Sebastián. Entre La ruta y el barrio – la experiência de las organizaciones piqueteras. Buenos Aires: Biblos, 2009.
VIANA, Nildo. A consciência da história – ensaios sobre o materialismo histórico-dialético. Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.
VIANA, Nildo. O capitalismo na era da acumulação integral. Aparecida, SP: Ideias e letras, 2009.



* Doutor em Sociologia/Universidade Federal de Goiás, professor de Teoria Política e Argentina Contemporânea/Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas América Latina em Movimento/NEPALM.
[1] As formas sociais são formas de regularização das relações sociais que regularizam desde as relações de produção até todo o conjunto das relações sociais derivadas do modo de produção. Nessas sociedades, o estado é a principal forma de regularização das relações sociais, pois ele deve e busca controlar todas as formas privadas de regularização das relações sociais, visando influenciar no seu funcionamento e no conjunto das relações de produção. Tudo isso com o propósito fundamental de garantir a reprodução das relações sociais capitalistas. Enfim, ele procura regularizar a produção de capital e todas as demais formas de regularização das relações sociais.
[2] O Programa de Investigação sobre o Movimento da Sociedade Argentina/PIMSA “é levado adiante, desde 1993, por um conjunto de investigadores formados em distintas disciplinas, articulados em equipes de investigação que pretendem integrar as distintas aproximações ao conhecimento da realidade social de historiadores, sociólogos, antropólogos e economistas. Estas equipes de investigação foram se constituindo em distintos momentos ao longo dos últimos 24 anos, e com a realização desse programa tentamos dar continuidade e às vezes superar essa acumulação realizada no campo do pensamento científico, dando conta das profundas mudanças que tem produzido na Argentina atual como manifestação local do sistema capitalista mundial e atendendo as especificidades que se apresentam, como país dependente onde as relações capitalistas tem alcançado um alto grau de desenvolvimento. Para isso abarcamos o período ao redor dos 130 anos nos quais tem ocorrido a gênese, formação e desenvolvimento do capitalismo na Argentina” (PIMSA). Cf. http://www.pimsa.secyt.gov.ar/   
[3] A regularização interventora equivale à forma estatal própria do regime de acumulação antecessor do regime de acumulação integral. No entanto, ainda nos falta a realização de um estudo aprofundado sobre tal regime de acumulação na Argentina, trabalho que pretendemos realizar em estudos posteriores.
[4] Entendemos por isso o processo de marginalização da força de trabalho da divisão social do trabalho, constituindo, a partir daí, uma classe social que vivem à margem de tal divisão social: o lumpemproletariado (VIANA, 2009; BRAGA, 2013, 2016).
[5] Achamos muito pouco provável que o próprio Sobisch tivesse o interesse em consolidar tal contrato com a empresa Agrium. Para nós trata-se da estratégia clássica da burocracia, que vive de disputas partidárias, para desgastar o inimigo partidário com práticas maquiavélicas nas quais os fins justificam os meios, tal como a de iniciar um acordo que, a priori, sabe-se que não será concluído em seu mandato e que cairá como uma “batata quente” na mão do seu sucessor. E, como de fato ocorreu, o não cumprimento do acordo estimulará a contestação social. O contexto social da província não possibilitaria um investimento como o exigido para a instalação da planta canadense de fertilizantes.
[6]Na investigação de Auyero (2004a) menciona-se a quantidade e qualidade de recursos que o ex-prefeito havia mobilizado para a realização do protesto. Muitos dos entrevistados pelo autor falam do suporte de caminhões carregados de cobertas para alimentar o fogo das barricadas, a provisão de combustíveis gratuito aos veículos que se dirigiam aos postos de bloqueio nas estações de serviço de sua propriedade, como demais insumos para sustentar a presença dos manifestantes: alimentos, cobertas, combustível para aquecer-se etc. Inclusive desde o oficialismo acusou-se a radio “FM Victoria” –que difundiu pela primeira vez o fracasso das negociações entre a empresa de fertilizantes e o governo de estar vinculada com o ex-prefeito e de cumprir um papel de “alcoviteiro” ao incentivar a população a bloquear a estrada. O prefeito de Cutral Có, Daniel Martinasso declarava que “tem gente do meu próprio partido que segue manejando interesses pessoais e setoriais” (Río Negro, 24-06-96, p. 1) [...] (ARTESE, 2009, p. 101-102).
[7]A classe subalterna é composta pelos trabalhadores assalariados improdutivos que exercem, na divisão social do trabalho, a atividade de serviços em geral, desde os comerciais aos domésticos (VIANA, 2012). Marx já havia percebido a emergência de subalternos domésticos, que ele denominou ‘classe dos serviçais’ (MARX, 1988). Nesse sentido, um ‘datilógrafo’ (hoje seria um ‘digitador’) não é um membro da ‘nova classe média’ (que englobaria a burocracia), como alguns erroneamente pensam (DAHRENDORF, 1982; CAMPOS, 1976), muito menos outros funcionários (como funcionário de limpeza ou faxineiro) seria parte da burocracia ou mesmo do termo equivocado e genérico de ‘nova classe média’. Eles pertencem, na verdade, à classe subalterna, pois não tem poder de decisão dentro da organização” (VIANA, 2015a). Também Cf. (VIANA, 2012).
[8] Em Benclowicz, por exemplo, pode-se ler: “em junho de 1935, os leiteiros (de Salta) atravessaram os carros de distribuição no centro da cidade, bloquearam o trânsito e protagonizaram um ‘piquete’ urbano, quer dizer, um bloqueio de ruas [...] esse tipo de ações demonstram que as ‘novas’ formas de protesto não são tais, ou pelo menos possuem uma genealogia” (2013, p. 109 – parênteses nossos).
[9] Éramos mais de 10 mil na estrada. Era tamanha a organização que aí estava um grupo colocando arames que ficava das cobertas queimadas, para que se enrosquem debaixo dos canhões de água e não os deixem passar. Vinham e nos avisavam que estariam fazendo esse trabalho e que iam tardar o quanto pudesse [...] Esse dia às sete da manhã também soou a sirene e nós vivíamos nas quinhentas residências, no último bairro. E você se levanta, sai para a estrada, um dedinho e todo mundo se levanta porque todo o bairro irá se levantar e ir até a estrada. Era uma confraternidade impressionante (fala de um contestador social) [...] (ARTESE, 2009, p. 109 – parênteses nossos).
[10] De acordo com Horacio Verbitsky tal comandante compõe a gendarmería desde os anos 1970 e foi responsável pelo principal centro de extermínios da província de Tucumán, tendo assistido pessoalmente ao general Domingo Antonio Bussi executar, com tiros na cabeça, diversos presos políticos que posteriormente eram lançados em pneus incendiados com gasolina e óleo (Página 12, 18/12/99). A presença desses e outros militares genocidas nos aparatos repressivos do estado desde a ditadura militar burguesa apenas demostra que as mudanças ocorridas em tal aparato repressivo após o reinício da ditadura, assim como essa, demonstra apenas mudanças em suas formas, mas não em sua essência, pois essa sempre foi fundada no uso da violência da classe dominante contra as classes dominadas.
[11]  No fundo, para a consciência fetichizada toda prática que se afasta do comumente instituído é encarada como deturpadora; e o capital comunicacional trabalhava para reforçar essa corrente de opinião predominante na sociedade: “recorremos todos os piquetes e podemos observar que não é Grittini (ex-prefeito de Cutral-có) quem está encorajando a mobilização. Todos respondem a todos e ninguém responde a ninguém” (Jorge Muñóz, membro do clero, La Mañana del Sur, 26/06/96).
[12] A juíza se encontrava diante de milhares de manifestantes (muitos encapuzados) com altíssimo grau de descontentamento e disposição para o enfrentamento direto com as forças repressivas, que estavam em um número quatro vezes menor. Ao tentar falar com os contestadores foi ajudada por um encapuzado que a ergueu em cima de uma camionete. Os diversos vídeos sobre esse momento demonstram claramente a situação de medo na qual se encontrava a juíza, tremendo e gaguejando.
[13] “Não era a primeira vez – nem seguramente será a última – que se definia com uma patologia mental as manifestações populares de um conflito. As Mães da Praça de Maio foram rotuladas como ‘as loucas da praça’ durante anos” (ARTESE, 2013, p. 41).
[14] “No mesmo dia dos enfrentamentos, a multisetorial de Neuquén -que aglutinava os grêmios docentes da ATEN, legislativo (ANEL), judicial (SEJUN), estatal (ATE) junto a partidos políticos, la APDH local e outras organizações de Direitos Humanos convocou a uma paralização geral –que obteve um elevado acatamento nas escolas- e a movilização em apoio aos moradores das regiões em conflito. Segundo os diários locaiss, mais de 2.500 pessoas se mobilizaram desde o centro da cidade até a ponte que une as cidades de Cipolletti com Neuquén – que seria umo dos epicentros do protesto de março e abril de 1997-, interrompendo-o das 13hs00min. até as 17hs00min. O mesmo ocorreria na ponte que une a localidade neuquina de Centenario (ao norte da capital) com a região rionegrinha de Cinco Saltos. Estes atos de solidariedade realizados pelos grêmios se produziram, contudo, quando o conflito encerrava. Apesar dos já sabidos transtornos produzidos pelo bloqueio desses importantes caminhos, a população neuquina aderiu e saudou a medida” (La Mañana del Sur, 27-06-96 apud ARTESE, 2009, p. 112).)
[15] Aqui se encontra membros da intelectualidade (padres, pastores, jornalistas etc.), leitores e vizinhos que não sabemos sua pertença de classe, comerciantes, empresários etc.
[16] Alguns discursos dos piqueteiros parecem reforçar implicitamente a corrente de opinião que o capital comunicacional visava produzir e tornar predominante, isto é, os contestadores como violentos e delinquentes, contudo não passa de aparência. Por exemplo, no trecho a seguir: “Estamos cansados de viver de esmolas e de sermos mantidos por nossas mulheres. Não queremos mais discursos, se isso não for corrigido vamos fechar as válvulas de gás e depois vemos o que fazem” (Piqueteiro, La Mañana del Sur, 22/06/1996). Levando em consideração que estamos falando da Patagônia nos meses de inverno rigorosíssimo, em que toda a população necessita do acesso ao gás para manter aquecida suas residências, o trecho grifado soa como bastante ameaçador e violento, podendo reforçar a corrente de opinião desejada pelo capital comunicacional, isto é, a de que os piqueteiros são violentos. Porém, vale ressaltar que a violência não é uma essência dos indivíduos que contestavam bloqueando as estradas, cercando as cidades e deixando-as desabastecidas, enfrentando as forças repressivas, ameaçando interromper o fornecimento de gás etc. No fundo, tais ações devem ser encaradas como realmente foram: a resistência das classes exploradas, precarizadas e marginalizadas da divisão social do trabalho; lançadas pela regularização neoliberal no esquecimento social, na miséria, na fome, na desnutrição, na imensa mortalidade infantil etc; tratou-se de uma reação, infinitamente mais fraca, à brutal violência burguesa e, fundamentalmente, orquestrada pela burocracia. Quer dizer, contextualizando, percebe-se que se tratou de uma contraviolência à violência burguesa.