O
propósito desse texto é discorrer sobre as múltiplas determinações que envolvem
a tríplice lumpemproletarização[1]-criminalidade-repressão
policial na Argentina contemporânea, dando destaque aos diversos casos de
execução sumária efetuada pela polícia sob a alegação de disparo acidental ou
morte oriunda do enfrentamento. Esses episódios ficaram denominados na Argentina
de gatillo fácil e fazem parte da
cotidianidade dos bairros pobres e das lutas sociais desse país há mais de duas
décadas. Para compreendermos essa tríplice em sua totalidade social é
necessário recorrermos ao processo histórico de construção de uma nova
realidade socioeconômica e cultural, tanto em escala mundial, quanto em escala
local. Acreditamos que essa nova realidade é assinalada pela constituição de um
regime de acumulação integral, do Estado neoliberal que o acompanha e o torna
regular e do neoimperialismo que busca universalizá-lo (VIANA, 2009).
Acumulação integral, repressão e criminalização da pobreza
O regime de acumulação integral é fruto da resposta capitalista à
crise do final da década de 1960 e início da década de 1970 provocada pela
tendência declinante da taxa de lucro e marcada pela radicalização das lutas
estudantis e operárias na França, Alemanha e Itália, bem como pelo movimento de
contracultura e pelo movimento pacifista nos EUA, que foram responsáveis por
promover a primeira rachadura no regime de acumulação intensivo-extensivo que,
já no início da década de 80, entra em colapso.
Com a contínua queda na taxa de lucro entre as décadas de 1960 e 1970,
o capitalismo precisou encontrar soluções para a crise e isso levou à
construção de um novo regime de acumulação[2]
marcado, tanto pelo aumento da exploração nos países imperialistas, quanto nos
países subordinados, tanto no aumento da extração de mais-valor relativo,
quanto na extração de mais-valor absoluto. A
constituição do regime de acumulação integral visando combater a tendência
declinante da taxa de lucro entre as décadas de 1960 e 1970 vem acompanhada
pela substituição do Estado do Bem-Estar Social pelo Estado Neoliberal que terá
a função de criar as condições institucionais necessárias para ampliar a
acumulação de capital via neoliberalismo e neoimperialismo (VIANA, 2009; BRAGA,
2012).
Para que a acumulação integral ocorra é necessário
garantir que um amplo processo de mudanças seja colocado em prática no campo
das relações de trabalho, marcado pela corrosão dos direitos trabalhistas, pela
(in)flexibilidade no sistema produtivo que veio a provocar uma imensa
precarização e intensificação do trabalho e um processo crescente de lumpemproletarização
via aumento do desemprego e da consolidação de um modo de vida que tende a se
consolidar às margens da divisão social do trabalho e, consequentemente, da miséria
em escala mundial. De acordo com Harvey,
o mercado de trabalho, por exemplo, passou por
uma radical reestruturação. Diante da forte volatilidade do mercado, do aumento
da competição e do estreitamento das margens de lucro, os patrões tiraram
proveito do enfraquecimento do poder sindical e da grande quantidade de
mão-de-obra excedente (desempregados ou subempregados) para impor regimes e
contratos de trabalho mais flexíveis [...] Mesmo para os empregados regulares,
sistemas como “nove dias corridos” ou jornadas de trabalho que têm em média
quarenta horas semanais ao longo do ano, mas obrigam o empregado a trabalhar
bem mais em períodos de pico de demanda, compensando com menos horas em
períodos de redução da demanda, vêm se tornando muito mais comuns. Mais
importante do que isso é a aparente redução do emprego regular em favor do
crescente uso do trabalho em tempo parcial, temporário ou subcontratado [...] A atual tendência dos mercados de trabalho é reduzir o número de
trabalhadores “centrais” e empregar cada vez mais uma força de trabalho que
entra facilmente e é demitida sem custos quando as coisas ficam ruins (2008, p. 143-144).
O neoliberalismo complementa toda essa mudança estrutural
regularizando essas novas relações sociais, necessárias à efetivação da
acumulação integral de capital. Nesse sentido, ele é marcado por uma enorme
contenção dos gastos públicos em políticas sociais em geral e por uma onda
avassaladora de privatização de empresas públicas. Uma das consequências
sociais diretas e inevitáveis da promoção do Estado neoliberal é, sem sombra de
dúvidas, o aumento do desemprego, da pobreza e das tensões sociais derivadas
dos constantes cortes nas políticas de assistências sociais, da privatização de
empresas públicas acompanhada de demissões em massa, da diminuição drástica da
oferta de empregos, da miséria, da fome e da opressão em geral. Conforme
sintetiza Harvey, o neoliberalismo “acentuou que o papel do governo é criar um
clima de negócios favorável e não cuidar das necessidades e do bem-estar da
população em geral” (2008a, p. 58). Veremos mais adiante que isso se aplica
perfeitamente à realidade argentina pós-década de 1990.
As mudanças no mundo do trabalho em países de capitalismo subordinado,
tal como é o caso argentino, remete às discussões sobre o neoimperialismo, uma
vez que coube a esse expandir para vastas regiões do globo a dinâmica da
acumulação integral e suas consequências sociais. O regime de acumulação intensivo-extensivo,
que antecedeu ao regime de acumulação integral, garantia uma relativa
estabilidade no bloco dos países imperialistas graças à superexploração
existente no bloco dos países subordinados, através de uma acumulação
extensiva, transferência de mais-valor para os países imperialistas,
endividamento externo, da “troca desigual” etc. Porém, a situação já não é mais
a mesma visto que para garantir a reprodução do capitalismo na era da
acumulação integral, que entra em vigor a partir da década de 1980, não basta
aumentar a já intensa exploração no capitalismo subordinado. Portanto, para se
manter o novo regime de acumulação necessita aumentar a exploração no bloco
subordinado, que a partir da queda do capitalismo estatal russo se amplia com
os países do leste europeu, mas também no bloco imperialista (VIANA, 2009).
É neste contexto que emerge também o neoimperialismo, isto é, o
imperialismo da acumulação integral que tem como função promover de forma
generalizada a acumulação de capital em todo o mundo. Segundo Harvey,
para que tudo isso
ocorresse, era necessário, além da financialização e do comércio livre, uma
abordagem radicalmente distinta da maneira como o poder do Estado, sempre um
grande agente da acumulação por espoliação, devia se desenvolver. O surgimento
da teoria neoliberal e a política de privatização a ela associada simbolizaram
grande parcela do tom geral dessa transição (2011, p. 129).
O neoimperialismo busca reproduzir o processo
de exploração global através das relações internacionais, visando aumentar a
exploração que, consequentemente, representa maior quantidade de mais-valor
produzido e maiores transferências de valor dos países imperialistas para os
países subordinados. Deste modo, há uma tendência em aumentar a já elevada taxa
de exploração nos países subordinados. É nesse sentido que esses três elementos
– acumulação integral, neoliberalismo e o neoimperialismo - cumprem seu papel ao promover uma corrosão dos
direitos trabalhistas e estabelecimento de estratégias para promover o aumento
da extração de mais-valor relativo (maior controle do trabalho, novas
tecnologias etc.), uma vez que a extração de mais-valor absoluto já existe e tende
a se ampliar.
A acumulação integral consolidou um quadro
social alarmante para a classe trabalhadora em todas as nações em que ela se
fez presente: imensa precarização e intensificação do trabalho, retorno de
extensas jornadas de trabalho, lumpemproletarização, desemprego e subemprego em
massa, ruína de diversos bairros populares, expansão da criminalidade,
mendicância, prostituição, elevação do consumo e tráfico de drogas (principal
“lazer” e “trabalho” da juventude lumpemproletária), práticas compulsivas de
disciplinamento, controle e violência policial, criminalização da pobreza
acompanhada de recordes absolutos de encarceramento etc (HARVEY, 2008, 2008a; VIANA,
2009; WACQUANT, 2001, 2003, 2008; GARLAND, 2008).
Lumpemproletazação, criminalidade e gatillo fácil na Argentina contemporânea
Com o propósito de compreender a maneira pela
qual se promoveu uma expansão da lumpemproletarização na sociedade argentina contemporânea
acompanhada de uma grande radicalização das lutas sociais, da elevação significativa
da criminalização da pobreza, da criminalidade em geral (delitos à propriedade,
delitos às pessoas, roubo com armas, homicídios, sequestros extorsivos etc.) e
da repressão e violência policial, recorreremos ao processo histórico de
constituição dessa realidade. Para isso nos propomos a analisar nosso objeto de
estudo (o gatillo fácil) à luz das
transformações históricas constituintes de um novo regime de acumulação, nos
termos definidos por Viana (2009).
Não obstante a Argentina tenha sempre pertencido ao bloco de países
capitalistas subordinados na divisão internacional do trabalho, durante décadas
preponderou um modelo de integração de caráter nacional-popular cuja máxima
expressão foi a primeira fase do peronismo (1946-1955). Tal modelo se
constituía de três grandes atributos: economicamente se fundamentava no
desenvolvimento de seu parque industrial e na estratégia de desenvolvimento do
mercado interno. Seu segundo atributo era caracterizado pela apresentação do
Estado como amplo agente promotor da coesão social, através dos investimentos
públicos, e da ampliação da cidadania. Por último, havia uma tendência em
possibilitar uma maior incorporação de parcela significativa das classes
trabalhadoras bem como uma expansão das classes auxiliares da burguesia
(SVAMPA, 2010).
Todavia esse modelo começa a se deteriorar paulatinamente a partir da
década de 1970, se aprofunda durante a década de 1980 e desmantela-se na década
de 1990 com o menemismo (1989-1999). Vejamos como esse processo ocorreu e sua
relação com o objeto central desse estudo.
A primeira tentativa em direção a uma mudança no regime de acumulação
ocorre sob o governo de Isabel Perón (1974-1976) e ficou conhecido como
“Rodrigazo”. Sob direção do ministro da economia Celestino Rodrigo buscou-se
uma reorientação fundamental da economia que visava por fim a economia
nacionalista e reformista, própria do peronismo, e promover uma política de
estabilização e ajuste orientada por uma aliança com o empresariado. Dentre as
consequências de tais políticas, uma se apresenta bastante antipopular: o
aumento de 200% das tarifas dos serviços públicos. No entanto, essa tentativa
encontrou grandes obstáculos nas resistências populares que promoveram uma
greve geral decretada pela Central Geral dos Trabalhadores (CGT) que exigia o
fim imediato do plano de ajuste.
A segunda tentativa na direção dessa reorientação econômica foi
realizada pelo golpe militar de 1976. Assim como em outros países
latino-americanos, a ditadura na Argentina tinha como finalidade reestruturar a
economia segundo os interesses empresariais nacionais e internacionais e para
atingir esse objetivo programava uma política de repressão terrorista. Conforme
Svampa,
o objetivo da
ditadura militar argentina foi levar a cabo uma política de repressão, ao mesmo
tempo que aspirava refundar as bases materiais da sociedade. Em consequência, a
característica introduzida foi dupla: por um lado, mediante o terrorismo de
Estado, apontou para o extermínio e disciplinamento de vastos setores sociais
mobilizados; por outro lado, pois em marcha um programa de reestruturação
econômico-social que produziria profundas repercussões na estrutura social e
produtiva (2010, p. 23).
Os resultados dessa reestruturação modificaria efetivamente a
estrutura socio-econômica argentina uma vez que levou a cabo um modelo
fundamentado na abertura financeira e na importação de bens materiais e
capitais. Consequentemente tais medidas promoveram uma severa redução da
industrialização nacional e proporcionou um imenso endividamento público e
privado, perceptível no aumento incrível da dívida externa que passara de 13
milhões em 1976 a 46 milhões no ano de 1983. Além disso, a ditadura militar
seria responsável pelo processo de deslocamento industrial, acompanhado de uma
vasta expulsão de mão-de-obra, pela expansão do lumpemproletariado, pela
contração da demanda interna, pela deterioração dos salários etc. Juntamente
com isso a classe trabalhadora perdeu o direito a negociações coletivas, o que refletiu
negativamente na distribuição de renda (SVAMPA, 2010).
Diante dessa nova realidade, nascia na
Argentina uma sociedade lumpemproletarizada e atravessada por amplas
desigualdades sociais. O país experimentava o declínio estrutural do modelo
nacional-popular sem contar com nenhuma chave para reencontrar a integração
social de amplos setores populares e auxiliares empobrecidos. Segundo Kessler & Virgilio,
uma das
conseqüências de grande peso econômico e sócio-culturais mais inesperadas que
os setores médios têm sofrido na Argentina foi a de dar origem a um tipo de
pobreza com traços particulares, uma vez iniciado o intenso processo de
empobrecimento sofrido pela sociedade desse país. Basta dizer que entre 1980 e
1990 os trabalhadores em seu conjunto perderam em torno de 40% do valor de suas
rendas, e logo após certa recuperação em 1991 devido à estabilidade, voltaram a
perder em torno de 20% entre 1998 e 2001, com importantes oscilações até hoje.
A profundidade e persistência da crise iniciada em meados da década de 1970
fizeram com que milhares de famílias de classe média e de pobres de longa data,
que no passado conseguiam escapar da miséria, visualizassem suas rendas
declinar abaixo da “linha de pobreza” (2008, p. 32).
A herança deixada pela ditadura militar foi um
país extremamente endividado, governado de forma corporativa, afundado na
corrupção administrativa e com uma tradição política autoritária e violenta. Em
1992 com a chegada de Carlos Menen à presidência consolida-se o colossal
processo de neoliberalização da economia que se iniciara com os governos
militares. O menemismo foi responsável por estabelecer uma nova aliança
política no seio do Partido Justicialista – partido oficial do peronismo –
marcada cada vez mais por um afastamento das burocracias sindicais – aliadas
históricas – e por uma vinculação cada vez mais estreita com as grandes
corporações empresariais desejosas de uma reforma estatal de cunho neoliberal.
A década de 1990 veria consolidar os planos de
ajustes que vinha se constituindo desde a década de 1970 e que seria expresso
em uma diversidade de medidas: estabilização econômica, liberalização da
economia, plano de convertibilidade e reforma do Estado. Não nos deteremos nos
detalhes dessas medidas, mas tão somente nas suas consequências sociais que,
para os propósitos desse estudo, são de importâncias fundamentais.
Em linhas gerais o novo regime de acumulação
(integral) caracterizou-se por um modelo de “modernização excludente” (BARBEITO
& LO VUOLO apud SVAMPA, 2010), visto que na década de 1990, apesar do
crescimento de 28% da População Economicamente Ativa, o desemprego cresce 153%
e o subemprego 115,4%. Tal modernização
foi marcada por um incremento da produtividade com insuficiente produção de emprego
e crescente precarização das relações de trabalho. Juntamente com isso,
milhares de pequenas e médias empresas decretaram falência visto que as mesmas
não se encontravam em pé de igualdade para concorrer com a invasão de produtos
externos.
Figura 01: Evolução do desemprego e subemprego
na Argentina (1990-2002).
Fonte: Ministério do
Trabalho, Boletim de Estatísticas Laborais, 2003. Em: www.trabajo.gov.ar Acessado em: 08/07/2012.
Outra exigência fundamental do novo regime de
acumulação foi a reforma geral do Estado. Essa foi caracterizada por uma
drástica redução dos gastos públicos, descentralização administrativa,
transferência das responsabilidades públicas para iniciativas privadas e
gigantesca privatização de empresas estatais. Essa última revela a estreita
relação entre a construção do Estado neoliberal argentino e os interesses do
neoimperialismo, uma vez que quase todos os serviços básicos e essenciais à
sociedade argentina se encontrarão, a partir daí, nas mãos de corporações
estrangeiras com plena liberdade para elevar as tarifas de tais serviços
(eletricidade, fornecimento de água, telefonia, gás, transportes públicos,
combustíveis etc.).
Seguindo as análises de Maristella Svampa
(2010) é possível perceber o forte impacto negativo nos empregos públicos,
derivado do processo de desmantelamento das obrigações do Estado, a partir das
privatizações dos principais serviços estatais:
Em cifras absolutas, se considerarmos somente as setes empresas mais
importantes do setor (telefonia, correios, transporte aéreo, gás, água, energia
e transporte ferroviário), até 1985 havia 243.354 funcionários do setor
público. Em 1998, haviam reduzidos a 75.770. No geral as demissões massivas se combinarão
com planos de demissão mais ou menos compulsivos, implementados em um lapso
muito breve, durante o período prévio da privatização, quando as empresas eram
declaradas “sujeitas a privatização”. Dessa maneira se habilitavam planos
draconianos de racionalização, em mãos de todopoderosos interventores que
respondiam diretamente ao Poder Executivo. Assim, entre 1991 e 1992, a redução
do emprego prejudicou nada menos que a 100.000 trabalhadores do setor público
(SVAMPA, 2010, p. 40).
Aliados, os processos de privatização e o
intenso deslocamento de indústrias para outros países foram responsáveis pela expansão do
lumpemproletariado e do lançamento de mais de 50% da população abaixo da “linha
da pobreza” e um crescimento vertiginoso da população na indigência. A paisagem
urbana de diversas regiões do país se modificou completamente. Regiões que
antes eram conhecidas como importantes cordões industriais (Grande Buenos
Aires, Rosário e Córdoba) se transformaram em verdadeiros cemitérios de
fábricas abandonadas e outras regiões conhecidas por fornecerem os principais
combustíveis do país se tornaram espécie de “territórios fantasmas”
completamente abandonados.
Figura 02 – Evolução
da população (%) abaixo da linha da pobreza e da indigência. Grande Buenos Aires
Fonte: Ministério de Desenvolvimento Social e do Trabalho da Nação Argentina
(2006). Em: MINUJIN & ANGUITA, Eduardo, 2004, p. 50.
Diante dos efeitos desintegradores da acumulação
integral diversas organizações populares insurgiu com o intuito de promover uma
resistência a esse quadro dramático e assustador e, na medida do possível,
impor freio ao avanço do mesmo. Sem sombra de dúvidas um dos principais
protagonistas da resistência ao neoliberalismo e suas consequências foi o
movimento de desempregados conhecido como Movimento Piqueteiro[3].
No início dos anos 90, em diversas regiões
petrolíferas do país que sofreram com o desemprego em massa, derivado do
processo de privatização, iniciou-se um movimento de pressão popular
caracterizado pela exigência de trabalho, de subsídios para garantir a
sobrevivência, pois a maioria dos piqueteiros passava a “viver” abaixo da
“linha da pobreza”, sem direito a alimentação, moradia, saúde etc., pelo caráter
assembleiario de suas decisões e forma organizacional e, principalmente, por
sua ação direta no enfrentamento contra as forças repressivas. Além disso, esse
movimento tinha como principal ferramenta de luta o bloqueio de estradas
(piquetes) fundamentais para a circulação de mercadorias. Diante da
incapacidade do poder público em atender as reivindicações do movimento e da
expansão do mesmo para diversas províncias do país, iniciou-se uma intensa
política de repressão institucional e criminalização do protesto social na
Argentina (KOROL & LONGO, 2009). E aqui começa a se revelar a face penal do
neoliberalismo argentino que a partir de agora prenderá nossa atenção.
Durante quase toda a década de 1990 houve
manifestações contrárias às consequências sociais das políticas neoliberais e
em diversas delas houve enfrentamento com as forças policiais que
paulatinamente foi ampliando suas práticas repressivas e o grau de violência no
tratamento com os manifestantes. Uma prática comum das forças repressivas
institucionais foi o gatillo fácil
que é caracterizado pela CORREPI – Coordenadoria contra a Repressão Policial e
Institucional[4]
-, uma organização política de denúncias contra os direitos humanos na
Argentina, como “execuções sumaríssimas aplicadas pelas forças policiais e que
no geral tendem a ser ocultadas como ‘enfrentamentos’. Esta ‘pena de morte
extra-legal’ se distingue por duas etapas: o fuzilamento e o encobrimento”. A
partir de agora gostaríamos de apresentar alguns exemplos de casos de gatillo fácil que reforça a tese segundo
a qual o que vem ocorrendo na Argentina entre a década de 1990 até o ano de
2002 (momento ápice da rebelião argentina) é uma tentativa anti-democrática de
criminalizar e silenciar os protestos e lutas sociais legítimas:
Tabela 01 – Resumo de casos de gatillo
fácil na repressão seletiva contra os contestadores sociais:
Data/Local
|
Vítimas
de gatillo fácil
|
Descrição
|
12/04/1995
Tierra del Fuego
|
Víctor Choque
|
37 anos, operário da construção assassinado pela policial local
durante uma mobilização.
|
12/04/1997
Cutral Có
|
Teresa Rodríguez
|
24 anos, empregada doméstica assassinada pela ação da Gendarmería[5]
durante uma manifestação docente.
|
17/12/1999
Ponte que liga as províncias Corrientes e
Chaco
|
Mauro Ojeda e Francisco Escobar
|
18 anos, desempregado e 25 anos, cartonero. Ambos assassinados à
queima roupa pela Gendarmería na ocupação da ponte Manuel Belgrano.
|
09/05/2000 Puebladas em General Mosconi e
Tartagal – Província de Salta
|
Orlando Justiniano e Matías Goméz
|
21 anos e 18 anos respectivamente. Ambos assassinados pela polícia
provincial.
|
10/11/2000
General Mosconi e Tartagal – Província de
Salta
|
Aníbal Verón
|
37 anos, motorista da empresa de transporte Atahualpa. Assassinado
com um tiro no rosto pela Gendarmería, durante o bloqueio da estrada 34.
|
Junho de 2001
General Mosconi e Tartagal
|
Oscar Barrios e Carlos Santillán
|
17 anos e 27 anos respectivamente. Ambos desempregados (piqueteiros)
e assassinados pela polícia provincial em um bloqueio de estrada.
|
19 e 20/12/2001
Diversas cidades do país
|
37 pessoas assassinadas
|
Rebelião generalizada em diversas cidades do páis com epicentro na
Capital Federal (Buenos Aires) que caracterizou uma profunda crise
institucional[6].
|
06/02/2002
Cidade de El Jagüel
|
Javier Barrionuevo
|
31 anos, desempregado e militante de um Movimento de Trabalhadores
Desempregados – MTD. Assassinado no bloqueio da estrada 205.
|
26/06/2002
Cidade de Buenos Aires
|
Darío Santillán e Maximiliano Kosteki
|
21 anos e 22 anos respectivamente. Ambos militantes de organizações
piqueteiras e executados sumariamente pela polícia de Buenos Aires durante
uma intensa repressão promovida por diversas forças policiais à tentativa de
ocupação da
Ponte Pueyrredón.
|
Fonte: KOROL, Claudia & LONGO, Roxana. Criminalización de los movimientos sociales
en Argentina – Informe general. IN: KOROL, Claudia (org.) Criminalización de la pobreza y de la
protesta social. Buenos Aires: El colectivo, America libre, 2009.
O crescente processo de criminalização dos
movimentos sociais e de seus protestos em várias regiões do mundo, e
particularmente na Argentina, exprime outra face do Estado neoliberal e de sua
determinação em tornar regular a dinâmica da acumulação integral. Para isso,
ele precisar criminalizar a pobreza e os movimentos sociais de luta contra a
mesma, pois um combate efetivo à pobreza e ao desemprego já não constitui algo
que se possa visualizar no interior desse regime de acumulação. Além disso, a
emergência de lutas sociais com tendências cada vez maiores à radicalização
pressiona o Estado e obstaculiza cada vez mais o processo de acumulação. Eis a
função da criminalização do protesto social derivado do crescente processo de lumpemproletarização.
A trajetória histórica de avanço dos índices
de desemprego, subemprego, indigência e pobreza na Argentina entre os anos de
1990-2003 coincide com o avanço das taxas de delito em geral. Isso nos
possibilita indagar: Existe uma relação concreta entre lumpemproletarização, pobreza
e criminalidade? Acreditamos que sim. Contudo não se trata de uma relação
mecânica, causal, mas sim, complexa e envolvida por uma multiplicidade de
determinações que não cabe aqui serem discutidas.
Os anos de 1990 na Argentina, assim como em vários
outros países latino-americanos, presencia uma escalada surpreendente das taxas
de delitos tais como homicídios, roubos com armas, furtos etc. (CIAFARDINI,
2006). Os gráficos a seguir são demonstrativos de tal escalada:
Figura
03 – Evolução da taxa de delitos.
Fonte: Registro Nacional de Reincidência (até 1998) e Direção Nacional
de Política Criminal (1999 em diante). Ministério da Justiça da República
Argentina. Em: CIAFARDINI, 2006, p. 57.
Figura 04 - Evolução, em porcentagem, de
vítimas de roubo com armas.
Fonte: Pesquisas de vitimização, Direção Nacional de Política
Criminal, Ministério da Justiça da República Argentina. Em: CIAFARDINI, 2006,
p. 62.
A explicação mais convincente para o
crescimento exponencial dos delitos em geral na Argentina é, sem sombra de
dúvidas, o amplo processo de lumpemproletarização e o consequente
empobrecimento que tem experimentado quase metade da população nacional entre
os anos de 1990 e 2003. O imenso processo de deterioração das condições
socioeconômicas afeta diretamente os jovens. O processo de neoliberalização
globalizada atingira duramente a juventude que sofrera com o intenso avanço de
desinstitucionalização (crise da escola, crise da família etc.) e de
desestruturação do mercado de trabalho na Argentina desse período (SVAMPA,
2010). Segundo Svampa,
em maio de 1995,
quando o país alcançou seu primeiro recorde histórico de desemprego (18%), o
desemprego dos jovens da Área Metropolitana de Buenos Aires alcançava 34,2%. Em
novembro de 1999, os jovens desempregados (entre 15 e 24 anos) duplicavam a
taxa nacional de desemprego, alcançando 27%. As cifras indicavam também que 40%
dos jovens estavam abaixo da linha de pobreza. Contudo, dados mais recentes
assinalam que 6 de cada 10 jovens são pobres; isto é, 5.500.000 pessoas entre
15 e 29 anos (2010, p. 172).
A falta de experiência e qualificação laboral,
juntamente com uma formação escolar débil faz dos jovens uma clientela
preferencial para todo tipo de trabalho precário e condições vulneráveis de
existência, uma vez que as empresas de organização integral contam com suas
“capacidades maleáveis” e inexperiência sindical de lutas e resistências.
Diante desse panorama não é difícil perceber que muitos desses jovens também
sobrevivem nas franjas da ilegalidade da “economia das ruas” (WACQUANT, 2008).
Obviamente eles se tornaram as maiores vítimas do controle, disciplinamento
compulsivo e repressão preventiva efetuado pelos aparatos repressivos da
polícia, assim como as maiores vítimas de gatillo
fácil e de diversas outras arbitrariedades extremamente violentas e letais
praticadas cotidianamente por diversos policiais (ALES, 2009; SVAMPA, 2010).
Para corroborar a afirmação segundo a qual são
os jovens pobres as maiores vítimas do controle e disciplinamento compulsivo
efetuado pela polícia, assim como as maiores vítimas de gatillo fácil, utilizaremos dos registros de duas organizações de
investigação e defesa dos direitos humanos na Argentina. Trata-se do Centro de
Estudos Legais e Sociais (CELS[7])
e da Coordenadoria contra Repressão Policial e Institucional (CORREPI).
Uma particularidade presente em quase todos os
casos de gatillo fácil ocorridos na
Argentina está nas formas como as execuções são realizadas. As vítimas
geralmente são: jovens confundidos com outros jovens, jovens em fuga ao
praticar um delito, vítimas de abuso de autoridade que resultam em mortes nas
revistas policiais (o famoso baculejo), jovens executados por estarem em
lugares e horários suspeitos etc. Juntamente com isso, outra particularidade
envolta nesses casos é fornecida pela “justificativa” da instituição policial
que quase sempre alega que a morte foi provocada por enfrentamento com a
polícia, que constantemente implanta armas nos locais em que ocorre o gatillo fácil.
De acordo com a base de dados do Centro de
Estudos Legais e Sociais (CELS), a violência promovida pelas instituições de
segurança (polícia em geral) tem gerado na última década 2.753 vítimas fatais
somente na região metropolitana de Buenos Aires. Em meio a toda essa violência
existe um amplo leque de situações envolvendo a participação de policiais:
execuções sumárias, enfrentamentos armados, abuso da força, torturas seguidas
de morte, pessoas assassinadas em protestos sociais, crimes efetuados por
policiais por motivos particulares e casos graves de violência efetuado por
policiais no interior de relações familiares etc. (PALMIERI, 2008).
A revista da CORREPI O Anti represivo de novembro de 2010 aponta que desde dezembro de
1983 até novembro de 2010 a polícia argentina havia assassinado 3.093 pessoas e
mais da metade, 1.634, ocorreram sob o governo dos Kirchner que “tanto gosta de
se autoproclamar como governo dos DDHH” (CORREPI, 2010). Entre novembro de 2009
e novembro de 2010, aproximadamente, ocorreram 220 casos de mortes por gatillo fácil e torturas no cárcere,
prisões e institutos de menores infratores.
Figura 05 - Pessoas mortas em atos violentos com participação de
policiais na região Metropolitana de Buenos Aires.
Fonte: Base de dados do Centro de Estudos Legais e Sociais.
Nota: Além de funcionários policiais, se incluem membros de todas as
instituições estatais que exercem o papel de força de segurança na
representação do Estado: Forças armadas, serviços penitenciários, forças de
segurança federais (Gendarmería Nacional, Polícia de Segurança Aeroportuária,
Prefeitura Naval Argentina).
No fundo o que vem ocorrendo em todo o
território argentino, especialmente na região da Grande Buenos Aires, é uma
política estatal de repressão preventiva contra a possibilidade de emergência
de novas organizações populares nos bairros pobres[8], e
contra os delitos cometidos pela juventude lumpemproletária contra a
propriedade. Uma prova disso é o crescente processo de militarização dessas
áreas cujos habitantes vivem em constante processo de vigilância e controle por
parte das instituições de segurança.
Outro elemento que reforça a tese segundo a
qual o Estado neoliberal equivale a um Estado Penal (Wacquant, 2001) e,
consequentemente, suas ações apontam para uma maior repressão e criminalização
dos setores mais pobres da sociedade é fornecido pelo aumento significativo dos
investimentos governamentais na polícia. O caso mais visível é o da
Gendarmería, visto que
desde 1938, data de
sua criação em plena “década infame”, até agora, nunca a gendarmería havia sido
tratada com tanta consideração, especialmente, por parte dos governos vigentes.
Basta assinalar que em 2011 seus recursos se viram incrementados em 23%,
porcentagem que está acima de qualquer outro setor do gasto público e que sua
participação na distribuição dos gastos de segurança interna passou, nestes 08
anos do governo dos Kirchner, de 31% em 2002, (frente aos 42% que ostentavam a
Polícia Federal), a uma quase paridade com a “federal”, em torno de 38% dos
gastos, mas com apenas 42.000 efetivos frente aos quase 60.000 da polícia
federal (ROCCHIO, 2011, p. 07).
O “Operativo Centinela”, colocado em prática desde
o final de 2010, mantém aproximadamente 6.000 gendarmes controlando o Conurbano
Bonaerense (região metropolitana de Buenos Aires) e, a partir de julho de 2011,
2.500 gendarmes e outros patrulheiros passaram a exercer um controle diário
sobre os bairros localizados ao sul da cidade de Buenos Aires sob a marca do
“Operativo Unidade Cinturão Sul”. Isto é, o Estado argentino vem promovendo uma
verdadeira militarização dos bairros pobres da cidade de Buenos Aires e de sua
região metropolitana com o intuito de coibir a reorganização dos movimentos
sociais emergidos durante a grande rebelião argentina e reprimir os delitos
contra a propriedade privada.
Em síntese, além de promover uma
criminalização dos movimentos sociais, juntamente com uma repressão violenta
dos seus militantes, que conforme demonstrou a tabela 01, são constantemente
vítimas de gatillo fácil, o Estado
neoliberal argentino vem promovendo uma criminalização e repressão violenta dos
setores mais pobres de sua sociedade. Acredita-se que a política estatal de
repressão preventiva argentina execute em média um jovem por dia em casos de gatillo fácil, tortura na prisão e
delegacias. Segundo informações da CORREPI (2011a), no ano de 2010 foram
registradas mais de 300 mortes promovidas pelas forças de repressão argentinas.
Desde o retorno da democracia no ano de 1983, a repressão preventiva pôs fim a
quase 3.400 vidas. Em sua maioria, jovens habitantes de bairros pobres, nos
quais dois terços possuíam menos de 35 anos. O Banco de dados da CORREPI mantém
atualizado desde 1996 os casos de gatillo
fácil que revela em seus gráficos um acumulo hediondo: 1996 (ano) – 262
(casos), 1997 – 382, 1998 – 471, 1999 – 635, 2000 – 833, 2001 – 1008, 2002 – 1292, 2003 –
1508, 2004 – 1684, 2005 – 1888, 2006 – 2114, 2007 –
2334, 2008 – 2557, 2009 – 2826, 2010 – 3093, 2011 – 3393
(CORREPI, 2010a).
Para a CORREPI, todos esses casos são
reveladores daquilo que há anos ela vem denunciando e combatendo, isto é, que o
gatillo fácil é uma política de
Estado. O Estado neoliberal argentino substitui a face social do Estado por sua
face penal que paulatinamente se apresenta como uma espécie de panoptismo social (Wacquant, 2008;
Foucault, 2009). Além do mais, o endurecimento das práticas repressivas e dos
milhares de casos de gatillo fácil
equivale a uma nítida política de repressão contrarebelião preventiva que, nos
termos de Foucault (2009), visa disciplinar e docilizar os corpos, mas não
quaisquer corpos, tão somente dos jovens pobres das periferias argentinas
apresentados como “populações sobrantes”
compostas por “classes perigosas”.
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duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo, 2008.
*
Doutorando em
Sociologia no Programa de Pós-graduação da Faculdade de Ciências Sociais/Universidade
Federal de Goiás.
[1] Em nossa análise, o
lumpemproletariado é ressignificado na contemporaneidade a partir de uma teoria
marxista das classes sociais. No entanto, não ficamos presos à análise que Karl
Marx realiza sobre o lumpemproletariado, o que não significa que abandonamos as
contribuições desse autor para pensar tal classe social, mas tão somente que
procuramos ir além dele sem necessariamente abandoná-lo. Em outras palavras,
utilizamos as contribuições existentes ao longo de sua vasta obra para pensar o
conceito de classes sociais. Dessa forma, afirmamos que o lumpemproletariado é
composto pela totalidade do exército industrial de reserva (desempregados,
subempregados, mendigos, sem-teto, prostitutas etc.) uma vez que os indivíduos
que compõem essa totalidade possuem características em comum e que possibilitam
sua definição como classe, da mesma forma divisões apontadas pelo conceito de
frações de classe. Assim como as demais classes sociais do capitalismo, é o seu
modo de vida que possibilita sua unificação como classe. No entanto, ao
contrário das demais classes sociais que são unificadas a partir da sua posição
na divisão social do trabalho capitalista, o lumpemproletariado se unifica pela
condição de marginalidade na divisão social do trabalho e tal condição o torna
uma classe social (VIANA, 2012).
[2] Para Viana, “um regime de
acumulação é um determinado estágio do desenvolvimento capitalista, marcado por
determinada forma de organização do trabalho (processo de valorização),
determinada forma estatal e determinada forma de exploração internacional”
(2009, p. 30).
[3] Para maiores informações sobre o movimento
piqueteiro ver: (MERKLEN, 2005); (SVAMPA & PEREYRA, 2009).
[5] A Gendarmería equivale a uma polícia especial
desenvolvida originalmente para atuar nas regiões de fronteira argentina, mas
que após a eclosão das lutas sociais radicalizadas no final da década de 1990
foi utilizada constantemente e especialmente no combate à ocupação de fábricas
e corte de ruas e estradas praticado pelo movimento operário e pelos movimentos
piqueteiros. A mesma foi responsável por diversos casos de gatillo fácil contra militantes sociais em toda a Argentina.
[6] Para
acessar a lista de nomes das pessoas assassinadas nessa rebelião ver: KOROL, Claudia & LONGO, Roxana. Criminalización de los movimientos sociales en Argentina – Informe
general. IN: KOROL, Claudia (org.) Criminalización
de la pobreza y de la protesta social. Buenos Aires: El colectivo, America
libre, 2009.
[8] As primeiras organizações de desempregados
que promoveram grande pressão popular contra o processo de neoliberalização e
lumpemproletarização na Argentina emergiram a partir das organizações
territoriais existentes em diversos bairros do Conurbano Bonaerense, que, a
partir de 1997, constituíram um espaço privilegiado de militância e ação
política independente das estruturas hierárquicas dos partidos políticos e
sindicatos. Nesse sentido os bairros forneceram um lócus de militância
inovadora e ameaçadora para o poder constituído.
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