EDITORIAL
Esse blog tem como propósito divulgar as produções teóricas e outras ações de Lisandro Braga e outros marxistas autogestionários. O objetivo fundamental é a promoção de uma luta cultural revolucionária, radical.
Música para o Espírito
sexta-feira, 24 de julho de 2015
quinta-feira, 23 de julho de 2015
TERRY EAGLETON CONTRA OS PÓS-MODERNOS: A IRONIA DE UMA CRÍTICA CORROSIVA.
Terry
Eagleton contra os pós-modernos: a ironia de uma crítica corrosiva.
Lisandro Braga[1].
O pós-modernismo
crê que alguém
inventou sem
fundamento algum
a proposição de
que é possível
“explicar”
alguma coisa.
Júlio Aróstegui
Resumo: No presente
artigo pretendemos analisar a produção teórica de Terry Eagleton acerca do
pós-modernismo e sua vertente culturalista. Para isso utilizaremos,
fundamentalmente, duas de suas principais obras, As ilusões do pós-modernismo (1998) e Depois da teoria – Um olhar sobre os estudos culturais e o
pós-modernismo (2005), que foram
dedicadas a desmascarar, com requintes de ironia e corrosão, as ilusões
estéreis desse movimento cultural que, segundo Viana (2009), expressa uma
contra-revolução cultural preventiva.
Palavras-chave: Modernidade,
crise de acumulação, pós-modernismo, ideologia e luta de classes.
Abstract: In this article we intend to analyze the theoretical production of
Terry Eagleton on the post-modernism and its cultural. To do this we will use
essentially two of his major works, The Illusions of Postmodernism (1998) and
After Theory – a look at the cultural studies and postmodernism (2005), who
were dedicated to exposing, with touches of irony and corrosion, the sterile
illusions of cultural movement that, according to Marcuse (1981) express a
preventive counter-revolution or, as prefer Viana (2009), a preventive
counter-cultural revolution.
Key-works: Modernity, crisis of accumulation, post-modernism, ideology and struggle
class.
O que é a modernidade?
Em que consiste a pós-modernidade e o pós-modernismo? Em que contexto histórico
o pós-modernismo emerge, que relação orgânica possui com tal contexto e que
interesses e necessidades visa atender? Essas são questões que ao longo desse
capítulo buscaremos respostas e, juntamente, com essas apresentaremos os
principais argumentos e críticas de Terry Eagleton.
A modernidade equivale ao resultado final de
um amplo processo histórico de transição do feudalismo para o capitalismo, ou
seja, denominamos de modernidade a totalidade das relações sociais existentes
no modo de produção capitalista que tem como determinação fundamental a
produção de mercadorias, que corresponde na essência à produção e expropriação
de mais-valor. Portanto, nessa relação de produção e expropriação prevalece a
exploração de uma classe social sobre outra e, conseqüentemente, a luta contra
a exploração. Vejamos, então, como se dá essa relação de exploração e a luta de
classes na modernidade.
As duas principais
classes sociais da modernidade são a burguesia e o proletariado. Da relação
entre essas classes é que deriva a produção de mais-valor. Para lucrar no
processo de produção de mercadorias a burguesia necessita extrair do trabalho
do proletariado, além do suficiente para repor os custos da produção
(matérias-primas, desenvolvimento tecnológico, maquinaria, salários e etc),
algo a mais que corresponda a todo trabalho exercido pelo mesmo no qual ele não
recebe, pois, é expropriado pela burguesia. Constata que
a produção de
capital (mais-valor convertido em lucro) é formada por dois componentes
existentes no processo de produção denominados de trabalho morto (matéria-prima, maquinaria e tecnologia em geral) e trabalho vivo que consiste na força de
trabalho operária. O primeiro não tem capacidade de gerar valor e apenas
repassa seus custos durante o processo produtivo, já o segundo é a única força
geradora de capital, ou seja, acrescenta à mercadoria mais do que o valor gasto
na sua produção. Por isso esse capital extra é denominado mais-valor (Braga, 2010,
p. 06).
A produção de
mercadorias consiste em um processo de acréscimo de valor, no entanto, sua
consolidação não ocorre na produção, mas sim no mercado, no consumo das
mercadorias. Numa sociedade fundamentada em relações sociais mercantilizadas,
como a sociedade moderna, a produção de mais-valor é seu fundamento e revela a
essência da exploração capitalista. Sendo assim,
O que
caracteriza a modernidade? Podemos dizer que é a mercadoria, tal como é
produzida em nossa sociedade. A produção capitalista de mercadorias revela uma
relação de exploração e dominação de uma classe social sobre outra. O processo
capitalista de produção de mercadorias é um processo de produção de mais-valor,
tal como demonstrou Marx (Viana, 2009a, p. 25).
Vale ressaltar que a relação
entre burguesia e proletariado na modernidade é marcada pelo conflito entre os
diversos interesses antagônicos dessas duas classes. A afirmação do capital
realiza-se na negação do proletariado uma vez que este, no processo de
produção, desempenha atividades alheias às suas necessidades, não atinge
através de suas potencialidades sua auto-realização total, encontra-se
completamente separado dos produtos do seu trabalho e, dessa forma, sofrendo um
processo de estranhamento. Segundo Marx,
O trabalhador só
se sente, por conseguinte e em primeiro lugar junto a si fora do trabalho e
fora de si no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha,
não está em casa. O seu trabalho não é, portanto, voluntário, mas forçado,
trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência,
mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. Sua estranheza
evidencia-se aqui tão pura que, tão logo inexista coerção física ou outra
qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste. O trabalho externo, o trabalho
no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto-sacrifício, de
mortificação. Finalmente, a externalidade do trabalho aparece para o
trabalhador como se não fosse seu próprio, mas de um outro, como se não lhe
pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a um outro
(2004, p. 83).
Por conta desse caráter
alienado do trabalho, o proletariado procura incessantemente encontrar formas
que garantam o mínimo da sua integridade física no trabalho e isso se evidencia
nas inúmeras possibilidades e maneiras de resistência e luta contra a opressão
do capital. Essas atitudes de resistência ocorrem de diversas formas, tais como
as mais pacíficas e camufladas como a “operação tartaruga”, o absenteísmo, o
atraso nos locais de trabalho, a destruição de peças e ferramentas que emperram
o desenrolar da produção, as constantes idas ao banheiro e sua demora etc.
Além dessas formas
imediatas, as lutas contra a exploração do trabalho tendem a adquirir em
momentos de crise e de radicalidade, uma postura mais nitidamente política[2],
tal como é perceptível nos processos de realização de greves que atingem
caráter geral, com a ocupação de fábricas e auto-organização da produção, no
qual o proletariado deixa de ser uma “classe em si” para se tornar uma “classe
para si”. Essa dinâmica acompanha o
desenvolvimento capitalista desde o seu nascimento até os dias atuais e
inúmeros exemplos históricos poderiam ser citados: As revoluções de 1848 na
Europa, a Comuna de Paris em 1871, as experiências russas a partir dos sovietes
em 1905 e 1917, a revolução alemã nas décadas de 1920, a ocupação de fábricas
na Argentina do final da década de 1990 até aproximadamente 2004 e assim por
diante. Essa é uma tendência intrínseca ao modo de produção capitalista.
Um amplo debate
sociológico já existe em torno dessa mudança de postura do proletariado, porém
não é nosso interesse resgatar tal debate, mas tão somente apresentá-lo segundo
a perspectiva do proletariado, ou seja, procurando compreender quem é essa
classe social, como se relaciona com a sociedade capitalista (modernidade) e
como enxerga tal sociedade a partir da experiência que mantém com a mesma. Em
síntese “essa
perspectiva, segundo Marx, marcaria a unidade entre o que é visto e a forma como
se vê” (Viana, 2007, p. 75).
A análise que Marx
realiza sobre o proletariado consiste em uma análise sobre a ontologia do
proletariado, sobre sua essência e não sua aparência. Sendo assim, é possível
encontrar na teoria de Marx uma análise sobre o ser-do-proletariado, conforme
explicitado na seguinte passagem:
“não se trata de
saber que objetivo este ou aquele proletário, ou até o proletariado inteiro,
tem momentaneamente. Trata-se de saber o que é o proletariado e o que ele será
historicamente obrigado a fazer de acordo com este ser” (Marx & Engels Apud
Viana, 2008, p. 59).
Nesse sentido, a
resistência implementada pelo proletariado não visa apenas adquirir, de
imediato, melhores condições de trabalho e vida, mas, também, a abolição do
trabalho alienado em sua totalidade. Nesse processo histórico de luta o
proletariado forma sua consciência de classe, constrói suas estratégias de
lutas, abandona as estratégias ultrapassadas e forja novos mecanismos de
resistência e avanço da luta em direção à construção daquilo que Marx denominou
de “livre associação de produtores”, ou seja, uma sociedade na qual o
proletariado deixa de ser hetero-determinado (consciência de si), e se torna
auto-determinado (consciência para si) a partir do enfrentamento. Portanto, a luta
de classes, assim como a produção de mais-valor, representa dois dos
fundamentos essenciais da modernidade.
Além dessas duas
principais características da modernidade, coexistem diversas outras
características secundárias que derivam do seu fundamento, tais como:
racionalização da produção, competição capitalista, avanço tecnológico,
burocratização social, propaganda e marketing, fetichismo da mercadoria,
consumismo, mercantilização das relações sociais, produção cultural ideológica,
luta de classes nas esferas intelectuais e culturais etc. Várias outras
características existem, no entanto, para o propósito desse artigo essas nos
parecem suficientes.
Em termos metodológicos
toda essa discussão remete às categorias centrais da teoria marxista:
totalidade e determinação fundamental. A totalidade refere-se à sociedade
moderna como um todo, suas múltiplas determinações inter-relacionadas que o
envolvem, mas que possui uma determinação fundamental na qual todas as demais
se baseiam que consiste no modo de produção capitalista e toda sua dinâmica
revelada na produção de mercadorias.
Vale lembrar que um dos fundamentos do pós-modernismo está na negação dessas
categorias enquanto ferramenta metodológica para se compreender a realidade
social.
Depois de caracterizar
a modernidade, iremos a partir de agora apresentar o que é a pós-modernidade e
o pós-modernismo, segundo seus arautos e, posteriormente, ofereceremos as
análises feitas por Terry Eagleton e suas principais críticas endereçadas aos
intelectuais pós-modernos e suas ilusões, conforme afirma o título de uma das
suas principais obras: As ilusões do
pós-modernismo (1998).
Vale advertir que, devido aos limites e
propósitos desse texto, ou seja, a crítica de Terry Eagleton aos pós-modernos,
a mesma é realizada de forma geral, pois não realizamos nenhuma análise
aprofundada sobre as concepções específicas de determinados autores
pós-modernos, nem tão pouco às singularidades de suas obras. Contentamo-nos em
promover uma análise geral sobre tais autores, pautada por aquilo que os
aproxima, mesmo sabendo que não há homogeneidade na caracterização do
pós-modernismo, assim como no modernismo. Igualmente, a análise de Eagleton
sobre tais ideólogos, e que é tema central desse artigo, se procede da mesma
forma.
Assim como ocorreu com
o marxismo – e ainda ocorre -, inúmeras foram as vezes que a modernidade teve
sua morte decretada. De acordo com Ellen Meiksins Wood, no período que abrange
a I Guerra Mundial, Oswald Spengler inaugura essa tese ao escrever sua
conhecida obra A decadência do Ocidente (1918)
na qual proclamava o fim dos valores dominantes da cultura ocidental (a
modernidade), visto que “os laços e
tradições que mantinham coesa a sociedade estavam apodrecendo, e as
solidariedades da vida se desintegravam, juntamente com a unidade de pensamento
e cultura” (Wood, 1999, p.
07).
Nessa mesma perspectiva, ainda na década de
1950, C. Wright Mills afirmou ter chegado ao fim a era moderna e que a mesma “está sendo substituída pelo período pós-moderno”
(Mills apud Wood, 1999, p. 07). Segundo Mills, a crença
no progresso da razão e da liberdade derivada do iluminismo, juntamente com
suas principais ideologias – o liberalismo e o socialismo –, haviam se
esgotado.
No caso de Mills, havia
todo um contexto “favorável” a essa crença, pois a década de 1950 foi marcada
por um período de grande prosperidade do capitalismo no qual o desemprego
praticamente havia sumido, as legislações trabalhistas haviam sido criadas, a
ocorrência de um aumento significativo dos salários, do consumo e etc. Em suma
tal período coincide com o período de instalação do Estado do
“bem-estar-social” que motivou milhares de teóricos e estudantes universitários
a acreditarem que todos os males derivados do capitalismo teriam se erradicado.
Juntamente com essa
pseudo-erradicação[3]
dos principais males da sociedade capitalista, nasce, também, a ideologia do
fim da classe operária. Tal ideologia não é homogênea, visto que para alguns
tal tese se confirma pela expansão dos setores de serviços em detrimento do
setor industrial (Offe, 1989) enquanto para outros a explicação passa pelo fim
da utopia da sociedade do trabalho (Habermas, 1987). Vários outros autores, com
explicações diferenciadas, concordaram com essa tese, dentre eles podemos citar
Gorz, Foucault, Touraine e outros mais. No fundo o que tais ideologias possuem
em comum é o fato das mesmas buscarem “ofuscar
o marxismo e criar novas ideologias substitutas, para facilitar, assim, o
processo de dominação e reprodução do capital (Viana, 2009, p. 171). É
nesse clima de contestação das principais bases teórico-explicativas da
modernidade - podendo aqui ser entendida enquanto sinônimo de marxismo - que
surgem os primeiros anunciadores do fim da modernidade e início da
pós-modernidade.
Mas “de onde vêm os
pós-modernistas”? Poderíamos responder dizendo que os mesmos são oriundos do
final da década de 60 e início da década de 70, período marcado pela crise de
acumulação capitalista que é decorrente da tendência declinante da taxa de
lucro – que caminha com o capitalismo tal como suas necessidades de maximização
dos lucros, como diria Marx, com sorriso irônico: crise insolúvel – da ascensão
das lutas sociais e do questionamento da sociedade burguesa que em determinados
momentos adquiriu coeficientes de radicalidade. O maio de 68 assim como o
movimento de contracultura, o pacifismo e outros foram exemplos disso.
Juntamente com a
ascensão do movimento operário e de outros movimentos radicais, vários
intelectuais críticos são resgatados fomentando e acirrando as lutas. Tudo isso
acabou contribuindo para a reflexão sobre os problemas que afetavam vários
grupos sociais da época (estudantes, operários, mulheres, negros
norte-americanos, os marginalizados e etc). Assim, diversas temáticas
(cotidianidade, indústria cultural, razão instrumental, movimentos sociais,
marginalidade etc) passam a ser valorizadas e não mais desprezadas pela
intelectualidade. Porém, devido à intensa repressão capitalista aos movimentos
mais radicalizados, a inexistência de uma estratégia revolucionária e uma série
de outras determinações, ocorre o refluxo desse movimento denominado de Maio de
68 e juntamente com ele reinstala a normalidade capitalista.
É nesse contexto que nasce o pós-modernismo
como uma reação cultural ao movimento contestador, incorporando às suas
análises os temas anteriormente citados, porém de forma despolitizada,
fragmentada e com total desprezo pela totalidade das relações sociais. Conforme
afirma Viana, o pós-modernismo
retoma, isolando e despolitizando, os temas
das lutas operárias e estudantis do final da década de 60, quando houve uma
ascensão das lutas sociais e das concepções revolucionárias que se opuseram ao
conservadorismo, reformismo e crítica resignada existente (2009a, p. 32).
Com o propósito de
valorizar os aspectos da vida cotidiana das pessoas comuns ao invés de análises
totalizantes como a que valoriza o conhecimento sobre as relações entre classes
sociais e suas lutas emancipatórias, os estudos culturais pós-moderno tem cada
vez mais promovido uma total despolitização da vida social. Terry Eagleton se
posiciona de forma bastante crítica contra essa despolitização que por si só
expressa interesses políticos e de classes. Uma das maiores características de
sua escrita consiste na ironia de uma
crítica corrosiva que pode ser percebida em todos os seus principais textos
sobre o pós-modernismo e os estudos culturais.
Não é difícil encontrar adeptos dessa vertente
culturalista pós-moderna tentando justificar suas opções por determinadas
temáticas, diga-se de passagem, fúteis e apolíticas, sob a alegação do prazer
maior em pesquisá-las. É como se fosse uma obrigação ter prazer no ato da
investigação. Talvez seja por isso que
em
alguns círculos culturais, a política da masturbação exerce fascínio muito
maior do que a política do Oriente Médio.
O socialismo perdeu lugar para o sadomasoquismo. Entre estudantes da
cultura, o corpo é um tópico imensamente chique, na moda, mas em geral, o corpo
erótico, não o esfomeado. Há um profundo interesse por corpos acasalados, mas
não pelos corpos trabalhadores. Estudantes de classe média e de fala mansa
amontoam-se diligentemente nas bibliotecas para trabalhar com temas
sensacionalistas como vampirismo e arranca-olho, seres biônicos e filmes pornôs
(...) é parecido com escrever sua tese de mestrado comparando diferentes
sabores de uísques maltados ou sobre a fenomenologia de um dia passado na cama.
Isso cria uma continuidade entre o intelecto e a vida cotidiana (...) questões
intelectuais já não são mais uma assunto tratado nas torres de marfim, mas
fazem parte do mundo da mídia e dos shoppings centers, dos quartos de dormi e
dos motéis. Como tal, elas retornam ao domínio da vida cotidiana – mas só sob a
condição de correrem o risco de perder a habilidade de criticar essa mesma
vida. (Eagleton, 2005, p. 15).
Em sua obra As ilusões do pós-modernismo (1998),
Terry Eagleton diferencia pós-modernidade de pós-modernismo. Para ele,
A palavra
pós-modernismo refere-se em geral a uma forma de cultura contemporânea,
enquanto o termo pós-modernidade alude a um período histórico específico.
Pós-modernidade é uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de
verdade, razão, identidade e objetividade, a idéia de progresso ou emancipação
universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os fundamentos
definitivos de explicação. Contrariando essas normas do iluminismo, vê o mundo
como contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível, um conjunto de
culturas ou interpretações desunidas gerando um certo grau de ceticismo em
relação à objetividade da verdade, da história e das normas, em relação às idiossincrasias e a coerência de identidades.
Essa maneira de ver, como sustentam alguns, baseia-se em circunstâncias
concretas: ela emerge da mudança histórica ocorrida no Ocidente para uma nova
forma de capitalismo – para o mundo efêmero e descentralizado da tecnologia, do
consumismo e da indústria cultural, no qual as indústrias de serviços, finanças
e informação triunfam sobre a produção tradicional, e a política clássica de
classes cede terreno a uma série difusa de “políticas de identidade”.
Pós-modernismo é um estilo de cultura que reflete um pouco essa mudança
memorável por meio de uma arte superficial, descentrada, infundada,
auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética e pluralista, que obscurece as
fronteiras entre cultura “elitista” e a cultura “popular”, bem como entre a
arte e a experiência cotidiana (1998, p. 07).
Na introdução dessa
obra Eagleton esclarece que optou,
mesmo sabendo da imensa heterogeneidade que compõe o pós-modernismo, em
unificar tanto o período histórico (pós-modernidade) quanto à sua cultura
dominante (pós-modernismo) no próprio conceito de pós-modernismo. Portanto,
esse foi utilizado para designar as duas coisas. Ele afirma, também, que toda a
sua análise sobre o pós-modernismo parte de premissas essencialmente
socialistas.
A derrota da esquerda
nas lutas das décadas de 1960/1970 deixou grande parte da intelectualidade órfã
de um projeto alternativo de sociedade e instalou uma completa desilusão quanto
a qualquer possibilidade palpável de mudança social e combate ao sistema
capitalista. Mais do que isso, a partir daí o desânimo e a desesperança chegou
ao ápice da descrença ao colocar em xeque a própria possibilidade de
compreensão da realidade, quanto mais de sua transformação. O máximo possível
seria a busca pela compreensão de micro-esferas do real, a construção de
solidariedades de grupos fragmentados exigindo micro-reformas gradativas a
partir de uma infinidade de identidades fluídas e que não mais se relacionavam
com a totalidade, se é que é possível falar da existência da mesma segundo os
pós-modernos. Para Eagleton,
a
base histórica dessa crença reside na falência temporária dos movimentos
políticos concomitantemente de massa, de centro e produtivos; mas tal fato não
basta para que uma análise do ponto de vista histórico proceda à generalização
que transforma essa crença em doutrina universal. Adotariam essa teoria os que
eram jovens demais para lembrar de uma política de massa radical, mas que
tiveram suficientes experiências desastrosas e funestas com as maiorias
opressivas (1998, p. 13).
Daí pra frente os temas
dominantes no universo intelectual acadêmico estariam mais interessados em
discutir o supérfluo, o detrito ao invés do totalizante e do concreto. Até
mesmo porque as noções clássicas de verdade, razão, liberdade, essência,
emancipação e conhecimento da realidade não passavam, segundo os pós-modernos,
de meta-relatos filosóficos, construções lingüísticas, apenas discursos. Essa
última palavra passaria a servir de amuleto para descaracterizar qualquer
pesquisa compromissada em desmascarar as relações de opressão pautada pela
determinação fundamental existente, ontologicamente e não aparentemente, na
relação capital/trabalho. Em um período como esse não é de surpreender que “palestras
intituladas ‘restituindo o ânus a Coriolanus’
atrairiam hordas de acólitos excitados, pouco versados em burguesia mas
muito em sodomia” (Ibid, 1998, p. 13).
Sem
sombra de dúvidas, boa parte da crítica pós-moderna aos referenciais
metodológicos e teóricos da modernidade é endereçada ao marxismo, pois é nele
que as concepções mais radicais dos movimentos de contestação do final da
década de 60 buscavam se fundamentar e é primordialmente contra ele que a
“contra-revolução cultural preventiva” (Viana, 2009) buscava combater e
substituir. Portanto, cabe esclarecer em que consiste uma das principais
categorias analíticas do marxismo (a totalidade) para melhor compreender a
intensa recusa do pós-modernismo a essa categoria considerada como ineficaz e
ambiciosa demais.
Em
síntese podemos dizer que uma análise que parte da perspectiva da totalidade
não é exclusividade do marxismo, no entanto essa categoria na análise marxista
se distancia quilômetros e quilômetros das demais análises. De acordo com o
materialismo histórico-dialético a concepção de totalidade equivale ao que
abarca o todo, ou seja, a sociedade. No entanto, a sociedade é resultado de uma
síntese de múltiplas determinações (ex: políticas, culturais, sociais,
jurídicas, ideológicas e etc). Nesse sentido, a sociedade é composta por
diversas partes, mas dentre essas diversas partes existe uma que exerce
determinação fundamental: o modo de produção de determinada sociedade. Isso
equivale dizer que as inúmeras determinações da sociedade estão fundamentadas
no modo de produção capitalista, no caso da sociedade moderna.
Portanto,
compreender uma das determinações ou parte da sociedade capitalista remete
necessariamente à sua determinação fundamental, a forma como essa parte (micro)
está fundamentada no modo de produção. Logo, não há nenhum fenômeno social que
flutua acima da sociedade capitalista, nem mesmo a cultura como parece sugerir
a vertente culturalista do pós-modernismo que ao acusar o marxismo, de forma
equivocada, de promover um determinismo econômico, acaba por promover um
determinismo cultural uma vez que para esses
“agora é a
cultura, não Deus nem a Natureza, que é o fundamento do mundo. Não é, com
certeza, um fundamento dos mais estáveis, dado que as culturas mudam e há muita
variedade delas (...) Cultura, então, é um tipo acidentado de resultado final,
mas, ainda assim, um resultado final. Pega tudo, do começo ao fim. Em vez de
fazermos o que vem naturalmente, fazemos o que vem culturalmente (...) Cultura
é um conjunto de hábitos espontâneos tão profundos que não podemos nem ao menos
examiná-los. E isso, entre outras coisas, convenientemente os protege – nesse caso os culturalistas - de
críticas (Ibid, 2005, p. 90-91 – grifos meus).
Não
é à toa que a intelectualidade pós-moderna prefere, ao invés de partir da
totalidade, suas análises ditas desinteressadas e simplórias, pois
compreender uma
totalidade complexa envolve certo volume de uma análise rigorosa. Por isso
mesmo, não é de surpreender que um pensamento sistemático e árduo como este
esteja fora de moda e seja ignorado como fálico, cientificista ou qualquer
coisa no tipo de período que estamos imaginando. Se não há nele nada
particularmente que nos indique onde estamos – se somos um professor em Ithaca
ou Irvine, por exemplo – podemos nos dar o luxo de sermos ambíguos, evasivos,
deliciosamente vagos (Ibid, 1999, p. 26).
Nessa
passagem Eagleton demonstra como os fundamentos ideológicos do pós-modernismo
“encaixa como uma luva” para os interesses, valores e perspectivas de classe
dos pós-modernos, pois afirmar que nada pode ser compreendido a não ser meras
representações fragmentadas, que a verdade não passa de mera ambição da
intelectualidade dita radical e que o real nada mais é que um discurso entre os
vários possíveis e aceitos, acaba por isentá-los politicamente e mantê-los na
pseudo-neutralidade axiológica antes mesmo de pronunciar suas “perspectivas”,
pois
a suposição de
que qualquer crítica de interesses precisa ela mesma ser desinteressada mostra
como o pós-modernismo ainda está comprometido com seus ancestrais metafísicos.
Ocorre apenas que esses ancestrais acreditavam na possibilidade do
desinteresse, ao passo que os pós-modernistas não; fora isso, nada mudou. Se a
crítica fosse mesmo desinteressada, por que alguém ia perder tempo
praticando-a? Se para o pós-modernismo não podemos sujeitar nossos próprios
interesses e crenças a uma dose de crítica radical, isto se dá porque a crença,
ou o interesse, ou o discurso, agora elevou-se ao tipo de posição transcendental
já ocupado por uma subjetividade universal e, antes disso, por vários outros
candidatos que não aparentavam a menor qualificação para a função. Agora, os
interesses transcendentais, autovalidáveis, impérvios à crítica, e esta postura
decerto interessa alguém (...) uma vez que esse tipo de argumentação, que deixa
nossas crenças e investimentos sociais imunes a todas as ameaças radicais, nada
mais é que um verdadeiro discurso ideológico (Ibid, 1998, p. 44).
Deste modo,
Não buscar a
totalidade representa apenas um código para não se considerar o capitalismo.
Mas o ceticismo em relação às totalidades, de esquerda ou de direita, costuma
ser um tanto espúrio. Ele em geral acaba significando uma desconfiança de
certos tipos de totalidade e um endosso entusiasta de outros. Alguns tipos de
totalidade – prisões, patriarcado, o corpo, ordens políticas absolutistas – se
constituiriam tópicos aceitáveis de discussão, enquanto outros – modos de
produção, formações sociais, sistemas doutrinários – sofreriam uma censura
velada. (Ibid, 1998, p. 20)
Sem dúvida o marxismo
não se interessou pela análise de diversos fenômenos sociais, mas isso não
significa que seus referencias metodológicos devam ser descartados, nem tão
pouco que é responsabilidade do marxismo compreender absolutamente tudo, pois
não é exatamente esse o significado de totalidade para o marxismo. Em uma das
passagens da obra Depois da teoria – um
olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo (2005), Eagleton
comenta, de forma irônica e corrosiva, sobre essa confusão:
é
verdade, ainda assim, que o movimento comunista havia sido culpavelmente omisso
sobre algumas questões centrais. Mas o marxismo não é uma Filosofia da Vida ou
Segredo do Universo, e não se sente obrigado a pronunciar sobre qualquer coisa
entre como se sair bem abrindo um ovo quente e a maneira mais rápida de acabar
com piolhos em cocker spaniels. É uma descrição, grosso modo, de como um modo histórico de produção se transforma
num outro. Não é uma deficiência do marxismo que não tenha nada muito
interessante a dizer sobre a melhor maneira de fazer uma dieta – se com
exercício físico ou costurando as mandíbulas com arames. Nem tão pouco é um
defeito do feminismo ter-se calado até agora sobre o Triângulo das Bermudas.
Alguns dos que reprovam severamente o marxismo por não dizer o suficiente são
também alérgicos às grandes narrativas que tentam dizer demais (2005, p. 56).
Assim como as ciências
sociais sofreu um conjunto de transformações no início da década de 1970,
importantes mudanças ocorreram nos paradigmas da história. Segundo Aróstegui, a
partir dessa década surgem, primeiramente na América e logo depois na Europa,
vários questionamentos sobre a credibilidade das antigas doutrinas e
diagnósticos que dominaram as pesquisas sociais e historiográficas dos últimos
trinta anos. Para ele essa suposta crise paradigmática pode ser entendida como
um “esgotamento generalizado dos
paradigmas que durante essa época de esplendor haviam exercido uma influência
decisiva: o marxismo, o funcionalismo, o estruturalismo e, além disso, na
historiografia, o da escola dos annales” (Aróstegui, 2006, p. 175). Todas
essas correntes estavam fundamentadas na crença no poder da teoria, na eficácia
e superioridade de seus métodos.
O tipo de história
fundamentada nesses paradigmas gera repulsa para os pós-modernos que a partir
de então passam a apostar em projetos menos ambiciosos. Para eles a história
com H maiúsculo consiste em teleologia pura, uma vez que apresenta sua direção
rumo ao progresso. Contradições a parte, a ambição, nada modesta, dos
pós-modernistas era de oferecer novos fundamentos alternativos ao marxismo, que
passava a sofrer a acusação de ser progressista, evolucionista, essencialista,
economicista e etc. Todas essas acusações são inteiramente questionáveis,
dependendo do significado que tais acusações adquiram. No entanto, não
entraremos em detalhe a respeito das mesmas nesse texto.
A tentativa de
fundamentar essa nova e alternativa forma de interpretar o social surge com a
obra O pós-moderno (1984) de Jean
François Lyotard. Seu fundamento básico consiste na afirmação da crise da
modernidade, ou seja, na morte do projeto intelectual baseado na valorização da
racionalidade teórica e instrumental do conhecimento científico. Segundo o
próprio autor, “simplificando ao extremo, considera-se ‘pós-moderna’ a
incredulidade em relação aos meta-relatos” (Lyotard, 1986) . Como coloca
Eagleton,
a História, em oposição a história com h
minúsculo, é para o pós-modernismo um caso de teleologia. Isto é, ela depende da
crença de que o mundo está rumando propositadamente em direção a algum objetivo
predeterminado, mas mesmo assim imanente, que dá a dinâmica para esse
desenrolar inexorável (1998, p. 51).
Para os pós-modernistas
não existe mais uma História que possa ser descrita enquanto uma continuidade
linear, nenhuma meta-narrativa fundamentada numa lógica singular, pois a
história não passa de constantes mutabilidades, uma infinita descontinuidade,
um rio sem curso definido e pensar o contrário, afirmando que a mesma está
caminhando em alguma direção específica não passaria de teleologia arbitrária.
Mais uma vez esse tipo de acusação se dirige contra o marxismo que
pejorativamente é denominado de pensamento teleológico. No entanto, e
infelizmente, tais pós-modernistas se encontram completamente equivocados, pois
a essência (determinação fundamental) da história humana está firmemente
ancorada em uma história permanente de opressão e miséria. Basta perceber que
“a história para a grande maioria de homens e
mulheres que viveram e morreram, constitui-se em um relato de incessante
trabalho e opressão, de sofrimento e degradação – tanto que, como Schopenhauer
teve a coragem de confessar, teria sido preferível para muita gente não ter
nascido. E em lugar de ‘muita, Sófocles usaria ‘toda a’” (Ibid, 1998, p. 58).
Como pensar então na
possibilidade de uma história diferente, na qual a opressão e miséria crescente
que agoniza milhares de homens e mulheres em todo o mundo não passaria de
objetos ultrapassados de investigação, tanto quanto a constatação óbvia de que
os mesmos para sobreviver precisam de uma dieta calórica mínima e diária?
Novamente precisamos de uma análise totalizante que nos possibilite visualizar
o fundamento da produção de riqueza assim como da pobreza no capitalismo. Na
verdade pensar uma coisa separada da outra não faz o menor sentido. Segundo
Eagleton, aqui esbarramos num grande obstáculo, segundo os pós-modernistas,
pois trata-se de pensar uma categoria que para eles é tão nociva “quanto sal e
tabaco”, classe social.
A moda agora é falar de
identidades fragmentadas e não mais de classe social, esse conceito elitista,
heterodeterminado pela intelectualidade marxista que ignora os sujeitos e suas
percepções de mundo. Os indivíduos pós-modernos não mais se identificam como
pertencendo a essa ou aquela classe, mas sim a identidades múltiplas, variáveis
e sensivelmente instáveis baseadas, por exemplo, na raça, gênero e sexualidade.
É necessário lembrar os pós-modernos que a pertença de classe não depende,
necessariamente, do fato de o indivíduo se identificar ou não com essa ou
aquela classe, com esses ou aqueles valores, gostos e tradições. Pelo
contrário,
os
marxistas consideravam que pertencer a uma classe social significa ser oprimido
ou opressor. Classe significa nesse sentido categoria totalmente social, o que
não acontece com o fato de ser mulher ou de ter um certo tipo de pigmentação da
pele. Essas coisas, que não se devem confundir com ser feminina ou
afro-americano, derivam do tipo de corpo que você tem e não do tipo de cultura
a que você pertence (...) Ninguém, entretanto, tem um tipo de pigmentação da
pele porque outra pessoa tem outra, nem é homem porque alguém mais é mulher,
mas certas pessoas só são trabalhadores sem terra porque outros são fazendeiros
(Ibid, 1998, p. 62-63).
Não se trata, como o
próprio Eagleton ressalta, de uma competição entre marxistas e pós-modernistas
para saber qual grupo oprimido será eleito e promovido enquanto agente
potencialmente transformador, mas sim de reconhecer o locus de produção de todas as condições de opressão presentes no
capitalismo e, inevitavelmente, tal reconhecimento exige que nossa atenção
volte para a produção material da sociedade e lá o proletariado adquire
centralidade. Vejamos de perto o que essa constatação representa concretamente.
Em síntese a
centralidade do proletariado reside no fato do seu trabalho ser o único
componente que acrescenta mais-valor no processo de produção, ou seja, somente
com a força viva do proletariado é possível pensar num processo produtivo de
mercadorias que gere lucro. As duas principais classes sociais da modernidade –
burguesia e proletariado – ao se relacionarem na produção é que possibilita a
produção de mercadorias. E como essas se relacionam?
A burguesia que é detentora dos meios de
produção necessita da força de trabalho do proletariado que nada tem a oferecer
além dessa. A primeira investe em maquinaria, matérias-primas e tecnologia em
geral, isso equivale a custos iniciais que somente podem ser repassados sem
gerar, por conta própria, mais do que o valor gasto na sua aquisição. Já o
proletariado além de produzir o necessário para repor tais custos e seu
salário, produz um quanto superior, ou seja, mais-valor e aqui encontra-se a
chave da lucratividade capitalista. Portanto, podemos afirmar que o
proletariado representa o sujeito histórico potencialmente revolucionário uma
vez que, somente através da exploração do seu trabalho via extração de
mais-valor é que o capitalismo existe.
Além disso, somente
através da sua negação em manter-se como classe oprimida é que o capital se
encontra ameaçado. Assim, o proletariado possui uma centralidade na luta contra
as condições de opressão que atingem os seres humanos na modernidade, pois se
apenas com o seu trabalho existe capital, somente na negação de trabalhar,
realizando lutas contra a alienação e que apontam para a superação completa do status quo, é que o capital pode deixar
de existir juntamente com toda história de crueldade e subjugação que o
acompanha.
Para finalizarmos resta
sabermos se as características fundamentais, juntamente com algumas outras
características da modernidade, ainda estão presentes na contemporaneidade e se
estão qual é o sentido de afirmar a existência da pós-modernidade? Afinal de
contas tal período não deveria representar uma sociedade pós-capitalismo onde a
produção de mercadoria e a luta de classes não mais equivaleriam a seu
fundamento?
As décadas de 60 e 70
marcaram um período de crise de acumulação capitalista que obrigou a burguesia
e seus auxiliares a encontrar soluções para tal crise. A solução encontrada foi
o engendramento de um novo regime de acumulação denominado por uns de
“acumulação flexível” (Harvey, 2008) e por outros de “acumulação integral”
(Viana, 2009). Por uma questão conceitual, optamos pelo uso do conceito
acumulação integral visto que tal regime é marcado tanto pelo aumento da
exploração nos países imperialistas quanto nos países subordinados, tanto no
aumento da extração de mais-valor relativo quanto na extração de mais-valor absoluto,
ou seja, tal regime se afirma em um processo integral de acumulação. Essa busca
pelo aumento da taxa de exploração ficará conhecida como “reestruturação
produtiva” e terá no toyotismo a forma como o capitalismo se organizará para
extrair mais-valor na contemporaneidade.
A acumulação integral
realizada via organização toyotista do trabalho busca extrair mais-valor de
forma intensiva e extensiva e para isso promove uma intensificação do processo
de trabalho e um controle rigoroso sobre todo o tempo de trabalho, gerando mais-violência para o trabalhador. O
caráter central do trabalho na contemporaneidade é a superexploração marcada
pela intensificação do trabalho, pelo assédio moral, pela pressão psicológica,
pelo desenvolvimento da síndrome da culpa, síndrome do pânico, pelo estresse,
depressão, medo e várias outras formas de mais-violência derivadas do trabalho.
Em síntese, a
acumulação integral é resultado da luta de classes que ameaçou a continuidade
do regime de acumulação anterior (intensivo-extensivo) e representa uma
ofensiva do capital contra o proletariado e suas conquistas. No entanto, esse
processo é marcado também pela contra-ofensiva do proletariado e de outros
grupos sociais. Basta resgatarmos todas as lutas que emergiram nessa nova fase
tais como o movimento antiglobalização e sua expressão mais radical o Black Block, as lutas sociais contra a
implementação das medidas neoliberais e o descontentamento de jovens imigrantes
desempregados na França, o movimento zapatista e o episódio de Oaxaca no
México, a emergência dos movimentos piqueteiros e ocupação de fábricas na
Argentina e vários outros exemplos que marcam a nova dinâmica da luta de
classes na contemporaneidade.
Percebe-se então que
uma das características centrais da acumulação capitalista na contemporaneidade
(e não da pós-modernidade) estão fundamentadas nas mesmas bases da modernidade
(extração de mais-valor e luta de classes) e isso é suficiente para afirmar que
a pós-modernidade não passa de ilusão de uma ideologia estéril - tal ideologia
é, também, expressão da luta de classes nessa fase do capitalismo - que
interessa a quem detém o poder, pois “idéias
estéreis, podem gerar conservadorismo, imobilismo ou ações igualmente estéreis”
(Viana, 2009, p. 169). E, nesse sentido, Eagleton constata que “tudo
numa sociedade capitalista tem que ter sua razão e propósito – inclusive a ideologia pós-moderna”
(2005, p. 163 – grifos meus).
Referências
bibliográficas:
ARÓSTEGUI,
Júlio. A pesquisa histórica. Bauru, SP: Edusc, 2006.
BRAGA, Lisandro.
Acumulação capitalista e tendência à lumpemproletarização. Revista
Enfrentamento. Ano 04, número 09, jul./dez. de 2010.
EAGLETON, Terry.
As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
____. De onde
vêm os pós-modernistas? IN: Em defesa da História – Marxismo e pós-modernismo.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
____. Depois da
teoria – um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo. Rio de
Janeiro: Civilização brasileira, 2005.
HARVEY,
David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
LYOTARD, Jean
François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
MARCUSE,
Herbert. Contra-revolução e revolta. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
MARX, Karl &
ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
MARX, Karl.
Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
MULHERN,
Francis. A política dos estudos culturais. IN: Em defesa da História – Marxismo
e pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
VIANA, Nildo.
Escritos metodológicos de Marx. Goiânia: Editora alternativa, 2007.
____. O que é o
marxismo? Rio de Janeiro: Elo, 2008.
____. O
capitalismo na era da acumulação capitalista. Aparecida, SP: Santuário, 2009.
____.
Modernidade e pós-modernidade. Revista Enfrentamento. Ano 04, número 06,
jan./jun. de 2009a.
WOOD, Ellen Meiksins.O que é a agenda
pós-moderna? IN: Em defesa da História – Marxismo e pós-modernismo. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
[1]
Doutorando em Sociologia/UFG e professor de Teoria Política na Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul/UFMS.
[2] O termo
política empregado aqui é derivado da idéia de luta de classes em sentido amplo
e não no sentido comumente adotado que resume a luta política às lutas
parlamentares, eleitorais ou através de golpe armado visando à conquista do Estado.
Uma vez que, para Marx, o fundamental para a compreensão de uma sociedade são
suas relações de produção, logo este é por essência o local privilegiado da
luta de classes e todas as demais lutas políticas derivam daí.
[3] Trata-se
de uma pseudo-erradicação, pois todas as características existentes nesse
período e que serviram de base para afirmação da “erradicação” não existiam nos
países de capitalismo subordinado e não se sustentaram nos países
imperialistas. Com a crise do regime de acumulação intensivo-extensivo na
década de 70 e instalação do regime de acumulação integral, surge um amplo
processo de lumpemproletarização, derivado de um crescente aumento do
desemprego, o fim de inúmeras políticas sociais e a perda de vários direitos
sociais resultados da emergência do Estado Neoliberal em detrimento do
sucateamento do dito Estado do “bem-estar-social”.
quarta-feira, 22 de julho de 2015
REPRESSÃO PREVENTIVA E SELETIVA NA ARGENTINA
O
propósito desse texto é discorrer sobre as múltiplas determinações que envolvem
a tríplice lumpemproletarização[1]-criminalidade-repressão
policial na Argentina contemporânea, dando destaque aos diversos casos de
execução sumária efetuada pela polícia sob a alegação de disparo acidental ou
morte oriunda do enfrentamento. Esses episódios ficaram denominados na Argentina
de gatillo fácil e fazem parte da
cotidianidade dos bairros pobres e das lutas sociais desse país há mais de duas
décadas. Para compreendermos essa tríplice em sua totalidade social é
necessário recorrermos ao processo histórico de construção de uma nova
realidade socioeconômica e cultural, tanto em escala mundial, quanto em escala
local. Acreditamos que essa nova realidade é assinalada pela constituição de um
regime de acumulação integral, do Estado neoliberal que o acompanha e o torna
regular e do neoimperialismo que busca universalizá-lo (VIANA, 2009).
Acumulação integral, repressão e criminalização da pobreza
O regime de acumulação integral é fruto da resposta capitalista à
crise do final da década de 1960 e início da década de 1970 provocada pela
tendência declinante da taxa de lucro e marcada pela radicalização das lutas
estudantis e operárias na França, Alemanha e Itália, bem como pelo movimento de
contracultura e pelo movimento pacifista nos EUA, que foram responsáveis por
promover a primeira rachadura no regime de acumulação intensivo-extensivo que,
já no início da década de 80, entra em colapso.
Com a contínua queda na taxa de lucro entre as décadas de 1960 e 1970,
o capitalismo precisou encontrar soluções para a crise e isso levou à
construção de um novo regime de acumulação[2]
marcado, tanto pelo aumento da exploração nos países imperialistas, quanto nos
países subordinados, tanto no aumento da extração de mais-valor relativo,
quanto na extração de mais-valor absoluto. A
constituição do regime de acumulação integral visando combater a tendência
declinante da taxa de lucro entre as décadas de 1960 e 1970 vem acompanhada
pela substituição do Estado do Bem-Estar Social pelo Estado Neoliberal que terá
a função de criar as condições institucionais necessárias para ampliar a
acumulação de capital via neoliberalismo e neoimperialismo (VIANA, 2009; BRAGA,
2012).
Para que a acumulação integral ocorra é necessário
garantir que um amplo processo de mudanças seja colocado em prática no campo
das relações de trabalho, marcado pela corrosão dos direitos trabalhistas, pela
(in)flexibilidade no sistema produtivo que veio a provocar uma imensa
precarização e intensificação do trabalho e um processo crescente de lumpemproletarização
via aumento do desemprego e da consolidação de um modo de vida que tende a se
consolidar às margens da divisão social do trabalho e, consequentemente, da miséria
em escala mundial. De acordo com Harvey,
o mercado de trabalho, por exemplo, passou por
uma radical reestruturação. Diante da forte volatilidade do mercado, do aumento
da competição e do estreitamento das margens de lucro, os patrões tiraram
proveito do enfraquecimento do poder sindical e da grande quantidade de
mão-de-obra excedente (desempregados ou subempregados) para impor regimes e
contratos de trabalho mais flexíveis [...] Mesmo para os empregados regulares,
sistemas como “nove dias corridos” ou jornadas de trabalho que têm em média
quarenta horas semanais ao longo do ano, mas obrigam o empregado a trabalhar
bem mais em períodos de pico de demanda, compensando com menos horas em
períodos de redução da demanda, vêm se tornando muito mais comuns. Mais
importante do que isso é a aparente redução do emprego regular em favor do
crescente uso do trabalho em tempo parcial, temporário ou subcontratado [...] A atual tendência dos mercados de trabalho é reduzir o número de
trabalhadores “centrais” e empregar cada vez mais uma força de trabalho que
entra facilmente e é demitida sem custos quando as coisas ficam ruins (2008, p. 143-144).
O neoliberalismo complementa toda essa mudança estrutural
regularizando essas novas relações sociais, necessárias à efetivação da
acumulação integral de capital. Nesse sentido, ele é marcado por uma enorme
contenção dos gastos públicos em políticas sociais em geral e por uma onda
avassaladora de privatização de empresas públicas. Uma das consequências
sociais diretas e inevitáveis da promoção do Estado neoliberal é, sem sombra de
dúvidas, o aumento do desemprego, da pobreza e das tensões sociais derivadas
dos constantes cortes nas políticas de assistências sociais, da privatização de
empresas públicas acompanhada de demissões em massa, da diminuição drástica da
oferta de empregos, da miséria, da fome e da opressão em geral. Conforme
sintetiza Harvey, o neoliberalismo “acentuou que o papel do governo é criar um
clima de negócios favorável e não cuidar das necessidades e do bem-estar da
população em geral” (2008a, p. 58). Veremos mais adiante que isso se aplica
perfeitamente à realidade argentina pós-década de 1990.
As mudanças no mundo do trabalho em países de capitalismo subordinado,
tal como é o caso argentino, remete às discussões sobre o neoimperialismo, uma
vez que coube a esse expandir para vastas regiões do globo a dinâmica da
acumulação integral e suas consequências sociais. O regime de acumulação intensivo-extensivo,
que antecedeu ao regime de acumulação integral, garantia uma relativa
estabilidade no bloco dos países imperialistas graças à superexploração
existente no bloco dos países subordinados, através de uma acumulação
extensiva, transferência de mais-valor para os países imperialistas,
endividamento externo, da “troca desigual” etc. Porém, a situação já não é mais
a mesma visto que para garantir a reprodução do capitalismo na era da
acumulação integral, que entra em vigor a partir da década de 1980, não basta
aumentar a já intensa exploração no capitalismo subordinado. Portanto, para se
manter o novo regime de acumulação necessita aumentar a exploração no bloco
subordinado, que a partir da queda do capitalismo estatal russo se amplia com
os países do leste europeu, mas também no bloco imperialista (VIANA, 2009).
É neste contexto que emerge também o neoimperialismo, isto é, o
imperialismo da acumulação integral que tem como função promover de forma
generalizada a acumulação de capital em todo o mundo. Segundo Harvey,
para que tudo isso
ocorresse, era necessário, além da financialização e do comércio livre, uma
abordagem radicalmente distinta da maneira como o poder do Estado, sempre um
grande agente da acumulação por espoliação, devia se desenvolver. O surgimento
da teoria neoliberal e a política de privatização a ela associada simbolizaram
grande parcela do tom geral dessa transição (2011, p. 129).
O neoimperialismo busca reproduzir o processo
de exploração global através das relações internacionais, visando aumentar a
exploração que, consequentemente, representa maior quantidade de mais-valor
produzido e maiores transferências de valor dos países imperialistas para os
países subordinados. Deste modo, há uma tendência em aumentar a já elevada taxa
de exploração nos países subordinados. É nesse sentido que esses três elementos
– acumulação integral, neoliberalismo e o neoimperialismo - cumprem seu papel ao promover uma corrosão dos
direitos trabalhistas e estabelecimento de estratégias para promover o aumento
da extração de mais-valor relativo (maior controle do trabalho, novas
tecnologias etc.), uma vez que a extração de mais-valor absoluto já existe e tende
a se ampliar.
A acumulação integral consolidou um quadro
social alarmante para a classe trabalhadora em todas as nações em que ela se
fez presente: imensa precarização e intensificação do trabalho, retorno de
extensas jornadas de trabalho, lumpemproletarização, desemprego e subemprego em
massa, ruína de diversos bairros populares, expansão da criminalidade,
mendicância, prostituição, elevação do consumo e tráfico de drogas (principal
“lazer” e “trabalho” da juventude lumpemproletária), práticas compulsivas de
disciplinamento, controle e violência policial, criminalização da pobreza
acompanhada de recordes absolutos de encarceramento etc (HARVEY, 2008, 2008a; VIANA,
2009; WACQUANT, 2001, 2003, 2008; GARLAND, 2008).
Lumpemproletazação, criminalidade e gatillo fácil na Argentina contemporânea
Com o propósito de compreender a maneira pela
qual se promoveu uma expansão da lumpemproletarização na sociedade argentina contemporânea
acompanhada de uma grande radicalização das lutas sociais, da elevação significativa
da criminalização da pobreza, da criminalidade em geral (delitos à propriedade,
delitos às pessoas, roubo com armas, homicídios, sequestros extorsivos etc.) e
da repressão e violência policial, recorreremos ao processo histórico de
constituição dessa realidade. Para isso nos propomos a analisar nosso objeto de
estudo (o gatillo fácil) à luz das
transformações históricas constituintes de um novo regime de acumulação, nos
termos definidos por Viana (2009).
Não obstante a Argentina tenha sempre pertencido ao bloco de países
capitalistas subordinados na divisão internacional do trabalho, durante décadas
preponderou um modelo de integração de caráter nacional-popular cuja máxima
expressão foi a primeira fase do peronismo (1946-1955). Tal modelo se
constituía de três grandes atributos: economicamente se fundamentava no
desenvolvimento de seu parque industrial e na estratégia de desenvolvimento do
mercado interno. Seu segundo atributo era caracterizado pela apresentação do
Estado como amplo agente promotor da coesão social, através dos investimentos
públicos, e da ampliação da cidadania. Por último, havia uma tendência em
possibilitar uma maior incorporação de parcela significativa das classes
trabalhadoras bem como uma expansão das classes auxiliares da burguesia
(SVAMPA, 2010).
Todavia esse modelo começa a se deteriorar paulatinamente a partir da
década de 1970, se aprofunda durante a década de 1980 e desmantela-se na década
de 1990 com o menemismo (1989-1999). Vejamos como esse processo ocorreu e sua
relação com o objeto central desse estudo.
A primeira tentativa em direção a uma mudança no regime de acumulação
ocorre sob o governo de Isabel Perón (1974-1976) e ficou conhecido como
“Rodrigazo”. Sob direção do ministro da economia Celestino Rodrigo buscou-se
uma reorientação fundamental da economia que visava por fim a economia
nacionalista e reformista, própria do peronismo, e promover uma política de
estabilização e ajuste orientada por uma aliança com o empresariado. Dentre as
consequências de tais políticas, uma se apresenta bastante antipopular: o
aumento de 200% das tarifas dos serviços públicos. No entanto, essa tentativa
encontrou grandes obstáculos nas resistências populares que promoveram uma
greve geral decretada pela Central Geral dos Trabalhadores (CGT) que exigia o
fim imediato do plano de ajuste.
A segunda tentativa na direção dessa reorientação econômica foi
realizada pelo golpe militar de 1976. Assim como em outros países
latino-americanos, a ditadura na Argentina tinha como finalidade reestruturar a
economia segundo os interesses empresariais nacionais e internacionais e para
atingir esse objetivo programava uma política de repressão terrorista. Conforme
Svampa,
o objetivo da
ditadura militar argentina foi levar a cabo uma política de repressão, ao mesmo
tempo que aspirava refundar as bases materiais da sociedade. Em consequência, a
característica introduzida foi dupla: por um lado, mediante o terrorismo de
Estado, apontou para o extermínio e disciplinamento de vastos setores sociais
mobilizados; por outro lado, pois em marcha um programa de reestruturação
econômico-social que produziria profundas repercussões na estrutura social e
produtiva (2010, p. 23).
Os resultados dessa reestruturação modificaria efetivamente a
estrutura socio-econômica argentina uma vez que levou a cabo um modelo
fundamentado na abertura financeira e na importação de bens materiais e
capitais. Consequentemente tais medidas promoveram uma severa redução da
industrialização nacional e proporcionou um imenso endividamento público e
privado, perceptível no aumento incrível da dívida externa que passara de 13
milhões em 1976 a 46 milhões no ano de 1983. Além disso, a ditadura militar
seria responsável pelo processo de deslocamento industrial, acompanhado de uma
vasta expulsão de mão-de-obra, pela expansão do lumpemproletariado, pela
contração da demanda interna, pela deterioração dos salários etc. Juntamente
com isso a classe trabalhadora perdeu o direito a negociações coletivas, o que refletiu
negativamente na distribuição de renda (SVAMPA, 2010).
Diante dessa nova realidade, nascia na
Argentina uma sociedade lumpemproletarizada e atravessada por amplas
desigualdades sociais. O país experimentava o declínio estrutural do modelo
nacional-popular sem contar com nenhuma chave para reencontrar a integração
social de amplos setores populares e auxiliares empobrecidos. Segundo Kessler & Virgilio,
uma das
conseqüências de grande peso econômico e sócio-culturais mais inesperadas que
os setores médios têm sofrido na Argentina foi a de dar origem a um tipo de
pobreza com traços particulares, uma vez iniciado o intenso processo de
empobrecimento sofrido pela sociedade desse país. Basta dizer que entre 1980 e
1990 os trabalhadores em seu conjunto perderam em torno de 40% do valor de suas
rendas, e logo após certa recuperação em 1991 devido à estabilidade, voltaram a
perder em torno de 20% entre 1998 e 2001, com importantes oscilações até hoje.
A profundidade e persistência da crise iniciada em meados da década de 1970
fizeram com que milhares de famílias de classe média e de pobres de longa data,
que no passado conseguiam escapar da miséria, visualizassem suas rendas
declinar abaixo da “linha de pobreza” (2008, p. 32).
A herança deixada pela ditadura militar foi um
país extremamente endividado, governado de forma corporativa, afundado na
corrupção administrativa e com uma tradição política autoritária e violenta. Em
1992 com a chegada de Carlos Menen à presidência consolida-se o colossal
processo de neoliberalização da economia que se iniciara com os governos
militares. O menemismo foi responsável por estabelecer uma nova aliança
política no seio do Partido Justicialista – partido oficial do peronismo –
marcada cada vez mais por um afastamento das burocracias sindicais – aliadas
históricas – e por uma vinculação cada vez mais estreita com as grandes
corporações empresariais desejosas de uma reforma estatal de cunho neoliberal.
A década de 1990 veria consolidar os planos de
ajustes que vinha se constituindo desde a década de 1970 e que seria expresso
em uma diversidade de medidas: estabilização econômica, liberalização da
economia, plano de convertibilidade e reforma do Estado. Não nos deteremos nos
detalhes dessas medidas, mas tão somente nas suas consequências sociais que,
para os propósitos desse estudo, são de importâncias fundamentais.
Em linhas gerais o novo regime de acumulação
(integral) caracterizou-se por um modelo de “modernização excludente” (BARBEITO
& LO VUOLO apud SVAMPA, 2010), visto que na década de 1990, apesar do
crescimento de 28% da População Economicamente Ativa, o desemprego cresce 153%
e o subemprego 115,4%. Tal modernização
foi marcada por um incremento da produtividade com insuficiente produção de emprego
e crescente precarização das relações de trabalho. Juntamente com isso,
milhares de pequenas e médias empresas decretaram falência visto que as mesmas
não se encontravam em pé de igualdade para concorrer com a invasão de produtos
externos.
Figura 01: Evolução do desemprego e subemprego
na Argentina (1990-2002).
Fonte: Ministério do
Trabalho, Boletim de Estatísticas Laborais, 2003. Em: www.trabajo.gov.ar Acessado em: 08/07/2012.
Outra exigência fundamental do novo regime de
acumulação foi a reforma geral do Estado. Essa foi caracterizada por uma
drástica redução dos gastos públicos, descentralização administrativa,
transferência das responsabilidades públicas para iniciativas privadas e
gigantesca privatização de empresas estatais. Essa última revela a estreita
relação entre a construção do Estado neoliberal argentino e os interesses do
neoimperialismo, uma vez que quase todos os serviços básicos e essenciais à
sociedade argentina se encontrarão, a partir daí, nas mãos de corporações
estrangeiras com plena liberdade para elevar as tarifas de tais serviços
(eletricidade, fornecimento de água, telefonia, gás, transportes públicos,
combustíveis etc.).
Seguindo as análises de Maristella Svampa
(2010) é possível perceber o forte impacto negativo nos empregos públicos,
derivado do processo de desmantelamento das obrigações do Estado, a partir das
privatizações dos principais serviços estatais:
Em cifras absolutas, se considerarmos somente as setes empresas mais
importantes do setor (telefonia, correios, transporte aéreo, gás, água, energia
e transporte ferroviário), até 1985 havia 243.354 funcionários do setor
público. Em 1998, haviam reduzidos a 75.770. No geral as demissões massivas se combinarão
com planos de demissão mais ou menos compulsivos, implementados em um lapso
muito breve, durante o período prévio da privatização, quando as empresas eram
declaradas “sujeitas a privatização”. Dessa maneira se habilitavam planos
draconianos de racionalização, em mãos de todopoderosos interventores que
respondiam diretamente ao Poder Executivo. Assim, entre 1991 e 1992, a redução
do emprego prejudicou nada menos que a 100.000 trabalhadores do setor público
(SVAMPA, 2010, p. 40).
Aliados, os processos de privatização e o
intenso deslocamento de indústrias para outros países foram responsáveis pela expansão do
lumpemproletariado e do lançamento de mais de 50% da população abaixo da “linha
da pobreza” e um crescimento vertiginoso da população na indigência. A paisagem
urbana de diversas regiões do país se modificou completamente. Regiões que
antes eram conhecidas como importantes cordões industriais (Grande Buenos
Aires, Rosário e Córdoba) se transformaram em verdadeiros cemitérios de
fábricas abandonadas e outras regiões conhecidas por fornecerem os principais
combustíveis do país se tornaram espécie de “territórios fantasmas”
completamente abandonados.
Figura 02 – Evolução
da população (%) abaixo da linha da pobreza e da indigência. Grande Buenos Aires
Fonte: Ministério de Desenvolvimento Social e do Trabalho da Nação Argentina
(2006). Em: MINUJIN & ANGUITA, Eduardo, 2004, p. 50.
Diante dos efeitos desintegradores da acumulação
integral diversas organizações populares insurgiu com o intuito de promover uma
resistência a esse quadro dramático e assustador e, na medida do possível,
impor freio ao avanço do mesmo. Sem sombra de dúvidas um dos principais
protagonistas da resistência ao neoliberalismo e suas consequências foi o
movimento de desempregados conhecido como Movimento Piqueteiro[3].
No início dos anos 90, em diversas regiões
petrolíferas do país que sofreram com o desemprego em massa, derivado do
processo de privatização, iniciou-se um movimento de pressão popular
caracterizado pela exigência de trabalho, de subsídios para garantir a
sobrevivência, pois a maioria dos piqueteiros passava a “viver” abaixo da
“linha da pobreza”, sem direito a alimentação, moradia, saúde etc., pelo caráter
assembleiario de suas decisões e forma organizacional e, principalmente, por
sua ação direta no enfrentamento contra as forças repressivas. Além disso, esse
movimento tinha como principal ferramenta de luta o bloqueio de estradas
(piquetes) fundamentais para a circulação de mercadorias. Diante da
incapacidade do poder público em atender as reivindicações do movimento e da
expansão do mesmo para diversas províncias do país, iniciou-se uma intensa
política de repressão institucional e criminalização do protesto social na
Argentina (KOROL & LONGO, 2009). E aqui começa a se revelar a face penal do
neoliberalismo argentino que a partir de agora prenderá nossa atenção.
Durante quase toda a década de 1990 houve
manifestações contrárias às consequências sociais das políticas neoliberais e
em diversas delas houve enfrentamento com as forças policiais que
paulatinamente foi ampliando suas práticas repressivas e o grau de violência no
tratamento com os manifestantes. Uma prática comum das forças repressivas
institucionais foi o gatillo fácil
que é caracterizado pela CORREPI – Coordenadoria contra a Repressão Policial e
Institucional[4]
-, uma organização política de denúncias contra os direitos humanos na
Argentina, como “execuções sumaríssimas aplicadas pelas forças policiais e que
no geral tendem a ser ocultadas como ‘enfrentamentos’. Esta ‘pena de morte
extra-legal’ se distingue por duas etapas: o fuzilamento e o encobrimento”. A
partir de agora gostaríamos de apresentar alguns exemplos de casos de gatillo fácil que reforça a tese segundo
a qual o que vem ocorrendo na Argentina entre a década de 1990 até o ano de
2002 (momento ápice da rebelião argentina) é uma tentativa anti-democrática de
criminalizar e silenciar os protestos e lutas sociais legítimas:
Tabela 01 – Resumo de casos de gatillo
fácil na repressão seletiva contra os contestadores sociais:
Data/Local
|
Vítimas
de gatillo fácil
|
Descrição
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12/04/1995
Tierra del Fuego
|
Víctor Choque
|
37 anos, operário da construção assassinado pela policial local
durante uma mobilização.
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12/04/1997
Cutral Có
|
Teresa Rodríguez
|
24 anos, empregada doméstica assassinada pela ação da Gendarmería[5]
durante uma manifestação docente.
|
17/12/1999
Ponte que liga as províncias Corrientes e
Chaco
|
Mauro Ojeda e Francisco Escobar
|
18 anos, desempregado e 25 anos, cartonero. Ambos assassinados à
queima roupa pela Gendarmería na ocupação da ponte Manuel Belgrano.
|
09/05/2000 Puebladas em General Mosconi e
Tartagal – Província de Salta
|
Orlando Justiniano e Matías Goméz
|
21 anos e 18 anos respectivamente. Ambos assassinados pela polícia
provincial.
|
10/11/2000
General Mosconi e Tartagal – Província de
Salta
|
Aníbal Verón
|
37 anos, motorista da empresa de transporte Atahualpa. Assassinado
com um tiro no rosto pela Gendarmería, durante o bloqueio da estrada 34.
|
Junho de 2001
General Mosconi e Tartagal
|
Oscar Barrios e Carlos Santillán
|
17 anos e 27 anos respectivamente. Ambos desempregados (piqueteiros)
e assassinados pela polícia provincial em um bloqueio de estrada.
|
19 e 20/12/2001
Diversas cidades do país
|
37 pessoas assassinadas
|
Rebelião generalizada em diversas cidades do páis com epicentro na
Capital Federal (Buenos Aires) que caracterizou uma profunda crise
institucional[6].
|
06/02/2002
Cidade de El Jagüel
|
Javier Barrionuevo
|
31 anos, desempregado e militante de um Movimento de Trabalhadores
Desempregados – MTD. Assassinado no bloqueio da estrada 205.
|
26/06/2002
Cidade de Buenos Aires
|
Darío Santillán e Maximiliano Kosteki
|
21 anos e 22 anos respectivamente. Ambos militantes de organizações
piqueteiras e executados sumariamente pela polícia de Buenos Aires durante
uma intensa repressão promovida por diversas forças policiais à tentativa de
ocupação da
Ponte Pueyrredón.
|
Fonte: KOROL, Claudia & LONGO, Roxana. Criminalización de los movimientos sociales
en Argentina – Informe general. IN: KOROL, Claudia (org.) Criminalización de la pobreza y de la
protesta social. Buenos Aires: El colectivo, America libre, 2009.
O crescente processo de criminalização dos
movimentos sociais e de seus protestos em várias regiões do mundo, e
particularmente na Argentina, exprime outra face do Estado neoliberal e de sua
determinação em tornar regular a dinâmica da acumulação integral. Para isso,
ele precisar criminalizar a pobreza e os movimentos sociais de luta contra a
mesma, pois um combate efetivo à pobreza e ao desemprego já não constitui algo
que se possa visualizar no interior desse regime de acumulação. Além disso, a
emergência de lutas sociais com tendências cada vez maiores à radicalização
pressiona o Estado e obstaculiza cada vez mais o processo de acumulação. Eis a
função da criminalização do protesto social derivado do crescente processo de lumpemproletarização.
A trajetória histórica de avanço dos índices
de desemprego, subemprego, indigência e pobreza na Argentina entre os anos de
1990-2003 coincide com o avanço das taxas de delito em geral. Isso nos
possibilita indagar: Existe uma relação concreta entre lumpemproletarização, pobreza
e criminalidade? Acreditamos que sim. Contudo não se trata de uma relação
mecânica, causal, mas sim, complexa e envolvida por uma multiplicidade de
determinações que não cabe aqui serem discutidas.
Os anos de 1990 na Argentina, assim como em vários
outros países latino-americanos, presencia uma escalada surpreendente das taxas
de delitos tais como homicídios, roubos com armas, furtos etc. (CIAFARDINI,
2006). Os gráficos a seguir são demonstrativos de tal escalada:
Figura
03 – Evolução da taxa de delitos.
Fonte: Registro Nacional de Reincidência (até 1998) e Direção Nacional
de Política Criminal (1999 em diante). Ministério da Justiça da República
Argentina. Em: CIAFARDINI, 2006, p. 57.
Figura 04 - Evolução, em porcentagem, de
vítimas de roubo com armas.
Fonte: Pesquisas de vitimização, Direção Nacional de Política
Criminal, Ministério da Justiça da República Argentina. Em: CIAFARDINI, 2006,
p. 62.
A explicação mais convincente para o
crescimento exponencial dos delitos em geral na Argentina é, sem sombra de
dúvidas, o amplo processo de lumpemproletarização e o consequente
empobrecimento que tem experimentado quase metade da população nacional entre
os anos de 1990 e 2003. O imenso processo de deterioração das condições
socioeconômicas afeta diretamente os jovens. O processo de neoliberalização
globalizada atingira duramente a juventude que sofrera com o intenso avanço de
desinstitucionalização (crise da escola, crise da família etc.) e de
desestruturação do mercado de trabalho na Argentina desse período (SVAMPA,
2010). Segundo Svampa,
em maio de 1995,
quando o país alcançou seu primeiro recorde histórico de desemprego (18%), o
desemprego dos jovens da Área Metropolitana de Buenos Aires alcançava 34,2%. Em
novembro de 1999, os jovens desempregados (entre 15 e 24 anos) duplicavam a
taxa nacional de desemprego, alcançando 27%. As cifras indicavam também que 40%
dos jovens estavam abaixo da linha de pobreza. Contudo, dados mais recentes
assinalam que 6 de cada 10 jovens são pobres; isto é, 5.500.000 pessoas entre
15 e 29 anos (2010, p. 172).
A falta de experiência e qualificação laboral,
juntamente com uma formação escolar débil faz dos jovens uma clientela
preferencial para todo tipo de trabalho precário e condições vulneráveis de
existência, uma vez que as empresas de organização integral contam com suas
“capacidades maleáveis” e inexperiência sindical de lutas e resistências.
Diante desse panorama não é difícil perceber que muitos desses jovens também
sobrevivem nas franjas da ilegalidade da “economia das ruas” (WACQUANT, 2008).
Obviamente eles se tornaram as maiores vítimas do controle, disciplinamento
compulsivo e repressão preventiva efetuado pelos aparatos repressivos da
polícia, assim como as maiores vítimas de gatillo
fácil e de diversas outras arbitrariedades extremamente violentas e letais
praticadas cotidianamente por diversos policiais (ALES, 2009; SVAMPA, 2010).
Para corroborar a afirmação segundo a qual são
os jovens pobres as maiores vítimas do controle e disciplinamento compulsivo
efetuado pela polícia, assim como as maiores vítimas de gatillo fácil, utilizaremos dos registros de duas organizações de
investigação e defesa dos direitos humanos na Argentina. Trata-se do Centro de
Estudos Legais e Sociais (CELS[7])
e da Coordenadoria contra Repressão Policial e Institucional (CORREPI).
Uma particularidade presente em quase todos os
casos de gatillo fácil ocorridos na
Argentina está nas formas como as execuções são realizadas. As vítimas
geralmente são: jovens confundidos com outros jovens, jovens em fuga ao
praticar um delito, vítimas de abuso de autoridade que resultam em mortes nas
revistas policiais (o famoso baculejo), jovens executados por estarem em
lugares e horários suspeitos etc. Juntamente com isso, outra particularidade
envolta nesses casos é fornecida pela “justificativa” da instituição policial
que quase sempre alega que a morte foi provocada por enfrentamento com a
polícia, que constantemente implanta armas nos locais em que ocorre o gatillo fácil.
De acordo com a base de dados do Centro de
Estudos Legais e Sociais (CELS), a violência promovida pelas instituições de
segurança (polícia em geral) tem gerado na última década 2.753 vítimas fatais
somente na região metropolitana de Buenos Aires. Em meio a toda essa violência
existe um amplo leque de situações envolvendo a participação de policiais:
execuções sumárias, enfrentamentos armados, abuso da força, torturas seguidas
de morte, pessoas assassinadas em protestos sociais, crimes efetuados por
policiais por motivos particulares e casos graves de violência efetuado por
policiais no interior de relações familiares etc. (PALMIERI, 2008).
A revista da CORREPI O Anti represivo de novembro de 2010 aponta que desde dezembro de
1983 até novembro de 2010 a polícia argentina havia assassinado 3.093 pessoas e
mais da metade, 1.634, ocorreram sob o governo dos Kirchner que “tanto gosta de
se autoproclamar como governo dos DDHH” (CORREPI, 2010). Entre novembro de 2009
e novembro de 2010, aproximadamente, ocorreram 220 casos de mortes por gatillo fácil e torturas no cárcere,
prisões e institutos de menores infratores.
Figura 05 - Pessoas mortas em atos violentos com participação de
policiais na região Metropolitana de Buenos Aires.
Fonte: Base de dados do Centro de Estudos Legais e Sociais.
Nota: Além de funcionários policiais, se incluem membros de todas as
instituições estatais que exercem o papel de força de segurança na
representação do Estado: Forças armadas, serviços penitenciários, forças de
segurança federais (Gendarmería Nacional, Polícia de Segurança Aeroportuária,
Prefeitura Naval Argentina).
No fundo o que vem ocorrendo em todo o
território argentino, especialmente na região da Grande Buenos Aires, é uma
política estatal de repressão preventiva contra a possibilidade de emergência
de novas organizações populares nos bairros pobres[8], e
contra os delitos cometidos pela juventude lumpemproletária contra a
propriedade. Uma prova disso é o crescente processo de militarização dessas
áreas cujos habitantes vivem em constante processo de vigilância e controle por
parte das instituições de segurança.
Outro elemento que reforça a tese segundo a
qual o Estado neoliberal equivale a um Estado Penal (Wacquant, 2001) e,
consequentemente, suas ações apontam para uma maior repressão e criminalização
dos setores mais pobres da sociedade é fornecido pelo aumento significativo dos
investimentos governamentais na polícia. O caso mais visível é o da
Gendarmería, visto que
desde 1938, data de
sua criação em plena “década infame”, até agora, nunca a gendarmería havia sido
tratada com tanta consideração, especialmente, por parte dos governos vigentes.
Basta assinalar que em 2011 seus recursos se viram incrementados em 23%,
porcentagem que está acima de qualquer outro setor do gasto público e que sua
participação na distribuição dos gastos de segurança interna passou, nestes 08
anos do governo dos Kirchner, de 31% em 2002, (frente aos 42% que ostentavam a
Polícia Federal), a uma quase paridade com a “federal”, em torno de 38% dos
gastos, mas com apenas 42.000 efetivos frente aos quase 60.000 da polícia
federal (ROCCHIO, 2011, p. 07).
O “Operativo Centinela”, colocado em prática desde
o final de 2010, mantém aproximadamente 6.000 gendarmes controlando o Conurbano
Bonaerense (região metropolitana de Buenos Aires) e, a partir de julho de 2011,
2.500 gendarmes e outros patrulheiros passaram a exercer um controle diário
sobre os bairros localizados ao sul da cidade de Buenos Aires sob a marca do
“Operativo Unidade Cinturão Sul”. Isto é, o Estado argentino vem promovendo uma
verdadeira militarização dos bairros pobres da cidade de Buenos Aires e de sua
região metropolitana com o intuito de coibir a reorganização dos movimentos
sociais emergidos durante a grande rebelião argentina e reprimir os delitos
contra a propriedade privada.
Em síntese, além de promover uma
criminalização dos movimentos sociais, juntamente com uma repressão violenta
dos seus militantes, que conforme demonstrou a tabela 01, são constantemente
vítimas de gatillo fácil, o Estado
neoliberal argentino vem promovendo uma criminalização e repressão violenta dos
setores mais pobres de sua sociedade. Acredita-se que a política estatal de
repressão preventiva argentina execute em média um jovem por dia em casos de gatillo fácil, tortura na prisão e
delegacias. Segundo informações da CORREPI (2011a), no ano de 2010 foram
registradas mais de 300 mortes promovidas pelas forças de repressão argentinas.
Desde o retorno da democracia no ano de 1983, a repressão preventiva pôs fim a
quase 3.400 vidas. Em sua maioria, jovens habitantes de bairros pobres, nos
quais dois terços possuíam menos de 35 anos. O Banco de dados da CORREPI mantém
atualizado desde 1996 os casos de gatillo
fácil que revela em seus gráficos um acumulo hediondo: 1996 (ano) – 262
(casos), 1997 – 382, 1998 – 471, 1999 – 635, 2000 – 833, 2001 – 1008, 2002 – 1292, 2003 –
1508, 2004 – 1684, 2005 – 1888, 2006 – 2114, 2007 –
2334, 2008 – 2557, 2009 – 2826, 2010 – 3093, 2011 – 3393
(CORREPI, 2010a).
Para a CORREPI, todos esses casos são
reveladores daquilo que há anos ela vem denunciando e combatendo, isto é, que o
gatillo fácil é uma política de
Estado. O Estado neoliberal argentino substitui a face social do Estado por sua
face penal que paulatinamente se apresenta como uma espécie de panoptismo social (Wacquant, 2008;
Foucault, 2009). Além do mais, o endurecimento das práticas repressivas e dos
milhares de casos de gatillo fácil
equivale a uma nítida política de repressão contrarebelião preventiva que, nos
termos de Foucault (2009), visa disciplinar e docilizar os corpos, mas não
quaisquer corpos, tão somente dos jovens pobres das periferias argentinas
apresentados como “populações sobrantes”
compostas por “classes perigosas”.
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duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo, 2008.
*
Doutorando em
Sociologia no Programa de Pós-graduação da Faculdade de Ciências Sociais/Universidade
Federal de Goiás.
[1] Em nossa análise, o
lumpemproletariado é ressignificado na contemporaneidade a partir de uma teoria
marxista das classes sociais. No entanto, não ficamos presos à análise que Karl
Marx realiza sobre o lumpemproletariado, o que não significa que abandonamos as
contribuições desse autor para pensar tal classe social, mas tão somente que
procuramos ir além dele sem necessariamente abandoná-lo. Em outras palavras,
utilizamos as contribuições existentes ao longo de sua vasta obra para pensar o
conceito de classes sociais. Dessa forma, afirmamos que o lumpemproletariado é
composto pela totalidade do exército industrial de reserva (desempregados,
subempregados, mendigos, sem-teto, prostitutas etc.) uma vez que os indivíduos
que compõem essa totalidade possuem características em comum e que possibilitam
sua definição como classe, da mesma forma divisões apontadas pelo conceito de
frações de classe. Assim como as demais classes sociais do capitalismo, é o seu
modo de vida que possibilita sua unificação como classe. No entanto, ao
contrário das demais classes sociais que são unificadas a partir da sua posição
na divisão social do trabalho capitalista, o lumpemproletariado se unifica pela
condição de marginalidade na divisão social do trabalho e tal condição o torna
uma classe social (VIANA, 2012).
[2] Para Viana, “um regime de
acumulação é um determinado estágio do desenvolvimento capitalista, marcado por
determinada forma de organização do trabalho (processo de valorização),
determinada forma estatal e determinada forma de exploração internacional”
(2009, p. 30).
[3] Para maiores informações sobre o movimento
piqueteiro ver: (MERKLEN, 2005); (SVAMPA & PEREYRA, 2009).
[5] A Gendarmería equivale a uma polícia especial
desenvolvida originalmente para atuar nas regiões de fronteira argentina, mas
que após a eclosão das lutas sociais radicalizadas no final da década de 1990
foi utilizada constantemente e especialmente no combate à ocupação de fábricas
e corte de ruas e estradas praticado pelo movimento operário e pelos movimentos
piqueteiros. A mesma foi responsável por diversos casos de gatillo fácil contra militantes sociais em toda a Argentina.
[6] Para
acessar a lista de nomes das pessoas assassinadas nessa rebelião ver: KOROL, Claudia & LONGO, Roxana. Criminalización de los movimientos sociales en Argentina – Informe
general. IN: KOROL, Claudia (org.) Criminalización
de la pobreza y de la protesta social. Buenos Aires: El colectivo, America
libre, 2009.
[8] As primeiras organizações de desempregados
que promoveram grande pressão popular contra o processo de neoliberalização e
lumpemproletarização na Argentina emergiram a partir das organizações
territoriais existentes em diversos bairros do Conurbano Bonaerense, que, a
partir de 1997, constituíram um espaço privilegiado de militância e ação
política independente das estruturas hierárquicas dos partidos políticos e
sindicatos. Nesse sentido os bairros forneceram um lócus de militância
inovadora e ameaçadora para o poder constituído.
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