Toda forma estatal expressa
determinada correlação de forças na luta de classes. O neoliberalismo é
expressão de uma violenta ofensiva capitalista contra as classes trabalhadoras
em geral e suas conquistas sociais históricas, visando proporcionar a retomada
da acumulação capitalista. Dessa maneira, o Estado neoliberal se apresenta como
um complemento de toda uma mudança estrutural, necessária para a emergência do
novo regime de acumulação, atuando no campo da regularização das novas relações
sociais imprescindíveis à efetivação da acumulação integral de capital e,
conseqüentemente, da restauração do poder de classe da burguesia (VIANA, 2009).
Com a vitória de Ronald
Reagan à presidência dos Estados Unidos em 1980, inicia-se a era da
liberalização econômica, da desregulamentação dos mercados e das relações
trabalhistas, dos cortes de impostos para as corporações capitalistas, cortes
orçamentários públicos e dos ataques à classe operária e a outros trabalhadores
em geral. Um caso exemplar dessa nova ofensiva do capital sobre o trabalho nos
Estados Unidos pode ser percebida no duro golpe aplicado contra os sindicatos
dos controladores de vôo (PATCO) no ano de 1981 e do impacto negativo que os
salários sofreriam a partir desse ano. De acordo com Harvey, a derrota desse
sindicato para Reagan, na greve de 1981, marcou
um ataque generalizado aos
poderes do trabalho organizado no próprio momento em que a recessão inspirada
em Volcker produzia altas taxas de desemprego (de ao menos 10%) [...] O efeito
global sobre a condição do trabalho foi dramático – talvez melhor captado pelo
fato de o salário mínimo federal, que era paritário ao nível de pobreza em
1980, ter caído para 30% abaixo desse nível por volta de 1990. Iniciou-se
assim, com vigor, o longo declínio sobre os níveis dos salários reais (2008a,
p. 34).
Para
melhor compreendermos as lutas de classes como o motor propulsor das mudanças
nas formas estatais e nas tentativas de reconstrução do poder de classe da
burguesia e de suas classes auxiliares, nos Estados Unidos, resgataremos as
batalhas urbanas dos anos de 1960 na cidade de Nova York e seus principais
desdobramentos. Segundo Harvey (2008a), há décadas a reestruturação capitalista
e o processo de desindustrialização vinha corroendo a base econômica de Nova
York e promovendo um amplo processo de suburbanização e empobrecimento da
população residente no centro da cidade. Em resposta a esse empobrecimento, uma
onda explosiva de revoltas sociais dominou a cidade dando origem ao episódio
que ficou conhecido como “crise urbana”. No primeiro momento, o governo federal
procurou resolver a crise com a promoção da expansão do emprego e serviços
públicos, no entanto diante das crises fiscais federais, o presidente Nixon se
vê obrigado a abandonar essa prática sob a alegação de que o problema da “crise
urbana” não mais existia. No fundo isso significaria que os recursos federais
não mais chegariam à Nova York.
Com o avanço da recessão, as
distâncias entre a receita e os gastos da cidade se ampliaram e no primeiro
momento as instituições financeiras conseguiram contornar a situação, mas a
partir de 1975, os principais banqueiros se recusam a rolar a dívida e Nova
York foi à bancarrota técnica. Após a
bancarrota, diversas novas instituições foram criadas para administrar o
orçamento da cidade e a maneira pela qual a mesma passou a ser administrada
(congelamento de salários, cortes drásticos no emprego público e na manutenção
de serviços sociais – educação, saúde pública, serviços de transporte – etc.)
nos oferece um cardápio do receituário neoliberal que se tornaria dominante daí
pra frente nos EUA:
a administração da crise
fiscal de Nova York abriu pioneiramente o caminho para as práticas neoliberais,
tanto domesticamente, sob Reagan, como internacionalmente por meio do FMI na
década de 1980. Estabeleceu o princípio de que, no caso de um conflito entre a
integridade das instituições financeiras e os rendimentos dos detentores de
títulos, de um lado, e o bem-estar dos cidadãos, de outro, os primeiros devem
prevalecer. Acentuou que o papel do governo é criar um clima de negócios
favorável e não cuidar das necessidades e do bem-estar da população em geral. A
política do governo Reagan nos anos 1980, conclui Tabb, foi “apenas o cenário
de Nova York” dos anos 1970 “bastante ampliado” (Ibid, 2008a, p. 58).
Em
poucos anos quase todas as conquistas da classe trabalhadora de Nova York foram
destruídas, suas infra-estruturas sociais e físicas (metrô, por exemplo) foram
sucateadas e a própria classe trabalhadora foi novamente lançada a uma condição
de vida precária, quando não lumpemproletarizada[2]: reflexo da luta de classes
marcada por uma contra-ofensiva do capital.
Em nome dos “negócios favoráveis” a população
pobre do centro de Nova York foi expulsa pela especulação imobiliária e
obrigada a sobreviver da “economia ilegal das ruas” nos subúrbios, que passaram
a experimentar um alto índice de desemprego, mortalidade juvenil, consumo de
crack entre jovens desempregados, crescimento da população sem-teto e da
criminalização da pobreza (HARVEY, 2008a). Dessa maneira,
a redistribuição de renda
através da violência criminosa se tornou uma das poucas opções reais para os
pobres, e as autoridades reagiram criminalizando comunidades inteiras de
pessoas empobrecidas e marginalizadas. As vítimas foram consideradas culpadas e
[Rudolf] Giuliani, o então prefeito, ficou famoso pela vingança que promoveu em
favor de uma burguesia cada vez mais abastada de Manhattan, cansada de ter de
enfrentar na porta de casa os efeitos dessa devastação (HARVEY, 2008a, p.
57-58).
A
partir da década de 1970, e principalmente com a neoliberalização da economia
norte-americana na década de 1980, as conseqüências sociais do que ocorreu em
Nova York pôde ser percebida em diversas outras cidades do país, que passaram a
conviver com altas taxas de desemprego, subemprego, trabalhos precários,
salários-miséria, alto índice de criminalidade, tráfico de drogas e toxicomania
juvenil, violência generalizada, crescimento do número de sem-tetos,
mendicância etc. Percebe-se que sob a vigência do regime de acumulação integral[3], tais índices (anti)sociais
não são mais exclusivos de países de capitalismo subordinado, mas passa a fazer
parte também da realidade social de países de capitalismo imperialista tal como
os Estados Unidos, que vem experimentando um processo de expansão da
lumpemproletarização. As análises de Wacquant, assim como de outros autores[4], comprovam esse processo:
entre 1978 e 1990,
o condado de Los Angeles perdeu cerca de 200 mil postos de trabalho, dos quais
a maior parte era de empregos industriais sindicalizados e de salários altos,
ao mesmo tempo que recebia um influxo de 1
milhão de imigrantes. Muitos desses postos foram perdidos para vizinhos de
minorias na área de South Central e para comunidades de inner cities, onde programas e investimentos públicos estavam sendo
simultaneamente cortados de forma drástica (Johnson et al.,1992). Como
conseqüência, o desemprego em South Central ultrapassa 60% entre os jovens
latinos e negros e a economia ilegal da droga tornou-se a fonte mais confiável
de emprego para muitos deles (WACQUANT, 2005, p. 32).
A
obra Cidade de Quartzo (1993), do geógrafo
Mike Davis, fornece um quadro assolador sobre o abandono e miséria em que se
encontrava a classe trabalhadora, formada majoritariamente por negros, nos
subúrbios de Los Angeles a partir da década de 1970. Segundo Davis, entre
1978-1982 a economia industrializada de Los Angeles entra em colapso, pois não
suporta a concorrência gerada pelas importações japonesas. Das doze maiores
fábricas do setor espacial existentes na região da Califórnia Meridional dez se
tornarão inativas a partir da concorrência asiática. Nas regiões onde as
fábricas e depósitos não sucumbiram, foram transferidas, em número aproximado
de 321 firmas desde 1971, para outros parques industriais com oferta de
mão-de-obra mais atrativa. O resultado catastrófico para a população local foi
apresentado por um comitê de investigação do Legislativo da Califórnia em 1982
que confirma “a destruição econômica resultante nos bairros do Centro-Sul: o
desemprego cresceu em quase cinqüenta por cento desde o começo dos anos
setenta, enquanto o poder aquisitivo da comunidade caiu em um terço” (DAVIS,
1993, p. 269). Com a chegada da década de 1980 é possível perceber uma escalada
surpreendente da lumpemproletarização juvenil da população negra dos guetos de
Los Angeles, pois
o desemprego entre os negros
jovens do condado de Los Angeles – a despeito do crescimento regional
ininterrupto e de uma nova explosão de consumo acelerado – permaneceu num
assustador 45 por cento no decorrer dos anos oitenta. Uma pesquisa de 1985
sobre projetos de habitação pública no gueto descobriu que havia apenas 120
trabalhadores empregados em 1060 domicílios em Nickerson Gardens, setenta em
quatrocentos em Pueblo del Rio, e cem em setecentos em Jordan Downs. A escala
de demanda reprimida por empego manual decente foi vividamente demonstrada há
poucos anos, quando cinqüenta mil jovens,
predominantemente negros e chicanos, fizeram uma fila de quilômetros para se
candidatar a umas poucas vagas na estiva de San Pedro [...] Correlacionada ao
posicionamento periférico dos negros da classe trabalhadora na economia está a
dramática juvenilização da pobreza
entre todos os grupos étnicos do gueto. Em termos estaduais, a percentagem da
pobreza dobrou (de 11 por cento para 23 por cento) em relação à última geração.
No Condado de Los Angeles, durante os anos oitenta, tristes quarenta por cento
das crianças viviam abaixo ou logo acima do limite de pobreza oficial. As áreas
mais pobres do condado, além disso, são invariavelmente as mais jovens: de
sessenta e seis domicílios do censo (em 1980) com rendas familiares médias de
menos de 10 mil dólares, mais de 70% possuíam uma idade média de apenas 20-24
anos (o restante, 25-29). (Ibid, 1993, p. 270).
Realidade
semelhante foi experimentada pelo “hipergueto” da cidade de Chicago nesse mesmo
período. Além das razões fundamentais que levaram à transição do regime de
acumulação intensivo-extensivo para o regime de acumulação integral, existem
outras determinações específicas da realidade norte-americana e que explicam a
expansão do lumpemproletariado na cidade de Chicago. Dentre elas, merece
destaque a saturação dos mercados internos, a partir de meados da década de
1960, provocada pela competição internacional, pela busca por uma maior
mobilidade do capital visando encontrar condições mais atrativas para o
processo de acumulação, pela ampla redução de proteções aos assalariados etc. A
partir do momento em que uma economia baseada na produção industrial, no
consumo de massa e na existência de sindicatos fortes, que garantiam aos
trabalhadores estabilidade no emprego, salários altos etc. foi sendo
substituída por uma economia predominantemente apoiada nas ocupações de
serviços, fundamentada no capital financeiro e no sucateamento das economias
regionais, uma gigantesca transformação atingiu as relações trabalhistas, os
mercados de trabalho e os níveis salariais (WACQUANT, 2005).
Por conta dessas mudanças no
mercado de trabalho, juntamente com a política de extermínio generalizado de
todo e qualquer tipo de assistência pública, as contradições sociais no gueto
tem se ampliado rapidamente. O crescimento acentuado do desemprego e do
subemprego tem sido acompanhado pelo aumento incrível da criminalidade, do
assassinato e do tráfico e consumo de drogas. Isso tem promovido uma crescente
fuga da “classe média”, que leva consigo as redes de comércio e parcela da
renda que possibilitava uma movimentação econômica mínima na região. Dessa
forma, o gueto tende a se tornar um espaço típico do “salve-se quem puder e da
forma como puder”, pois,
além
da economia da droga e do mercado informal – cujo desenvolvimento é visível em
outros setores da economia norte-americana, inclusive os mais avançados – o
coração do gueto assistiu a uma proliferação de pequenos ‘negócios’
subproletários [lumpemproletários, LB] típicos das cidades do Terceiro Mundo:
comerciantes de rua, vendedores de jornais, cigarros ou refrigerantes por
unidade, carregadores, manobristas, diaristas etc. Não existe área do South Side
sem táxi clandestinos, mecânicas ilegais, clubes noturnos e meninos que
oferecem para carregar sacolas na saída do supermercado local ou encher o
tanque do carro no posto de gasolina, em troca de alguns trocados. Tudo pode
ser comprado ou vendido nas ruas, desde bolsa Louis Vuitton falsificadas (a 25
dólares cada), até carros roubados, armas (trezentos dólares por uma ‘arma
limpa’, em geral, ou a metade por uma ‘suja’), roupas com defeito, comida
caseira e bijuterias. A economia dos jogos de azar – bingos, loterias, loto,
jogos ilegais de cartas e dados – não conhece recessão” (WACQUANT, 2008, p.
42-43).
Com o crescimento vertiginoso do desemprego e
do subemprego, a partir da década de 1970, em várias cidades[5] dos Estados Unidos, outras
frações do lumpemproletariado se expandiram por todo o país. Dentre elas ganha
destaque a fração composta por sem-tetos. Um estudo realizado por Snow e
Anderson (1998) nos possibilita apreender a expansão dessa fração do
lumpemproletariado após a década de 1980, na cidade de Austin (Texas). A
pesquisa demonstra que a partir dessa década, ocorre uma gigantesca
proliferação de sem-tetos em quase todas as cidades norte-americanas. De acordo
com o Exército da Salvação (Entidade cristã-protestante beneficente) de Austin,
o atendimento a moradores de rua cresceu mais de 100% em 1985 se comparado com
o ano de 1979 (SNOW & ANDERSON, 1998).
Que multiplicidade de
determinações envolve o crescimento acelerado do número de sem-tetos em
diversas cidades norte-americanas? Antes mesmo do regime de acumulação integral
se tornar uma realidade nos EUA, já havia uma quantidade significativa de
desempregados que sobreviviam, em grande parte, à custa de algum programa
federal de assistência social. Isso possibilitava que essa fração do lumpemproletariado
tivesse acesso há alguns bens básicos, tais como alimentação, moradia (de baixa
renda) etc. e, conseqüentemente, isso camuflava e contornava esse problema
social. Porém, a partir da década de
1970 essa realidade já não é mais a mesma, pois junto com o crescimento
acelerado de desempregados, o Estado Neoliberal irá promover um corte drástico
em diversas políticas de assistência social, inclusive na diminuição da
assistência à moradia:
o desaparecimento de
quantidade cada vez maiores de unidades habitacionais de baixa renda – 2.5
milhões de unidades desde 1980, de acordo com algumas estimativas – pode ser
atribuído essencialmente à conjunção de indiferenças governamental e de forças
de mercado tais como o aburguesamento e o abandono. A primeira se refletia
claramente na diminuição do apoio governamental a programas habitacionais para
os pobres durante a administração Reagan. Quando as iniciativas habitacionais
para todos os programas habitacionais de baixa renda do Housing and Urban
Development (HUD) diminuíram de cerca de 183.000 unidades em 1980 para cerca de
28.000 em 1985, um observador argumentou que não apenas a administração Reagan
estava declarando guerra contras os programas habitacionais para os pobres, mas
estava também procurando reverter “o compromisso de 50 anos do governo federal
para com esses programas” (SNOW & ANDERSON, 1998, p. 381).
Aliado
a essa política de diminuição de investimentos federais em programas
habitacionais para a população de baixa renda, outros fatores somam-se como determinantes
no aumento da população de sem-tetos nos EUA. O grande número de desempregados
nas principais cidades americanas, juntamente com o crescimento acelerado da
pobreza nos EUA e das desigualdades sociais em geral[6], provocaram o aumento pela
procura de habitações de baixa renda e, conseqüentemente, a diminuição da
oferta desse tipo de habitação[7]. Esse conjunto de fatores,
aliado ao boom do mercado
inflacionário imobiliário de diversas cidades americanas, apertava ainda mais o
cerco contra a população pobre, ampliando e muito o número de sem-tetos que
passava a ocupar locais de maior visibilidade pública – parques, pontos de
ônibus, porta de lojas, bares e restaurantes, banheiros públicos, bibliotecas
etc. (SNOW & ANDERSON, 1998; DAVIS, 1993).
Outra determinação que
contribuiu para a expansão do número de sem-teto é o crescimento elevadíssimo
do subemprego nos EUA. Milhares de pessoas que foram atingidos pelo desemprego,
geralmente quando retornam ao mercado de trabalho passam a receber salários menores
do que os anteriores. Não é pequeno o número de salários abaixo do nível de
pobreza oficialmente estabelecido nos país e que, portanto, obriga essa fração
do lumpemproletariado a trabalhar em dois ou três subempregos, mas que, ainda
assim, não consegue obter renda suficiente para pagar um quarto sequer para
morar. Segundo a Coalizão Nacional para os Sem-Teto[8], em 1998 seria necessário
um salário de 8,89 dólares por hora para pagar um quarto e sala. Outra entidade
não-governamental (Centro de Preâmbulo para Políticas Públicas) estima que a
possibilidade de um indivíduo assistido pelo seguro-desemprego encontrar um
emprego que pague esse salário era de mais ou menos 01 chance em 97 (EHRENREICH, 2004). Isso sem contar o número de
pessoas e famílias que moram nos seus próprios automóveis. Em sua obra Miséria à americana – vivendo de subemprego
nos Estados Unidos (2004), Ehrenreich constata:
não
consegui encontrar estatísticas sobre o número de pessoas empregadas que moram
em carros ou vans, mas segundo um relatório de 1997 da National Coalition for
the Homeless intitulado “Myths and Facts about Homeless” (Mitos e fatos sobre a
falta de moradia), quase um quinto de todos os sem-teto, em vinte e nove
cidades de todo o país, tem emprego em tempo integral ou meio expediente (2004,
p. 36).
Assim
como ocorreu nas principais cidades industrializadas do século XIX, a presença
cada vez maior do número de lumpemproletários nos espaços públicos passava a
gerar grandes incômodos às classes ricas de diversas cidades americanas, que
buscou declarar guerra a tal presença. Diversas foram as armas e estratégias
elaboradas pelo poder público e pela iniciativa privada, a serviço da
propriedade burguesa e do seu conforto visual. Em Los Angeles, a forma
encontrada para conter os sem-tetos foi confinando-os no submundo. Ao longo da
Rua 50, a leste da Broadway, criaram-se uma verdadeira “favela a céu aberto”
que, na década de 1990, representava um dos dez quarteirões mais perigosos do
mundo (DAVIS, 1993):
nesta zona do submundo, todas as noites
são sexta-feira 13, de modo nada surpreendente, muitos dos sem-teto tentam a
todo custo escapar do “Nickle” durante a noite, procurando por malocas mais
seguras em outras partes do Centro. A cidade em resposta aperta o laço com
crescente intervenção da polícia e com engenhoso design urbano de vocação dissuasiva.
Um dos mais comuns, mas embrutecedor,
destes estorvos é o banco de ponto de ônibus em forma de barril, que oferece
uma superfície mínima para um sentar desconfortável, enquanto torna
completamente impossível dormir sobre ele. Tais bancos “à prova de vagabundos”
estão sendo amplamente introduzidos na periferia do submundo [...] restaurantes
e mercados responderam aos sem-teto com a construção de ambientes cercados e
ornamentados para proteger sua recusa. Embora ninguém em Los Angeles tenha
ainda proposto colocar cianeto no lixo, como aconteceu em Phoenix há poucos
anos atrás, um popular restaurante de frutos do mar gastou 12 mil dólares para
construir uma lata de lixo definitivamente à prova de mendigos: ela é
confeccionada com chapas de aço de 2 centrímentos de espessura e equipada com
cadeados blindados e mórbidas pontas espetadas para fora, de modo a
salvaguardar cabeças de peixe de preço inestimável em decomposição e batatas
fritas bolorentas (p. 213-214).
Com
o objetivo claro de evitar a presença do lumpemproletariado em algumas regiões
da cidade de Los Angeles, os banheiros públicos, assim como as fontes de águas,
utilizadas por sem-tetos para tomar banho, foram deliberadamente destruídos. Se
comparada com outras cidades importantes de toda a América do Norte, Los
Angeles era a cidade que possuía o menor índice de banheiros públicos na década
de 1990. Diante de toda essa política repressiva, os lumpemproletários da
“cidade dos anjos” foram transformados em espécies de “beduínos urbanos”,
visíveis em todos os lugares
do Centro, empurrando seus poucos e patéticos pertences em carrinhos de
supermercados roubados, sempre fugitivos e em movimento, espremidos entre a
política oficial de conteção e o sadismo progressivo das ruas do Centro (Ibid,
p. 215).
Uma
das conseqüências sociais diretas e inevitáveis da promoção do Estado
neoliberal é, sem sombra de dúvidas, o aumento das tensões sociais e da
criminalidade derivadas dos cortes em políticas de assistência social, da
diminuição drástica da oferta de empregos, dos salários-miséria, da fome, do
desabrigo e da opressão em geral, tanto nos países subordinados, quanto nos
países imperialistas. Por conta desse quadro é que esse Estado será
caracterizado por uns como sendo “mínimo e forte” (Bobbio, 1998) e por outro
como sendo uma espécie de “Estado Penal” (Wacquant, 2001), uma vez que o mesmo
se vê coagido a dar uma resposta positiva (para os interesses das classes
dominantes) ao espetáculo da insegurança social, à imundice visual causada pela
presença do lumpemproletariado nos centros comerciais e à criminalidade
crescente, através da expansão das práticas repressivas e do encarceramento em
massa dessa classe social.
Nesse sentido, o Estado
penal apresenta-se como um complemento nas mudanças das relações de trabalho
contemporâneas, pois busca substituir as políticas sociais por medidas de
criminalização do lumpemproletariado. Porém, ele deve fazer isto contendo seus
próprios gastos e diminuindo a dívida pública, pois dessa maneira ele garante
os interesses do capital oligopolista. Por outro lado, a miséria tende a
aumentar, assim como o desemprego e a criminalidade, então o estado deve optar
por aumentar o aparato repressivo ou ampliar os gastos sociais, mas faz opção pelo
primeiro por ser menos dispendioso, ou seja, mesmo investindo em aumento da
repressão – que não é tanto assim, já que em parte apenas aumenta o uso do
aparato repressivo já existente, ao invés de políticas de assistência social e,
ainda permite a ampliação do lumpemproletariado que barateia a força de
trabalho em certos setores, diminuindo os gastos do capital.
É nesse contexto que surge
em Nova York, e tende a se tornar uma prática mundial via importação, a
política da “tolerância zero” e, juntamente com ela,
a retórica militar da ‘guerra’ e da ‘reconquista’ do espaço
público, que assimila os delinqüentes (reais ou imaginários), sem-teto,
mendigos e outros marginais a invasores estrangeiros – o que facilita o
amálgama com a imigração, sempre rendoso eleitoralmente (WACQUANT, 2001, p.
30).
Loic
Wacquant apresenta em diversas obras a absurda escalada do Estado Penal e sua
prática de encarceramento em massa dos setores mais pobres da sociedade
norte-americana, demonstrando uma íntima relação entre o neoliberalismo, a
ampliação do lumpemproletariado e a expansão das práticas de criminalização
dessa classe social no regime de acumulação integral. De acordo com Wacquant,
a reviravolta da demografia carcerária
americana depois de 1973 será tão brutal quanto espetacular. Contra qualquer
expectativa, a população penitenciária do país começa a aumentar em uma
velocidade vertiginosa: fato sem precedentes em uma sociedade democrática, ela
“dobra em dez anos e quadruplica em vinte”. Partindo de menos de 380 mil em 1975,
o número de pessoas encarceradas beira os 500 mil em 1980. E continua a inchar
no ritmo infernal de 9% ao ano em média (ou seja, 2 mil detentos suplementares
por semana durante a década de 90, de maneira que em 30 de junho de 1997 a
América contava com 1.855.575 prisioneiros, dos quais 637.319 nas casas de
detenção dos condados e 1.218.256 nas prisões federais e estaduais. Se
estivesse em uma cidade, a população carcerária estadunidense seria a sexta
maior metrópole do país (2003, p. 57).
Expansão da população
carcerária nos Estados Unidos (1975-1995)
1975
|
1980
|
1985
|
1990
|
1995
|
|
Casas
de detenção (cidades e condados)
|
138.800
|
182.288
|
256.615
|
405.320
|
507.044
|
Penitenciárias
Estaduais
e federais
|
240.593
|
315.974
|
480.568
|
739.980
|
1.078.357
|
Total
encarcerado
|
379.393
|
498.262
|
737.183
|
1.145.300
|
1.585.401
|
Crescimento
em 05 anos
|
-
|
31,3%
|
47,9%
|
55,4%
|
38,4%
|
Fonte: Bureau of Justice and Statistics,
Correctional Populacion in United States, 1995, Washington, U.S. Government
Printing Office, 1996: Jail and jail inmates 1993-1994, idem, 1994, apud
WACQUANT, 2003, p. 57.
A emergência do regime de acumulação integral e de
suas contradições/tensões sociais nos EUA provocou uma verdadeira ruína dos
espaços sociais habitados pelo conjunto da população empobrecida, que foi a
maior vítima de todas essas contradições/tensões, em especial o processo
expansivo da lumpemproletarização[9].
Para milhares de pessoas a simples garantia da sobrevivência diária tornou-se
uma verdadeira guerra cotidiana, pois marginalizados na divisão social do
trabalho, estigmatizados pela cor da pele (o lumpemproletariado norte-americano
é formado majoritariamente pela população negra) e pelo endereço residencial,
essa classe social só consegue visualizar duas “opções” (WACQUANT, 2001, 2003,
2005, 2008): ou se submeter ao trabalho precário, temporário e de salários-miséria
ou entrar para a vida bandida do tráfico de drogas e do roubo a mão armada, que
apesar de altamente arriscado, tanto pelo conflito com a polícia quanto pelo
conflito entre traficantes rivais, possibilita uma renda infinitamente maior
que a do subemprego. A segunda opção tem sido, sem sombra de dúvidas, a
principal “escolha” da maior parte da juventude lumpemproletária, habitante dos
guetos norte-americanos, que a partir daí tem se tornado, conseqüentemente, a
clientela favorita do sistema carcerário norte-americano:
evidencia-se
imediatamente que o meio milhão de reclusos que abarrotam as quase 3.300 casas
de detenção do país – e os 10 milhões que passam por seus portões a cada ano –
são recrutados prioritariamente nos setores mais deserdados da classe operária,
e notadamente entre as famílias do subproletariado de cor nas cidades
profundamente abaladas pela transformação, que, reelaborando sua missão
histórica, o encarceramento serve bem antes à regulação da miséria, quiçá à sua
perpetuação, e ao armazenamento dos refugos do mercado [...] Conseqüência de
sua posição marginal no mercado de emprego desqualificado, dois terços dos
detentos viviam com menos de mil dólares por mês (e 45% com menos de 600
dólares), ou seja, uma renda inferior à metade do limiar de pobreza oficial
para uma família de três pessoas naquele ano – isto embora dois terços deles
declarem ter recebido um salário. É dizer que a grande maioria dos internos dos
cárceres municipais provém seguramente das categorias dos “working poor”, esta
fração da classe operária que não consegue subtrair-se da miséria embora
trabalhe, mas que é mantida à distância da cobertura social porque trabalha em
empregos de miséria: apesar de sua penúria pecuniária, apenas 14% recebiam uma
ajuda pública (auxílio a pais desamparados, cupons alimentares, programa de
assistência nutricional para as crianças) nas vésperas de sua prisão (WACQUANT,
2003, p. 33-34).
Toda essa bárbara situação em que
se encontra a população lumpemproletária norte-americana revela no fundo a
incapacidade do capitalismo de resolver suas próprias contradições. A própria
expansão vertiginosa da população carcerária é expressão dessa incapacidade,
pois, ao contrário do que diz a ideologia da “exclusão social”, essa massa de
indivíduos que se encontram marginalizados na divisão social do trabalho não é
resultado de uma forma política ineficaz de administração social e que,
portanto, a solução para a exclusão social se dá com adoção de políticas
públicas e sociais que garantam a inclusão ou com a construção de uma espécie
de Estado Social, como sugere Loic Wacquant[10].
Pelo contrário, pois de forma geral nem sequer poderíamos afirmar que tal
população, formada pelo lumpemproletariado, encontra-se excluída socialmente (algo
impossível de acontecer), pois no fundo o capitalismo não sobrevive sem a
totalidade do exército industrial de reserva, formado por essa classe social.
Nesse sentido, é mais correto afirmar que o lumpemproletariado é parte
integrante da sociedade capitalista, que definitivamente depende da sua
existência para sobreviver, pois tal classe representa uma das alavancas
fundamentais do processo de acumulação capitalista e, conseqüentemente, não
pode ser abolida sem a abolição do capitalismo.
O que o Estado norte-americano vem tentando fazer é
retardar ao máximo a ameaça gerada pelo crescimento generalizado do
lumpemproletariado, criminalizando-o para não ter que ampliar seus gastos com
assistência social e, conseqüentemente, emperrar o processo de acumulação
capitalista. No entanto, com o crescimento vertiginoso dessa população e de sua
criminalização, essa prática já não mais atende a expectativa de redução dos
gastos públicos, uma vez que o orçamento carcerário vem atingindo cifras
alarmantes[11].
Por isso, outro desafio se impõe à acumulação capitalista norte-americana: como
combater as tensões sociais via encarceramento generalizado do
lumpemproletariado, sem comprometer os cofres públicos? A resposta, ao que tudo
indica, vem da privatização do sistema penitenciário e da transferência dos
custos carcerários para o próprio preso ou sua família, como já vem ocorrendo
em diversos estados, ou tornando o cárcere em uma indústria lucrativa que passa
a ser cotada inclusive nas principais bolsas de valores norte-americanas[12].
Referências Bibliográficas:
DAVIS, Mike. Cidade de
quartzo – escavando o futuro em Los Angeles. São Paulo: Página aberta,
1993.
EHRENREICH, Barbara. Miséria
à americana – vivendo de subemprego nos Estados Unidos. Rio de Janeiro:
Record, 2004.
HARVEY, David. O
neoliberalismo – história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
SNOW, David & ANDERSON, Leon. Desafortunados – um estudo sobre o povo da rua. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1998.
____. O capitalismo na era da
acumulação integral. Aparecida, SP: Idéias e letras, 2009.
WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
____. Punir os pobres – a
nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
____. Os condenados da cidade
– estudos sobre marginalidade avançada. Rio de Janeiro: Revan/FASE, 2005.
____. As duas faces do gueto.
São Paulo: Boitempo, 2008.
[1]
Publicado originalmente na Revista Educação e Mudança, número 23, 2010.
*
Doutorando em Sociologia pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade
Federal de Goiás e professor de Teoria Política na Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul. E-mail: lisandrobraga@hotmail.com
[2] Em nossa
análise o lumpemproletariado é uma classe social composta pela totalidade do
exército industrial de reserva (desempregados temporários e de longa data,
mendigos, sem-tetos, subempregados, prostitutas pobres etc.).
[3] Sobre o regime de acumulação integral Cf.
(Viana, Nildo. O capitalismo na era da
acumulação integral . Aparecida, SP:
Idéias e letras, 2009.
[4] Já no
final da década de 1980 os Estados Unidos inaugura seus refúgios alucinógenos
para a população lumpemproletária, espécie de “cracolândia norte-americana”:
“No Condado de Los Angeles, onde a mortalidade infantil está em franca
ascensão, e a rede de tratamento de traumas do Condado entrou em colapso, não é
de surpreender que a assistência médica para os viciados em crack – que os especialistas concordam
que exige um tratamento a longo prazo numa instituição terapêutica – geralmente
não esteja em disponibilidade. Assim, a região do submundo, o pesadelo do
“Nickle” no Centro, possui a maior concentração unitária de viciados em crack – velhos e novos, mas nem um único
posto de tratamento. A rica Pasadena está enfrentando a atividade das gangues
com base no crack, localizadas no seu
gueto do Noroeste, com sua própria versão do HAMMER, inclusive com revistas
humilhantes de desnudamento na rua e uma política de despejo de inquilinos
ligados a drogas, sem gastar um só centavo em reabilitação de viciados. Os exemplos
poderiam ser depressivamente multiplicados, à medida em que o tratamento para
viciados é abandonado na mesma última gaveta que os preceitos liberais
esquecidos, como o emprego para os jovens ou o aconselhamento para as gangues”
(DAVIS, 1993, p. 278).
[5] Apesar de termos utilizado apenas as cidades
de Los Angeles e Chicago para demonstrar a expansão do lumpemproletariado via
crescimento generalizado do desemprego, no regime de acumulação integral,
outras pesquisas demonstram que o desemprego em massa tornara-se uma realidade
nacional: “Um estudo que descobriu que 30% das fábricas existentes nos EUA em
1969 haviam fechado por volta de 1976, estimou que ‘fugas [transferências de
fábricas para outros locais], encerramento de atividades, e cortes físicos permanentes
beirando o fechamento podem ter custado ao país algo como 38 milhões de
empregos’. Um outro estudo concluiu que mais de 16 milhões de empregos
industriais foram perdidos entre 1976 e 1982 devido a fechamento de fábricas, e
um exame congressual das conseqüências desse desemprego estrutural relatou que
‘nos últimos anos, milhões de trabalhadores americanos perderam seus empregos
devido a mudanças estruturais nas economias norte-americana e mundiais. Alguns
deles - especialmente trabalhadores mais jovens com qualificações em demanda ou
com formação educacional certa – têm pouca dificuldade de achar novos empregos.
Outros – centenas de milhares por ano – permanecem sem emprego por semanas ou
meses, ou até mesmo anos” (SNOW & ANDERSON, 1998, p. 398).
[6] Segundo
“os relatórios publicados pelo U.S. Bureau of the Census desde meados da década
de 80 mostram um acentuado aumento da pobreza na América (Center of Budge and
Policy Priorities, 1985, 1988) e uma onda de ‘desigualdade’ geral (Thurow,
1987)” (SNOW & ANDERSON, 1998, p. 378).
[7] “Os
levantamentos sobre habitação do governo federal, os relatórios publicados por
grupo de defesa dos moradores de rua e os pesquisadores de habitação
independentes, todos, relatam praticamente a mesma conclusão: o estoque de habitação
de baixa renda da nação foi liquidado ao longo dos últimos vinte anos. Só entre
1973 e 1979, 91% de quase um milhão de unidades habitacionais que eram alugadas
por $ 200 por mês ou menos em toda a nação desapareceram do mercado de aluguel.
Estima-se que, só na cidade de Nova Iorque, mais de 310.000 unidades
habitacionais de baixa renda foram perdidas entre 1970 e 1983. Como essa
dizimação do mercado de aluguel de baixa renda aumentou progressivamente ao
longo da década de 80, a Nacional Coalition for the Homeless estimou que cerca
de meio milhão de unidades de baixa renda estavam sendo perdidas anualmente por
volta da segunda metade da década” (Ibid, 1998, p. 379).
[8] “A Coalizão Nacional para os Sem-Teto é uma rede
nacional de pessoas, que estão experimentando atualmente a falta de moradia ou
que já a tenham experimentado, ativistas, advogados e outros prestadores de
serviços, baseados na comunidade e na fé, comprometidos com uma única missão.
Essa missão, o nosso elo comum, é acabar com a falta de moradia. Estamos
empenhados em criar as mudanças sistêmicas e atitudinais necessárias para
prevenir e acabar com a condição de sem-teto. Ao mesmo tempo, trabalhamos para
atender às necessidades imediatas das pessoas que estão atualmente na condição
de sem-teto ou que correm esse risco. Tomamos como primeiro princípio da
prática que as pessoas que estão experimentando atualmente a condição de
sem-teto ou que já experimentou tal condição devem ser envolvidas em todo o
nosso trabalho. Para este fim, a Coalizão Nacional para os Sem-teto (NCH –
sigla em inglês para Nacional Coalition Homeless) se engaja na educação
pública, defesa de políticas, e organizações de base. Focamos nosso trabalho
nas seguintes quatro áreas: moradia justa, justiça econômica, saúde e direitos
civis” (IN: http://www.nationalhomeless.org/about_us/index.html - tradução nossa).
[9] Loic
Wacquant denominou esse processo de desertificação
organizacional do gueto: “ao mesmo tempo causa e efeito da erosão do espaço
público, o declínio das instituições locais (comércio, igrejas, associações de
bairro e serviços públicos) chegou a um grau quase equivalente ao de um deserto
organizacional. A origem da espantosa degradação do tecido institucional e
associativo do gueto é encontrada, mais uma vez, no recuo repentino do Estado
do bem-estar social, o que solapou a infra-estrutura que permitia às
organizações públicas e privadas desenvolver-se e subsistir nos bairros
estigmatizados e marginalizados” (WACQUANT, 2008, p. 39).
[10] Segundo
Wacquant, discutindo a possibilidade do Estado Penal não se tornar uma
realidade na Europa, tal como vem ocorrendo nos EUA, “para uma verdadeira
alternativa que nos afaste da penalização (suave ou dura) da pobreza, é preciso
construir um Estado europeu que seja digno desse nome. O melhor meio de
diminuir o papel da prisão, é uma vez mais e sempre, fortalecer e expandir os
direitos sociais e econômicos” (2008, p. 105). Tal afirmação revela os limites
da análise do autor e sua visão fetichista do Estado, pois em momento algum de
sua análise Wacquant apresenta a gênese e a determinação fundamental de toda
essa complexa realidade contemporânea, ou seja, não analisa as necessidades
atuais do regime de acumulação integral (Forma de valorização do capital
expressa no toyotismo, forma estatal capaz de regularizar as relações sociais
necessárias para tal valorização (neoliberalismo) e forma de exploração
internacional - neoimperialismo), nem
tão pouco menciona que as contradições sociais que levam ao engendramento do
“Estado Penal” resultam do predomínio da ofensiva capitalista sob a classe
trabalhadora, localizando todas essas mudanças no campo da correlação de forças
no interior da luta de classes na contemporaneidade.
[11] “Entre
1982 e 1993, os orçamentos das administrações penitenciárias aumentaram em
254%, enquanto as somas destinadas às funções de justiça em seu conjunto
cresceram 172% e as despesas globais dos estados em 140%. Em fim de período, a
América despende 50% a mais em suas prisões do que em sua administração
judiciária (32 bilhões de dólares contra 21 bilhões), enquanto 10 anos antes as
dotações das duas administrações eram similares (em torno de 7 bilhões cada
uma). A função carcerária absorve hoje em dia um terço do orçamento da justiça
contra um quarto na primeira metade da década de 80. As somas engolidas pelo
país só para a construção de penitenciárias e cadeias disparam entre 1979 e
1989: mais 612%, ou seja, três vezes o ritmo de crescimento dos gastos militares
em nível nacional, os quais, no entanto, gozaram de favores absolutamente
excepcionais durante as presidências de Reagan e Bush. A construção de prisões
conhece uma explosão tal que vários condados e estados se vêem às voltas com
faltas de fundos para contratar o pessoal necessário para a abertura dos
estabelecimentos que constroem. Foi assim na Carolina do Sul, em 1996, onde
duas penitenciárias de “alta tecnologia” não puderam entrar em operação por
falta de créditos necessários para cobrir suas despesas de funcionamento; ou em
Los Angeles, onde a “casa de detenção do século XXI” ficou vazia durante um ano
depois da construção” (WACQUANT, 203, p. 80-81).
[12] Ver Cf. WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
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