CAPITAL COMUNICACIONAL E DISCURSO
DO PODER
Lisandro
Braga
*Artigo publicado originalmente em Revista Enfrentamento, ano 10, número 17.
O
conceito capital comunicacional, de
autoria de Nildo Viana (2007c), é parte da tentativa desse autor em apresentar
uma teoria do modo de comunicação na sociedade capitalista, mas que ainda se
encontra inconclusa. Porém, tal conceito já apresenta grandes avanços na
compreensão sobre tal modo de comunicação, que supera os construtos
predominantes nas principais discussões sobre o tema: comunicação de massas,
cultura de massas, indústria cultural etc.
Essa
proposta está contida no seu capítulo Para
além da crítica dos meios de comunicação (2007c), na obra Indústria cultural e cultura mercantil (2007),
no qual resgataremos seus principais argumentos e suas contribuições para
pensarmos os interesses de classe por detrás do capital comunicacional,
excepcionalmente na sua forma jornalística impressa (e também digital), a
relação com os discursos e correntes de opinião que ela produz (seleciona,
recorta, destaca, oculta etc.) e veicula, principalmente em contextos de maior
radicalidade da luta de classes.
A
busca pela compreensão da realidade concreta exige um conceito que expresse
adequadamente essa realidade, pois o conceito depende da realidade que busca
expressar e não o contrário, visto que é a realidade social que o torna
necessário e se expressa através dele. Portanto, se a realidade concreta é
multifacetada e complexa, o conceito que busca expressá-la também deve ser: “se
o conceito é expressão da realidade, as suas características são as mesmas
desta” (VIANA, 2007b). Partindo dessa constatação, o autor contesta os
construtos (sistematização de uma noção falsa da realidade), meios de
comunicação de massa, cultura de massas, indústria cultural etc., pois esses
carecem de um referencial teórico-metodológico mais apropriado e, por
conseguinte, obscurecem mais do que expressam a realidade. Para o autor,
as
concepções de indústria cultural, meios de comunicação de massa, cultura de
massas, entre outras, padecem da falta de uma base metodológica e conceitual
adequada. Apesar da influência do marxismo em muitas elaborações sobre a
indústria cultural, as análises, na verdade, não utilizam o método dialético e
acabam caindo em posições antidialéticas, mesmo utilizando a palavra dialética
ou dizendo adotar tal método. Por outro lado, e mais grave, uma vez produzidas
tais concepções, elas acabam se tornando referências obrigatórias e criam uma
armadura linguística que dificulta o avanço intelectual sobre o fenômeno da
comunicação na sociedade capitalista. O problema da linguagem é fundamental,
pois a consciência a usa como elemento mediador para se desenvolver, e, quando a
linguagem é coisificada, isto acaba efetuando uma coisificação da consciência.
Tendo em vista que vivemos numa sociedade na qual a consciência coisificada
predomina, então ela e a linguagem coisificada se reforça mutuamente (VIANA,
2007c, p. 08).
Seguindo
sua análise, as teses da sociedade de massas e da cultura de massas, no qual os
meios de comunicação (de massa) se inserem, são ideológicas. Primeiramente, o
foco fundamental da discussão sobre a comunicação não deve residir nos meios de comunicação, mas sim no modo de comunicação, pois do contrário a
mesma focaria fundamentalmente na questão tecnológica ou industrial. No fundo,
a ideia de meios de comunicação remete aos “grandes meios de comunicação” (TV,
rádio, impressa) e esses não são homogêneos como nos faz entender tais teses.
Pelo contrário, existe uma heterogeneidade de meios (empresas oligopólicas,
pequenas empresas etc.), que funcionam de formas distintas, mas que, no
entanto, também possuem semelhanças entre eles. A questão é que a semelhanças
não se encontram nos meios, mas sim no modo de comunicação instituído na
sociedade capitalista.
A
outra homogeneização que não corresponde com a realidade é a promovida pelo
construto “massas”. Esse tal como o construto “povo” é uma abstração metafísica
que “a tudo responde sem nada responder”, “aquela palavra mágica, refrão a que
todos se apegam, fórmula para todos os problemas, sésamo para todas as portas,
não tem limitações, contornos, características” (SODRÉ apud VIANA, 2007c, p. 10).
Esse construto ofusca a realidade concreta, pois restringe a heterogeneidade da
população, que é dividida em classes sociais antagônicas, com interesses
distintos e em oposição umas às outras, à “massa”. No fundo, oculta que o modo
de comunicação é capitalista e, portanto, interessado na reprodução das
relações de exploração e na sociabilidade que nela se fundamenta. A obtenção de
êxito nessa tarefa exige a posse dos meios de dominação (obscurecimento)
comunicacional, quer dizer, a posse do capital comunicacional.
Nesse
aspecto, a análise de Adorno e Horkheimer contêm avanços e limites. Avança no
sentido de apresentar as insuficiências e o caráter ideológico do termo meios de comunicação de massa, mas se
limita a isso, pois não consegue ultrapassar as barreiras da linguagem
fetichizada, se aprisionando em outro construto: indústria cultural. Sendo assim como os outros, esse construto
também precisa ser ultrapassado “efetivamente, não apenas através da crítica,
mas também através da explicação do fenômeno que tal ideologia oculta”. E esse
é o propósito fundamental de Viana (2007c), qual seja, apresentar um conceito
que dê conta dessa realidade concreta e que ultrapasse os limites ideológicos
desses construtos.
Apesar
do avanço da explicação dos autores frankfurteanos em relação às teses dos meios de comunicação de massa, apesar
dos seus momentos de verdade, o construto indústria
cultural apresenta uma grande limitação explicativa e isso se deve,
significativamente, aos limites da compreensão, explicação e crítica ao
capitalismo, fornecida pela Escola de Frankfurt. A falta do uso do método
dialético, consequentemente a ausência de uma teoria ampla e profunda do
capitalismo, bem como a falta da perspectiva proletária[1] permitiu a esses autores
apresentarem uma concepção não dialética do modo de comunicação capitalista (a
indústria cultural) e, portanto, sem a percepção das contradições, da luta de
classes e do potencial revolucionário do proletariado. Afinal de contas, alguns
autores dessa escola estavam enfeitiçados pela crença da integração do
proletariado ao capitalismo, tal como defendia Marcuse e outros. A não
percepção da totalidade capitalista, da existência de um bloco capitalista
subordinado, do imperialismo que lhe dá vida e a temporária estabilidade adquirida
no bloco imperialista graças à sua superexploração etc. aponta para a principal
fragilidade dessa compreensão, ou seja, a não percepção de que a estabilidade
era relativa, temporária e não eterna.
Na
verdade, a realidade concreta que o construto indústria cultural pretende sem grandes êxitos explicar, tem a ver
com as características do emergente regime de acumulação conjugado, sua
dinâmica etc. A acumulação conjugada (1945-1980), nasce do caminho aberto pela
segunda guerra mundial, pois com a destruição massivas das forças produtivas
criou-se uma situação generalizada extremamente favorável para a acumulação de
capital, em um contexto de grande capacidade tecnológica/produtiva existente.
No entanto, como todo regime de acumulação, o conjugado precisou lidar com suas
contradições e para isso, como vimos anteriormente, buscou “integrar a classe
operária ao capitalismo”, isto é, promover melhores condições para o consumo
dessa classe social, aumentando a produção dos meios de consumo, desviando
parte dos meios de produção para ele (VIANA, 1996; 2003).
Aqueles
que denunciaram a integração da classe operária no capitalismo devido ao
aumento do seu nível de renda viram apenas um lado da questão. Na verdade, tal
integração ocorreu graças à instauração de um modo de vida capitalista também
no interior da classe operária. O que explica isso é o desenvolvimento
capitalista. Este é um desenvolvimento contraditório: ao mesmo tempo precisa
“revolucionar” constantemente os meios de produção, ele necessita barrar este
desenvolvimento [...] A partir das crises do capitalismo mundial que provocaram
as duas guerras mundiais, a classe dominante buscou superar esta tendência
através da intervenção estatal na produção-distribuição-circulação, da expansão
transnacional e da expansão da produção dos meios de consumo e do setor de
serviços (VIANA, 1996, p. 14).
Nesse
processo de produção de meios de consumo e de serviços, duas características
são fundamentalmente marcantes: a burocratização e mercantilização da vida[2]. Aqui, mencionaremos
apenas o processo de mercantilização. A acumulação de capital ampliada exige a
transformação de tudo em mercadoria e a produção de meios de consumo se
apresenta como uma estratégia para combater a tendência declinante da taxa de
lucro, pois cria e fortalece certos setores do capital. É nesse contexto, e
visando tais fins, que o capitalismo oligopolista transnacional produz diversas
necessidades de consumo, tais como os aparelhos domésticos (televisão, rádio
etc.),
bens descartáveis e de obsolescência planejada,
assim como é instaurada uma nova moral: em que, segundo Baudrillard: despesa,
prazer e não-cálculo substituem os valores antigos de poupança, trabalho e
patrimônio. Os indivíduos são compelidos a consumir
como efetivação de seu dever de cidadãos. É o que o referido autor chamou de Fun-morality:
“imperativo de se divertir e de explorar tudo a fundo todas as
possibilidades de se fazer vibrar, gozar ou gratificar” [...] (ÓRIO, 2016, p.
08-09).
A transformação de tudo
em mercadoria se expande, fortalecendo setores já existentes (capital comercial
e outros) e dando origem a “novos” nichos de acumulação, tais como o de serviço
(capital dos serviços) e o comunicacional (capital comunicacional). Por
conseguinte,
o capital comunicacional é aquele voltado para o
investimento capitalista nas empresas de comunicação, cada vez mais
oligopolistas. É um novo setor do capital, que já existia de forma embrionária
no regime de acumulação anterior, mas que se torna mais forte e vai produzindo
um processo de concentração e centralização crescente. Assim, ao invés de
indústria, um termo relativamente neutro e pouco preciso, trata-se de capital, que expressa relações sociais de exploração e
acumulação, em contraposição a um mero processo de produção não definido
linguisticamente, tal como indústria ou empresa. É o domínio do capital nas empresas de comunicação, formando empresas capitalistas de comunicação que
se tornam, com o passar do tempo, oligopolistas. O capital comunicacional não
produz cultura, arte. Ele produz mensagens, divulgação, comunicação das obras
artísticas, culturais ou de informação. Os seus funcionários são assalariados,
os demais, que não possuem vínculo empregatício são remunerados através de
direitos autorais, pagamento por prestação de serviços, etc. [...] Assim, o
conceito de indústria cultural é impreciso e eufemístico, enquanto que o
conceito de capital comunicacional é preciso e nem um pouco eufemístico:
expressa a dominação capitalista no
processo de comunicação via meios tecnológicos (VIANA, 2007c, p. 14 –
itálicos nossos).
Como todo capital, o
comunicacional tende a se expandir de forma concentrada e centralizada,
formando grandes oligopólios comunicacionais, concentrado nas mãos de um
pequeno grupo, que passa a controlar um poderosíssimo meio de dominação social:
a dominação comunicacional. Com isso, o caráter autoritário e vertical da
comunicação, presente em toda sociedade fundada na exploração de uma classe
social sobre outra, se amplia significativamente, constituindo, dessa maneira,
o modo dominante e autoritário de comunicação capitalista. Por serem empresas
capitalistas de comunicação produzem mercadorias (mensagens, informação,
discursos etc.) que visam o lucro. A comunicação torna-se, além de autoritária
e vertical, mercantil e lucrativa.
O capital
comunicacional, através das empresas capitalistas de comunicação, buscam dois
objetivos fundamentais. O primeiro consiste na busca pelo lucro, tanto o
fornecido pela produção da mercadoria
jornal quanto aquele oriundo da propaganda comercial que ele veicula etc.;
o segundo interesse caracteriza-se pela busca de melhores condições
ideologêmicas que garantam a regularização da sociabilidade (modo de vida)
burguesa. Logo,
todo
este processo reproduz os interesses da classe dominante. A indústria cultural
produz uma padronização e manipulação da cultura, reproduzindo a dinâmica de
qualquer outra indústria capitalista, a busca do lucro, mas também reproduzindo
as ideias que servem para sua própria perpetuação e legitimação e, por
extensão, a sociedade capitalista como um todo (VIANA,
2007c, p. 23).
Nesse sentido, o
capital comunicacional não apenas se utiliza da alta tecnologia dos meios de
emissão de comunicação/informação, como o faz de determinado modo. Para
garantir a regularização das relações sociais existentes, o conteúdo discursivo
jornalístico deve ser ideologêmico e axiológico, deve apontar para a
naturalização da realidade e para a reprodução das representações cotidianas e
ilusórias, que expressam predominantemente o imaginário social, bem como para a
formação de uma consciência coisificada e não contestadora. Em síntese, o conteúdo discursivo
jornalístico não deve apontar para além da aparência dos fenômenos sociais, tal
como a perspectiva da burguesia comunicacional não pode ultrapassar os limites da
sociabilidade burguesa (VIANA, 2013; 2007d; 2008a).
O discurso jornalístico
tem como propósito fundamental realizar a propaganda, isso é a transmissão de
determinadas ideias ou acontecimentos e/ou determinadas ideias sobre
determinados acontecimentos. Existem, basicamente, duas modalidades de
propaganda, a propaganda comercial e a propaganda
ideologêmica. Essa última é a que nos interessa. A complexidade e maior
sistematização exigida para a produção e propagação de uma ideologia são
incompatíveis com o formato discursivo exigido pelo jornalismo (mesmo
impresso). Esse precisa de uma linguagem simples, objetiva e de fácil acesso ao
grande público, no entanto a qualidade dessa linguagem deve ser ideologêmica,
quer dizer sua representação sobre os fenômenos sociais deve se fundamentar em
fragmentos de ideologia (sistema de pensamento ilusório), numa representação
cotidiana[3]
da realidade, marcada pela naturalização das relações sociais e pelos padrões
dominantes dos valores na sociedade (axiologia[4]).
O discurso jornalístico, portanto, equivale a uma das formas em que o capital
comunicacional transmite sua perspectiva, que é determinada pelo bloco
dominante[5]. Esse, por sua vez, conta com seus ideólogos e
aparatos institucionais (estado, partidos políticos etc.) para produzir uma
concepção hegemônica, uma corrente de
opinião predominante na sociedade, que é reproduzida pelo capital
comunicacional, através dos discursos que ele veicula. As correntes de opinião
são entendidas por nós em sua dinamicidade, tendo seu período de nascimento,
difusão e perecimento; são relativas a acontecimentos, processos sociais e
políticos, questões polêmicas, produções culturais e ideológicas, demandas
sociais e também, como veremos, relativas à contestação social. “Elas
influenciam a formação de opiniões momentâneas, simuladas e resistentes em
determinada conjuntura e por isso são conjunturais” (VIANA, 2015b, p. 12).
Por último, para
concluirmos, nos resta apresentar a compreensão teórica que temos sobre o
discurso e que utilizaremos na fundamentação desse trabalho. Afinal, o que é um
discurso? Para respondermos essa questão é necessário, primeiramente,
realizarmos uma discussão sobre a linguagem, isto é sobre o meio de manifestação do discurso. Sendo
assim, o que é a linguagem? A busca por respostas a essas duas questões compõe,
no fundo, parte da procura por respostas a uma questão mais ampla, isto é, a
relação entre discurso e poder. Diversos teóricos se debruçaram sobre essa
questão, no entanto, nem todas as respostas foram satisfatórias, visto que
algumas apontaram para uma concepção metafísica, tanto de poder (como relação),
quanto de discurso (formação discursiva)
(FOUCAULT, 2012; 2012a). Sendo assim, buscaremos respostas a essas questões
partindo de uma concepção dialética de linguagem e poder.
Ao partirmos dessa
perspectiva, evidenciamos nitidamente a existência de uma relação íntima entre
a linguagem e as relações sociais de determinada sociedade dividida em classes
sociais. Em A ideologia alemã (1991),
Marx e Engels já apontavam elementos que levam a essa compreensão:
a produção de ideias, de representações, da
consciência, de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e com o
intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. O representar,
o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens, aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo ocorre
com a produção espiritual tal como aparece na linguagem da política, das leis,
da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os
produtores de suas representações, ideias etc., mas os homens reais e ativos,
os homens que realizam (die wirklichen,
wirkenden Menschen – o ser humano,
ação humana), tal como acham condicionados por um determinado
desenvolvimento de suas forças produtivas e do intercâmbio que a ele corresponde
até às suas formações mais amplas. A consciência jamais pode ser outra coisa do
que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real. E se em
toda ideologia os homens aparecem de cabeça para baixo como numa Câmera obscura, é porque este fenômeno
deriva do seu processo histórico de vida, da mesma maneira que a inversão dos
objetos na retina deriva do seu processo diretamente físico de vida [...] não
se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou se representam, e também não
dos homens narrados, pensados, imaginados, representados, para daí se chegar
aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos, e com base no
seu processo real de vida apresenta-se também o desenvolvimento dos reflexos e
ecos ideológicos deste processo de vida [...] A moral, a religião, a metafísica
e a restante ideologia, e as formas da consciência que lhes correspondem, não
conservam assim por mais tempo a aparência de autonomia. Não tem história, não
tem desenvolvimento, são os homens que desenvolvem a sua produção material e o
seu intercâmbio material que, ao mudarem esta sua realidade, mudam também o seu
pensamento e os produtos do seu pensamento. Não é a consciência que determina a
vida, é a vida que determina a consciência (MARX e ENGELS, 1991, p. 36-37).
Nessa passagem, Marx e
Engels (1991) nos oferece importantes pistas para pensar a linguagem como um
ato social, visto que essa emana do comportamento material dos seres humanos,
logo de relações sociais estabelecidas entre eles (a linguagem da política, das
leis, da moral etc.) e não uma realidade autônoma, existente por si só, nem tão
pouco neutra. O ser humano, ao surgir no mundo, se depara com um conjunto de
relações sociais já constituídas, na qual ele não decide se participará ou não
delas. Assim como uma série de atitudes lhe serão impostas, o idioma que ele
aprenderá a falar não é da sua escolha. Os valores, as ideias, os sentimentos,
enfim a mentalidade já estará determinada independentemente da vontade do
indivíduo. Sua interferência no mundo se dá a partir do momento em que passa a
desenvolver sua consciência com a experiência (vivência). Portanto, sua
consciência individual se forma socialmente a partir da imposição da cultura
dominante (MARX e ENGELS, 1991; VIANA, 2009c). Porém, ainda assim é preciso
questionar qual é a origem da linguagem e o que ela é.
A partir do momento em
que a linguística surge como ciência autônoma, através da obra de Ferdinand
Saussurre, passou-se a estudar internamente a linguagem. Daí por diante, seguindo
Fiorin (2007), parte expressiva dos linguistas abandonaram a preocupação com as
relações entre linguagem e sociedade, assim como as vinculações entre a
linguagem e os seres que dela fazem uso. “Sua preocupação básica passou a ser a
análise das relações internas entre os elementos linguísticos. Estabeleceu-se
assim a chamada linguística estrutural” (FIORIN, 2007, p. 05). Essa teve seu momento de apogeu e declínio,
influenciou diversos pensadores nas últimas décadas e foi tomada como
“ciência-piloto” por alguns, porém, nos últimos anos sofreu duras críticas de
diversas outras correntes (sociolinguística, psicologia da linguagem, a análise
do discurso etc.), que passaram a apresenta-la como sendo ideológica em seu
conjunto, uma linguística burguesa.
Rousseau, em sua obra Ensaio sobre a origem das línguas
(1987), apresentou uma explicação confusa e limitada sobre a origem da
linguagem. Para ele, a linguagem não tem origem nas necessidades e na razão,
mas sim (sem argumentos que comprovem) na moralidade e na paixão: “não se
começou raciocinando, mas sentindo [...] todas as paixões aproximam os homens,
que a necessidade de procurar viver força a separarem-se. Não é a fome ou a
sede, mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera, que lhes arrancaram as primeiras
vozes” (ROUSSEAU, 1987, p. 164). Apesar da tese insustentável de que os
sentimentos – apresentados por ele de maneira metafísica – são a origem da
linguagem, Rousseau já apontava aquilo que na contemporaneidade é aceito por
muitos: a origem social da linguagem. No fundo, a origem da linguagem é tanto
afetiva quanto material, e as duas comprovam seu caráter social. A existência
humana só foi possível graças à associação e essa necessitou, sem sombra de
dúvidas, da linguagem para se articular e agir em conjunto, como forma de
garantir a sobrevivência coletiva.
Então de que maneira, a
partir de agora, definir a linguagem? Sapir (1980) e Viana (2007c) apresentam
uma definição semelhante de linguagem, na qual estamos de acordo. Para eles, a
linguagem equivale a um conjunto de signos[6]
(sonoros, gráficos, gestuais) criados e utilizados pelos seres humanos como
meios capazes de possibilitarem a comunicação de ideias entre eles. Desse modo,
a linguagem se estabelece através das relações sociais.
A linguagem é tão velha quanto a consciência; ela é
consciência prática, tal como existe para outros homens, e por essa razão está
começando realmente a existir para mim também pessoalmente; pois a linguagem,
assim como a consciência, só brota da necessidade, da exigência, do intercâmbio
com outros homens. Onde há um relacionamento,
ela existe para mim: o animal não tem “relações” com coisa alguma, nem as pode
ter (MARX apud FROMM, 1975, p. 100 – negritos nossos).
A linguagem
está submetida ao processo social, possuindo, portanto,
a mesma dinâmica, historicidade e singularidade da sociedade onde ela emerge.
Assim, linguagem, tal como coloca Fromm (1979), está intimamente ligada à
sociedade na qual ela emerge, sendo que existe uma sinonímia entre linguagem e
sociedade. A sociedade produz uma linguagem adequada a ela, com um léxico, uma
semântica, uma gramática etc. que é específica e socialmente organizada (VIANA,
2007c, p. 19).
Nas
sociedades de classes, nas quais as ideias dominantes são as ideias da classe
dominante, expressão dos seus interesses de classe e a serviço da manutenção
das relações de exploração e da consciência coisificada, é de se esperar que a
linguagem também esteja perpassada por tais interesses e pela luta de classes
que deriva deles. Coube inicialmente a Bakhtin (2010) desenvolver a tese
segundo a qual a linguagem é o ringue no qual se confrontam os valores sociais
antagônicos. Na introdução da obra de Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem (2010), Yaguello apresenta a
principal tese desse autor:
se a fala é o motor das transformações linguísticas,
ela não concerne os indivíduos; com efeito, a palavra é a arena onde se
confrontam os valores sociais contraditórios; os conflitos da língua refletem
os conflitos de classes no interior mesmo do sistema: comunidade semiótica e
classe social não se recobrem. A comunicação verbal, inseparável das outras
formas de comunicação, implica conflitos, relações de dominação e de
resistência, adaptação ou resistência à hierarquia, utilização da língua pela
classe dominante para reforçar seu poder, etc. Na medida em que às diferenças
de classe correspondem diferenças de registro ou mesmo de sistema (assim, a
língua sagrada dos padres, o “terrorismo verbal” da classe culta, etc.), esta
relação fica mais evidente (YAGUELLO, 2010, p. 14).
A preocupação central
de Bakhtin (2010) nessa discussão vincula-se à questão de saber como a
“infra-estrutura” de determinada sociedade determina seu signo
(“superestrutura”) e como o signo reflete e refrata a realidade em
transformação. Em outras palavras, como
o modo de produção determina a linguagem enquanto uma forma de regularização
das relações sociais apropriadas para esse modo de produção: sociedade
capitalista, linguagem capitalista. No entanto, Bakhtin enfatiza que o signo
também pode refratar a linguagem dominante, ou seja, pode constituir-se em um
elemento de resistência à essa linguagem e, consequentemente à sociedade que
lhe dá fundamento:
na realidade, todo signo ideológico vivo tem, como
Jano (deus romano das mutações e transições), duas faces (uma voltada para
frente e outra para trás). Toda crítica
viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva não pode deixar de parecer para
alguns a maior das mentiras. Esta dialética
interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise
social e de comoção revolucionária. Nas condições habituais da vida social,
esta contradição oculta em todo signo ideológico não se mostra à descoberta
porque, na ideologia dominante estabelecida, o signo ideológico é sempre um
pouco reacionário e tenta, por assim dizer, estabilizar o estágio anterior da
corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem como
válida hoje em dia. Donde o caráter refratário e deformador do signo ideológico
nos limites da ideologia dominante (BACKHTIN, 2010, p. 48 – negritos e parênteses
nossos).
Nessa passagem, Bakhtin
demonstra que a linguagem é perpassada pela luta de classes e essa gira em
torno dos signos utilizados na comunicação humana, pois é do interesse da
burguesia impor determinados signos e evitar o desenvolvimento de outros,
objetivando emperrar o livre avanço da consciência para além das fronteiras do
capital. Essa busca, nem sempre intencional, pretende impor a ideologia burguesa,
seus valores, concepções e mentalidade. No entanto, há um processo de
resistência, levado a cabo pelas classes exploradas, com o intuito de expressar
uma linguagem diferenciada. Contudo, tal resistência se apresenta mais
nitidamente apenas em períodos de radicalidade e avanço da luta proletária e/ou
de outras classes sociais exploradas e desprivilegiadas (BAKHTIN, 2010).
Apreendemos, por conseguinte, que embora existam enormes obstáculos para o
desenvolvimento de uma consciência e mentalidade contrária à burguesa, existem
também brechas que permitem a transformação da linguagem, pois “apesar da
língua-padrão (ou “culta”) ser imposta socialmente pelo estado e instituições
auxiliares, especialmente a escola, existe uma língua diferenciada, chamada
linguagem coloquial (ou popular) que é muitas vezes vista com preconceito”
(VIANA, 2007c, p. 20).
A sociedade capitalista
possui uma mentalidade e ideologia dominante, fundada no poder da classe
burguesa. É essa classe que, através do auxílio de diversas outras classes
sociais (burocracia, intelectualidade etc.), produz uma atribuição de sentido
às palavras e a torna dominante. No entanto, outras classes sociais, no
enfrentamento contra a classe dominante, tendem a atribuir outros sentidos às
palavras, um sentido a partir da perspectiva das classes exploradas, uma
ressignificação da linguagem conforme indica a tese bakhtiniana da
“plurivalência do signo”. Deste modo, a palavra
é o lugar privilegiado para a manifestação da
ideologia; retrata as diferentes formas de significar a realidade, segundo
vozes e pontos de vista daqueles que a empregam. Dialógica por natureza, a
palavra se transforma em arena de luta de vozes que, situadas em diferentes
posições, querem ser ouvidas por outras vozes (BRANDÃO, 2012, p. 09).
Uma
cena do documentário The Take – occupy,
resist, produce (AVI e KLEIN, 2004) fornece uma demonstração clara de como
classes sociais distintas significam a mesma realidade de forma também
distinta. Em uma entrevista durante o processo de ocupação e tomada da fábrica Cerâmica Zanon, na Argentina (outubro de
2001), um operário ao ser questionado pelo produtor do filme, se a ocupação e
tomada de uma fábrica não equivalia a um roubo, respondeu: “não, existe outra
palavra para designar isso, chama-se expropriação, é por aí que entendemos”.
Essa reinterpretação da ocupação e tomada da fábrica demonstra um elevado
avanço da consciência operária, pois o termo expropriar, nesse caso, aponta
para a restituição da posse aos seus verdadeiros proprietários: os produtores.
Nesse sentido, enquanto a classe burguesa utiliza a palavra roubo para explicar
determinada realidade, a classe operária, ao buscar reinterpretar a realidade,
a partir da sua perspectiva, é coagida a utilizar outra linguagem, outras
palavras. Deste modo, a luta contra a classe dominante e seus interesses exige
uma linguagem não dominante, pois “o ponto de vista do proletariado se
caracteriza discursivamente por tomadas de posição a favor de certas palavras, formulações, expressões etc., contra outras palavras, formulações ou
expressões, exatamente como uma luta pela produção dos conhecimentos” (PÊCHEUX,
2009).
A
compreensão sobre o caráter social da linguagem, e da luta de classes que a
atravessa, facilita a compreensão da mensagem que a linguagem veicula. E com
essa compreensão podemos, a partir de agora, focar nossa análise na relação
entre discurso e poder. O conceito de linguagem não deve ser confundido com o
de discurso, pois o primeiro é bastante amplo, uma vez que faz referência ao
uso de todos os recursos simbólicos existentes em determinada sociedade para
efetivar a comunicação social. Além disso, a linguagem é marcada pela
polissemia.
De
acordo com Viana (2007c), existem basicamente três razões para que discurso e
linguagem sejam definidos de forma distinta: a) enquanto a linguagem é
fundamentalmente um meio de expressão, o discurso é a própria expressão.
Portanto, a linguagem é um meio de manifestação que pode comportar diversos
discursos; b) Ao contrário da linguagem, o discurso é unissêmico, isto é, deve
possuir uma coerência semântica. Na linguagem, um termo ou palavra pode possuir
inúmeros significados (por exemplo, a palavra economia), já no discurso ele
possui um significado único que pode conviver com outros significados externos
ao discurso. Nesse sentido, o discurso é composto por seus elementos internos
(estrutura) e por seus elementos auxiliares (conjuntura). Portanto, um discurso
é unissêmico em sua estrutura, todavia pode ser polissêmico na sua conjuntura;
c) Por fim, podemos afirmar que enquanto na linguagem predomina a
heterogeneidade e a polissemia, no discurso só há a unissemia em sua estrutura.
Dessa maneira, o discurso é uma forma particular de manifestação da linguagem e
é da sua particularidade que se extrai sua definição e distinção.
Segundo
as análises introdutórias de Helena Brandão (2012) e de Eni Orlandi (2012)
sobre a análise do discurso, a
abertura de um espaço para o ingresso no campo dos estudos linguísticos,
daquilo que mais tarde veio a se chamar discurso,
foi realizada pelos estudos dos formalistas russos (Bakhtin, Voloshinov,
Medvedev) nos anos 1920 e 1930. Foi nos anos 1950 e 1960 que a análise do
discurso se constituiu como disciplina, principalmente, com a obra de Harris – Discourse analysis, 1952 –apresentando a
possibilidade das análises ultrapassarem o confinamento no qual as frases se
encontravam, estendendo procedimentos da linguística distribucional americana
aos enunciados, denominados de discursos. As contribuições de Jakobson e
Benveniste sobre a enunciação também foram decisivas na constituição dessa nova
disciplina. Uma das poucas e primordiais definições de discurso foi fornecida
por Émile Benveniste: “deve se entender por discurso em sua extensão mais
ampla: toda enunciação que pressupõe um locutor e um ouvinte e, no primeiro, a
intenção de influenciar o outro de algum modo” (apud Viana, 2007c). Essa
tentativa de definir discurso nos parece pouco frutífera, visto que ela se
fundamenta em generalizações grosseiras, pois a interlocução é um traço de toda
a comunicação humana e não apenas de uma modalidade específica de sua
manifestação, como é o discurso. Da mesma forma, a persuasão é um traço de
determinados discursos (religioso, político, científico etc.) e não de todos os
discursos (VIANA, 2007c).
No
fundo, encontramos pouquíssimas definições para o termo discurso. Mesmo o Dicionário de análise do discurso
(2004), organizados por Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau, não
apresenta uma definição clara de discurso. Esse se contenta em apresentar as
formas de discurso (forma de ação, interativo, contextualizado, assumido etc.),
o que ele realiza, sem necessariamente defini-lo.
Os
trabalhos iniciais no campo da análise do discurso, mencionados acima,
demarcariam duas das principais correntes teóricas da análise do discurso: a
escola americana e a escola francesa. Nesse trabalho, nos contentaremos em
dialogar apenas com a escola francesa, visto que a americana pouco avançou em
relação à questão do discurso, apresentando-o como uma simples extensão da
linguística. Nos anos 50 seu precursor, Harris, com seu método distribucional,
conseguiu
livrar a análise do texto do seu viés conteudista
mas, para faze-lo, reduz o texto a uma frase longa. Isto é, caracteriza sua
prática teórica no interior do que chamamos isomorfismo: estende o mesmo método
de análise de unidades menores (morfemas, frases) para unidades maiores (texto)
e procede a uma análise linguística do texto como o faz na instância da frase,
perdendo dele aquilo que ele tem de específico. Como sabemos, o texto não é
apenas uma frase longa ou uma soma de frases. Ele é uma totalidade com sua
qualidade particular, com sua natureza específica (ORLANDI, 2012, p. 18).
A
chamada Escola Francesa de Análise do
Discurso designou a corrente da análise do discurso predominante na França
entre os anos 1960 e 1970. O conjunto de pesquisas que compuseram essa escola
foi desenvolvido na segunda metade dos anos 1960 e se consagraria com a
publicação do número 13 da Revista Langages,
cujo título foi A análise do discurso,
bem como com o lançamento da obra Análise
automática do discurso, de Michel Pêcheux, no ano de 1969 (CHARAUDEAU e
MAINGUENEAU, 2004). Pêcheux foi o autor mais expressivo dessa corrente teórica.
No entanto, antes de apresentar sua concepção de discurso, é preciso, antes
apresentar as sistematizações ideológicas de Foucault sobre o poder e o
discurso, reconhecendo algumas de suas contribuições e apresentando os limites
de sua concepção burguesa tanto de poder quanto de discurso. Isso se justifica
pelo fato de Pêcheux ter sido influenciado por algumas categorias analíticas de
Foucault, que posteriormente são revistas.
O
conceito de formação discursiva é
central na ideologia sistematizada por Foucault, porquanto, como um bom
filósofo, esse autor abusa demasiadamente da metafísica em suas conceituações.
Para ele,
no caso em que se puder descrever, entre um certo
número de enunciados, semelhante sistema de dispersão e, no caso em que entre
os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas se pode
definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
transformações) diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva
(FOUCAULT, 1987, p. 43).
Mais adiante, na
mesma obra Arqueologia do saber
(1987), ele reforça: “chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida
em que se apoiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade
retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização
poderíamos assinalar na história” (FOUCAUT, 1987, p. 135). Portanto, o discurso
“seria concebido, dessa forma, como uma família de enunciados pertencentes a
uma mesma formação discursiva” (BRANDÃO, 2012, p. 33).
Essas
passagens confirmam aquilo que está presente ao longo de muitas de suas obras,
isto é, a concepção estruturalista, metafísica e ideológica de um intelectual
conservador e, diga-se de passagem, que vinha estreitando seus laços com a
burocracia e com os poderes institucionais do estado[7]. É interessante perceber
que a metafísica, tal como a de diluir o discurso em uma fantasmagórica “formação
discursiva”, de um “sujeito” abstrato que não pode ser identificado etc., está
presente em diversas obras de Foucault desse período. Sua concepção sobre o intelectual
específico e intelectual universal é, como em toda metafísica, destituída de
concreticidade[8],
assim como sua discussão sobre o poder[9] (FOUCAULT, 2012).
Como
bem constatou Baudrillard em sua obra Esquecer
Foucault (1984): a metafísica do poder de Foucault nada mais é do que um discurso do poder. O vínculo que esse
intelectual passou a ter com a burocracia estatal, a partir da segunda metade
dos anos 1960, aliado com as teses ideológicas que ele passa a produzir, compõe
parte da ofensiva burguesa expressa no plano intelectual/cultural e que
caracteriza a transição do regime de acumulação conjugado para o regime de
acumulação integral, cumprindo um papel importante na manutenção da hegemonia
burguesa. É por isso que em suas produções ideológicas sobre intelectuais, o
poder, o discurso etc. as classes sociais concretas desaparecem, assim como suas
contradições e a luta de classes.
Pêcheux buscou elaborar
as bases de uma teoria materialista do discurso através de uma dupla
perspectiva. Para ele, a semântica não constitui parte da linguística como a
fonologia e a morfologia, na verdade ela é para a linguística “o ponto nodal
das contradições que atravessam e organizam esta disciplina sob a forma de
tendência, direções de pesquisa, escolas linguísticas etc.” (BRANDÃO, 2012, p.
39); é exatamente nesse ponto nodal expresso pela semântica que a linguística
circunscreve a filosofia e outras ciências sociais ou o materialismo histórico.
Para esse autor, a interferência da perspectiva materialista nos domínios da
linguística apresentaria uma série de questões em relação ao seu objeto e sobre
sua relação com outros domínios científicos (ciências sociais em geral). Alguns
mecanismos linguísticos irão compor, segundo o autor, uma área de articulação
da linguística com a “teoria histórica dos processos ideológicos e científicos”
(BRANDÃO, 2012). Para Pêcheux,
sistema da língua é, de fato, o mesmo para o
materialista e para o idealista, para o revolucionário e para o reacionário,
para aquele que dispõe de um conhecimento dado e para aquele que não dispõe
desse conhecimento. Entretanto, não pode concluir, a partir disso, que esses
diversos personagens tenham o mesmo discurso: a língua se apresenta, assim,
como a base comum de processos discursivos diferenciados, que
está compreendido nela na medida em que, como mostramos mais acima, os
processos ideológicos simulam os processos científicos (PÊCHEUX, 2009, p. 81).
Nessa passagem, Pêcheux
realiza uma separação abstrata entre língua e discurso que acaba por reproduzir
a dicotomia de Saussurre (1995) entre língua (estrutura formal invariante) e a
fala (manifestação concreta da língua). Dessa forma, “o discurso estaria no
segundo caso, o que demonstra que Pêcheux não percebeu que o primeiro caso só
existe na concepção ideológica de Saussurre e nunca na realidade concreta”
(VIANA, 2007c, p. 27). Portanto, tanto a concepção de Foucault quanto a de
Pêcheux pecam por sua abstração metafísica. No primeiro pela influência do
estruturalismo e, no segundo, pela influência do pseudomarxismo estruturalista.
Por esse motivo, tais concepções são insuficientes para percebermos a relação
concreta entres seres humanos concretos, divididos em classes sociais, e seus
discursos, os interesses que eles expressam etc. Nesse caso, nos resta buscar
uma concepção dialética de discurso.
Essa concepção
dialética do discurso nós encontramos na obra Linguagem, discurso e poder – ensaios sobre linguagem e sociedade,
de Nildo Viana (2007c), e, portanto, é essa concepção que fundamentará nosso
trabalho. Nessa obra, o discurso é definido como
uma
manifestação concreta e delimitada da linguagem. As suas partes constitutivas
são a estrutura e a conjuntura e o caráter de sua estrutura
é unissêmico. Isto quer dizer que o discurso é algo concreto e delimitado, ou
seja, é sempre o discurso de um autor, de uma escola, de um grupo social, etc.,
que possui uma estrutura unissêmcia e é uma totalidade. Assim, o discurso é uma
manifestação particular, específica, concreta da linguagem que possui uma
estrutura unissêmica, pois um todo coerente e organizado, embora o nível da
consciência e organização varie dependendo do discurso. A coerência e
organização dependem de quem profere o discurso (VIANA, 2007c, p. 27-28).
Ao contrário das
concepções fetichistas da linguagem e das abstrações metafísicas de discurso,
tal como a “formação discursiva” (FOUCAULT, 1987; PÊCHEUX, 2009), aqui o
discurso é apresentado como uma manifestação concreta da linguagem do seu produtor,
logo é sempre o discurso de alguém, de quem o profere (indivíduo, grupo social,
instituição, classes sociais etc.). Se, como afirmou Marx e Engels (1991), “a consciência
jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente”, então o discurso só pode
ser a manifestação, por meio da linguagem, da consciência desse ser consciente,
que se expressa a partir da posição que ocupa na divisão social do trabalho, a
partir da consciência que possui no interior dessa divisão, logo o discurso é
um fragmento de uma consciência que para “descobrir seu processo de produção é
preciso compreender o seu produtor” (VIANA, 2007c).
Os discursos são
formados em determinados contextos sociais e culturais nos quais seus
produtores estão inseridos e dependem da posição na qual os mesmos se encontram
diante desse contexto, seus valores, interesses e perspectiva de classe. O
discurso científico, por exemplo, vincula-se à ascensão do modo de produção
capitalista, que vem acompanhado de um gigantesco desenvolvimento das forças
produtivas, de uma maior necessidade de controlar o meio ambiente para
maximizar os lucros etc. Nesse contexto nascem as ciências naturais (física,
química, matemática, biologia etc.) e seus discursos. Porém, a sociedade
capitalista não brota do nada, mas sim das ruínas do modo de produção feudal
que, por sua vez, foi resultado da luta de classes, inclusive no campo
cultural. Nesse sentido, o discurso científico não nasceu da teologia
(expressão cultural dominante no feudalismo), mas sim da luta de classes no campo
cultural, no qual o renascimento e, posteriormente, o iluminismo foram seus
resultados essenciais:
o combate entre burguesia e nobreza feudal forjou as
armas culturais que a primeira utilizaria para combater a segunda e seu próprio
discurso. Estas armas foram retiradas da sociedade escravista que havia criado
a filosofia [...] O renascimento e o iluminismo produziram o contexto cultural
necessário para a formação da ciência [...] O contexto social e o contexto cultural forma as condições de
possibilidade de formação de um discurso. Mas tanto um quanto o outro são
formas de expressão da luta de classes e isto significa que as condições de
possibilidade de um discurso estão indissoluvelmente ligadas ao desenvolvimento
histórico da luta de classes e cada discurso corresponde ao interesse de uma ou
outra classe em luta (VIANA, 2007c, p. 30 – negritos nossos).
O discurso é produto
das relações sociais e essas são relações entre as classes sociais, logo o
discurso é sempre o discurso de alguém, o discurso de uma classe social. As
determinações do discurso, assim como de toda realidade social, são múltiplas,
apesar disso sua determinação fundamental é o contexto social e cultural no
qual ele emerge. Dessa forma, coexistem diversos discursos de indivíduos,
grupos e classes sociais diversas. Eles são compostos pela estrutura e conjuntura e
essas possuem nos termos, palavras, noções e conceitos suas unidades
constitutivas. Em sua estrutura ocorre uma articulação entre os termos e em sua
conjuntura os termos podem se encontrar desarticulados. Enquanto a estrutura do
discurso é unissêmica, a conjuntura é polissêmica, podendo ou não ser coerente
com sua estrutura. A depender do grau de articulação e organização de um
discurso, ou melhor, do seu produtor, podem predominar a estrutura ou a
conjuntura.
Enquanto as palavras
estruturantes de um discurso se encontram na sua articulação interna, seus
sentidos conjunturais remetem ao papel que desempenham em sua totalidade. A
realização de um estudo semântico com vistas a compreender o significado das
palavras exige que se remeta ao contexto
discursivo na qual ela se encontra. Em síntese, para se compreender a
unidade de um discurso é necessário compreender sua totalidade e vice-versa. O
estudo das unidades do discurso remete à semântica e o estudo da totalidade
(estrutura e conjuntura) do discurso remete à análise do discurso e, juntos, se
complementam e oferecem ferramentas essências para o estudo da linguagem
(comunicação, informação etc.).
É importante destacar,
como faz Viana (2007c), que sendo o discurso estruturado em um contexto social
e cultural atravessado pela luta de classes, seu estudo exige a compreensão de
uma totalidade maior, ou seja, a totalidade da sociedade no qual ele é
produzido e determinado, quer dizer a dinâmica da luta de classes na sociedade.
Aqui temos um aspecto especial para a compreensão da relação entre discurso e
poder, pois todo discurso decisivamente carrega em sua estrutura os valores e
perspectivas do seu produtor e essa estrutura constitui seu conteúdo, já sua
conjuntura é constituída pelos elementos da linguagem que auxiliam sua
transmissão. Então, podemos concluir que a luta de classes existente no
discurso é manifestação da dinâmica da luta de classes, que no capitalismo é
marcada pela supremacia burguesa e se manifesta sob diversas formas.
A discussão realizada
pelo freudomarxista Erich Fromm (1975), sobre o caráter social, proporciona uma análise interessantíssima a
respeito de como esse caráter condiciona o comportamento social (pensamento e
ação), levando os indivíduos a reproduzirem da forma mais adequada possível o
funcionamento da sociedade; para isso é importante que os pensamentos e
sentimentos passem por um filtro social
com o objetivo de controlar e impedir o avanço da consciência para fora dos
domínios capitalistas:
o caráter social, que faz as pessoas agirem e
pensarem do ponto de vista do funcionamento adequado de sua sociedade, é apenas
um elo entre a estrutura social e as ideias. O outro está no fato de que cada
sociedade determina os pensamentos e sentimentos que poderão atingir o nível de
consciência e os que terão de permanecer inconscientes. Tal como há um caráter
social, há também um inconsciente social.
Por inconsciente social entendemos as áreas de repressão comuns à maioria dos
membros de uma sociedade; os elementos habitualmente reprimidos são aqueles de
cujo conteúdo a sociedade não deve permitir que seus membros tenham
consciência, para que possa, com suas contradições específicas, funcionar com
êxito (FROMM, 1975, p. 86).
A existência do filtro
social, ao qual Fromm (1975) faz referência nessa discussão, demonstra que nas
sociedades classistas existe uma seleção daquilo que se pode ou não tornar-se
consciente por parte dos indivíduos pertencentes a essas sociedades. Nesse sentido,
o filtro social atua como um dispositivo que determina que tipo de discurso
deva ser afirmado e que tipo deva ser negado, isto é, existe uma seleção e
repressão do que pode ou não ser dito, um caráter coercitivo e repressivo da
linguagem e do discurso. O autor aponta três elementos que, segundo ele, forma
o filtro social: o sistema conceptual, a lógica e os tabus sociais.
Para que uma
experiência se torne consciente é necessária que seja compreendida no interior
de um sistema conceptual e categórico nos quais o indivíduo esta inserido, pois
todo modo de vida desenvolve seu sistema de percepção (consciência) e esse
“trabalha, por assim dizer, como um filtro
socialmente condicionado: a experiência não pode atingir a consciência se
não atravessar esse filtro [...] De modo geral, podemos dizer que raramente
atinge a consciência a experiência para a qual a língua não dispõe palavras”
(FROMM, 1975, p. 110). Outros elementos seletivos e repressivos da linguagem
são formados pela sintaxe, gramática e etimologia das palavras. A lógica forma
o segundo elemento que compõe o filtro, pois em toda sociedade existe uma
lógica que comanda a consciência dos indivíduos e que é considerada natural e
universal; fazendo com que o princípio da identificação predomine e, ao mesmo
tempo, obscureça o princípio da contradição (VIANA, 2007c). O terceiro elemento
do filtro social é fornecido pelo tabu social. Dentre os três elementos, Fromm
destaca que esse é o mais importante, visto que os tabus sociais não permite
que determinados sentimentos e ideias cheguem à consciência real e procura
expulsá-los. Os tabus sociais tratam determinadas ideias como sendo perigosas,
proibidas e impróprias. Por isso a repressão das mesmas deve ocorrer para
evitar que a haja conscientização dos indivíduos. O processo de repressão e
censura da consciência é algo concreto e cotidiano na sociedade capitalista.
Está presente nas formas de discursos existentes e dificulta bastante a
manifestação de um discurso alternativo ao dominante. Uma vez que o poder da
classe dominante está presente em todas as instituições burguesas, percebe-se
que essa domina e controla a produção discursiva na sociedade.
Os Estudos Críticos do Discurso (VAN DIJK,
2015), com uma linguagem bem distinta da nossa, apresentam elementos
consideráveis para a compreensão da relação discurso/poder na sociedade
contemporânea. Por isso, vale a pena retomar algumas de suas contribuições.
Nesse trabalho, ainda não será possível contestar o conjunto de termos
utilizados por tais estudos, assim nos contentaremos em recorrer, em algumas
ocasiões, às notas de rodapé e parênteses para apresentar os conceitos que
achamos mais apropriado para esse ou aquele termo utilizado por esses estudos.
Em sua discussão sobre
o controle do discurso e modos de reprodução
discursiva, Van Dijk (2015) salienta que uma condição fundamental para a
prática do controle social através do discurso está no controle do próprio
discurso e na sua produção. Dito isto, pode-se questionar: quem pode discursar,
o que, para quem e em quais situações? Quem tem acesso à produção discursiva e
seus meios de reprodução? Onde são produzidos os discursos?
As classes exploradas
possuem infinitamente menores possibilidades de acessar a produção de discursos
(escrita, fala) em quase todos os espaços sociais, principalmente porque os locus de produção dos discursos são
controlados pela classe dominante, especialmente pela burguesia comunicacional
que, juntamente, com as demais classes e grupos sociais que compõe o bloco
dominante, monopolizam a produção comunicacional:
os grupos mais poderosos (bloco dominante) e seus
membros controlam ou têm acesso a uma gama cada vez mais ampla e variada de
papéis, gêneros, oportunidades e estilos de discurso. Eles controlam os
diálogos formais com subordinados, presidem reuniões, promulgam ordens ou leis,
escrevem (ou mandam escrever) vários tipos de relatório, livros, instruções,
histórias e vários outros discursos dos meios de comunicação de massa (capital
comunicacional). Não são apenas falantes ativos na maior parte das situações,
mas tomam a inicitavia em encontros verbais ou nos discursos públicos,
determinam o “tom” ou o estilo da escrita ou da fala, determinam seus assuntos
e decidem quem será participante e quem será receptor de seus discursos. Deve-se
ressaltar que o poder não apenas aparece “nos” ou “por meio dos” discursos, mas
também que é relevante como força societal “por detrás” dos discursos. Nesse
momento, a relação entre discurso e poder é próxima e constitui uma
manifestação bastante direta do poder da classe, do grupo ou da instituição e
da posição ou status relativos de
seus membros (VAN DIJK, 2015, p. 44 – parênteses nossos).
A produção dos
discursos jornalísticos é controlada pela burguesia comunicacional em nome dos
interesses do bloco dominante, através do trabalho da intelectualidade e da
burocracia que atua na produção dos discursos para o capital comunicacional.
Tais indivíduos possuem uma relativa liberdade e, consequentemente, poder para
decidir sobre os tipos e gêneros de discursos a serem veiculados, os estilos e
formas de apresentação de determinados discursos sobre determinadas realidades
sociais etc. O poder comunicacional detém o poder de influenciar a sociedade,
determinando a agenda da discussão pública, a relevância dos tópicos, a
quantidade e qualidade da informação, os valores destacados para o público etc.
Ele, juntamente com o bloco dominante, é o produtor do conhecimento, dos
padrões morais, do comportamento, das crenças, atitudes, normas e das
ideologias. Nesse sentido, o poder comunicacional exerce o controle e a
dominação social por meio da cultura.
O capital
comunicacional, na sua forma jornalística impressa, exerce o controle do
conhecimento através de diversas estratégias, tais como a seleção restritiva de
assuntos, ocultação das informações que contrariam seus objetivos, através da
reconstrução parcial das realidades sociais, políticas e econômicas. Tal
processo é guiado por um sistema axiológico típico da profissão jornalística
que define o que deve ou não ser notícia e como ser noticiado, direcionando o
foco e o interesse das notícias para os membros das classes auxiliares, tal
como a burocracia estatal e governamental que, principalmente em contextos de
radicalização da luta de classes, tendem a monopolizar o discurso sobre a
realidade, apresentando-o de forma unilateral, ocultando assim as verdadeiras
razões das lutas sociais, das condições de vida dos que contestam a sociedade,
bem como apresentando explicações metafísicas[10]
para os problemas sociais, criminalizando os contestadores, construindo
inimigos imaginários (guerrilheiros, terroristas, delinquentes, vândalos etc.)
abusando de metáforas e expressões negativas e ameaçadoras (exército de
ilegais, maré/onda de imigrantes, parasitas, violentos, duros) etc.
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[1] O termo perspectiva
aqui aponta para a questão do ponto de
vista, do modo de ver, isto é,
existe o que é visto (sociedade capitalista) e sob que ponto de vista se vê
(perspectiva burguesa e perspectiva proletária, fundamentalmente). Por isso,
podemos falar de visão de classe, ponto de vista de classe, que “é
perpassado por uma mentalidade e é facilitado e incentivado pelo processo
histórico real, bem como pela posição que o indivíduo ocupa nessa sociedade. A
posição que um indivíduo ocupa numa dada sociedade se refere à qual classe ele
pertence ou a partir de qual perspectiva ele se coloca. Embora seja raro, é
possível um indivíduo de uma classe partir da perspectiva de outra, o que não o
livra da possibilidade de mesclar perspectivas diferentes, ameaçando, assim, no
caso do proletariado, a possibilidade de uma visão correta da realidade em sua
totalidade. A perspectiva do proletariado, então, é a perspectiva de uma classe
social determinada e que expressa como ela vê a sociedade a partir de sua
relação com ela. Essa perspectiva, segundo Marx, marcaria a unidade entre o que é visto e a forma como se vê. A
perspectiva de Marx busca ser essa
perspectiva de classe e é nesse sentido que se pode compreender sua obra”
(VIANA, 2007, p. 74-75).
[3] As representações
cotidianas são “expressão da vida cotidiana, a manifestação das atividades
cotidianas dos indivíduos não apenas em seu repertório temático (determinado
por uma forma concreta de sociabilidade) mas também em sua forma de expressão,
marcada pela naturalização, simplificação e regularidade” (VIANA, 2008a, p.
113-114).
[4] “Um padrão é, de
certa forma, uma configuração, uma forma. Um padrão dominante é aquele que
possui uma supremacia sobre outros padrões. Um padrão dominante de valores é,
então, um padrão de valores que possui supremacia sobre outros padrões de
valores. Uma configuração é uma determinada forma que assume os valores
dominantes, que são os valores da classe dominante. Os valores dominantes podem
assumir diferentes configurações, mas conservam sempre os valores fundamentais
correspondentes aos interesses da classe dominante. É por isso que a axiologia
é uma determinada configuração dos valores dominantes” (VIANA, 2007d, p. 33).
[5] Sobre o bloco dominante
e a ideia de blocos sociais, conferir nesse número da Revista Enfrentamento o
artigo de Viana (2015a).
[7] De acordo com
Mandosio, em 1965 Foucault “integra o jurí da École Nationale d’Administration,
viveiro da alta burocracia francesa, e participa (como membro de uma comissão)
da reforma da Universidade lançada pelo ministro Christian Fouchet, que entrará
em vigor em 1967 – ‘um dos grandes projetos do gaullismo e mais particularmente
de Georges Pompidou, o ‘Primeiro Ministro’, lembra Didier Éribon, informando
que ‘Foucault levou muito a sério sua participação no estabelecimento da
reforma’. Chegam a lhe oferecer o posto de subdiretor de ensino superior no
Ministério da Educação Nacional. Esta proposta, que ele havia aceitado, não
chegou a lugar nenhum devido a uma campanha orquestrada contra ele por conta de
suas preferências sexuais” (MANDOSIO, 2011, p. 41).
[8] Viana sintetiza essa crítica afirmando que “a
discussão de Foucault sobre os intelectuais e o poder apenas revela o vínculo
deste intelectual com as relações de poder expressa em sua ideologia, o que
apenas manifesta a relação concreta que outros já demonstraram (Mandosio,
2011). A ideia de um intelectual específico em substituição ao intelectual
universal é apenas a forma contemporânea assumida por uma das formas da
ideologia dominante no sentido de desmobilizar e retirar o compromisso que
alguns intelectuais tinham com a luta proletária e pela emancipação humana.
Porém, também tem o papel de legitimar e justificar um microrreformismo e a
desarticulação das lutas sociais em geral. No fundo, ambas as coisas provocam
uma tentativa de isolar o proletariado em sua luta pela transformação social,
pois busca afastar os intelectuais e demais grupos explorados e oprimidos de
uma luta mais geral e articulada, gerando a fragmentação, o isolamento, além de
produzir ideologias que reforçam isso (e faz isto dizendo que está fazendo
justamente o contrário). O Maio de 68 é o grande fantasma que essa ideologia
busca esconjurar” (VIANA, 2013a, p. 58).
[9] Chega a beirar o
cinismo a “coincidência” da discussão que Foucault realiza sobre o poder, sua
definição apontando para o poder como um exercício no qual ninguém é seu
titular, não se sabe quem o detém, ele é relação, logo não se encontra em um
único local/instituição etc., com o mesmo período em que ele se aproximava e
flertava com o do poder do estado, almejando o poder de suas instituições etc.
O que pode ser interpretado como uma estratégia desse intelectual para se auto
camuflar e ocultar seus vínculos com o poder, assim como o serviço seus
serviços prestados a ele.
[10] Como exemplo de tais
“explicações”, poderíamos citar as duas notícias veiculadas pelo Jornal Clarín
(Buenos Aires, Argentina), sobre o fuzilamento de contestadores sociais, em
dois episódios de repressão ao movimento piqueteiro. Tanto o fuzilamento de
Tereza Rodriguéz em Neuquén (1997), quanto o fuzilamento de Darío Santillán e
Maximiliano Kosteki na Grande Buenos Aires (2002), foram apresentados, com
destaque na capa dos seus jornais, como de responsabilidade da crise social: “a
crise já produziu uma morte” e, posteriormente, “a crise causou duas novas
mortes”.