Lumpemproletarização e Luta de Classes
na Argentina
O processo
de lumpemproletarização traduz a principal conseqüência social do regime de
acumulação integral[1] em
todo o mundo, no entanto esse processo possui suas singularidades segundo o modelo
de capitalismo vigente em cada nação, isto é, apesar de constatarmos que
durante a vigência do regime de acumulação integral o lumpemproletariado[2] tende a crescer, tal
crescimento ocorre de forma diferenciada, pois nos países de capitalismo
imperialista vem ocorrendo uma expansão do lumpemproletariado enquanto nos
países de capitalismo subordinado o processo de lumpemproletarização tende a
ocorrer de forma intensificada. A lumpemproletarização vem acompanhada da luta
de classes que, também, atinge coeficientes diferenciados de uma região para
outra. Acreditamos que esse seja o caso argentino. Vejamos.
Seguindo as análises de
Maristella Svampa (2010), é possível perceber que durante décadas a Argentina
foi dominada por um modelo de integração nacional-popular cuja máxima expressão
foi a primeira fase do peronismo (1946-1955). Esse modelo se constituía por
três grandes características: No plano econômico tal modelo se caracterizava
por uma concepção de desenvolvimento inspirada na substituição de importações e
por uma estratégia voltada para o desenvolvimento do mercado interno. No plano
político o Estado se apresentava como o agente garantidor da coesão social
através dos gastos públicos sociais. Essa política se traduzia na ampliação da
cidadania burguesa[3]
através do reconhecimento dos direitos sociais. Em terceiro lugar, havia uma
tendência a promover a homogeneidade social visível na incorporação de parcela
significativa da classe trabalhadora, assim como na expansão das classes
auxiliares da burguesia[4].
Em linhas gerais, a Argentina se diferenciava dos demais países
latino-americanos por possuir um Estado que, dentro das limitações típicas de
um capitalismo subordinado, conseguia promover uma maior distribuição de renda
e serviços públicos de qualidade para a maioria da população.
O desmantelamento desse
modelo social percorreu diversas etapas, no entanto não ocorreu de forma linear
nem tão pouco numa única seqüência. A substituição da sociedade
fordista para uma sociedade de acumulação integral conheceu diversos
momentos.
De
maneira esquemática, poderíamos afirmar que as mudanças na ordem econômica se
iniciaram durante a década de 70, a partir da instalação de regimes militares
no cone sul da América Latina; as transformações operadas na estrutura social
começariam a tornar-se visíveis na década de 80, durante os primeiros anos de
retorno à democracia; por último, podemos situar as maiores mudanças no final
dos anos 80 e princípio dos anos 90, com a gestão menemista (SVAMPA, 2010, p.
22).
Assim como em vários países da América Latina, a
ditadura militar, que chegou ao poder na Argentina no dia 24 de março de 1976,
tinha como principais objetivos programar uma rígida política de repressão,
assim como refundar as bases materiais da sociedade. Por um lado, o terrorismo
de Estado promoveu o extermínio e disciplinamento de amplos setores sociais
mobilizados e, por outro lado, colocou em prática um programa de reestruturação
econômica que produziria profundas repercussões na estrutura social e produtiva
do país. Tais mudanças estavam assentadas na importação de bens e capitais e na
abertura financeira. Isso implicou uma interrupção na política de substituição
de importações e um grande endividamento dos setores públicos e privados,
visíveis no extraordinário aumento da dívida externa[5]
que passou de 13 milhões para 46 milhões de dólares no período de 1976-1983.
Dessa forma, a lógica da acumulação imposta pela valorização financeira
sustentou as bases de dominação centradas nos grandes grupos nacionais e nos
capitais transnacionais (SVAMPA, 2010; BASUALDO, 2002).
Os efeitos dessa
reestruturação econômica podem ser percebidos nas diversas mudanças geradas na
estrutura social argentina. Dentre elas se destaca a enorme transferência da
mão-de-obra empregada na indústria para o setor terciário e autônomo, assim
como a formação de uma incipiente mão-de-obra marginalizada do mercado de
trabalho - o lumpemproletariado. Além disso, houve uma significativa
deterioração dos salários reais que aliada com a baixa produtividade causou a
contração da demanda interna na qual foi acompanhada por um forte incremento
das disparidades intersetoriais. A distribuição de renda também sofreu impactos
negativos com a eliminação das negociações coletivas e com a queda salarial.
Dessa maneira,
até
o final dos anos 80, envolvido em uma série de conflitos econômicos e
institucionais, o país se afundava cada vez mais em uma grave crise econômica,
refletida na importante queda da inversão interna e estrangeira, na crescente
fuga de capitais e no recorde inflacionário, que em 1987 alcançaria 175% e, em
1988, 388% (SVAMPA, 2010, p. 25).
Diante dessa nova realidade, nascia na Argentina da
década de 1990 uma sociedade empobrecida e atravessada por novas desigualdades
sociais. O país experimentava o declínio estrutural do modelo nacional-popular
sem contar com nenhuma chave para reencontrar a integração social de amplos
setores populares e médios empobrecidos[6]
(KESSLER & MINUJÍN, 1995; KESSLER & DI VIRGILIO, 2008). No entanto, as
conseqüências mais drásticas estavam por vir, visto que a consolidação da nova
ordem neoliberal argentina ocorreria durante os governos de Carlos Menen.
Recém saída de uma ditadura militar, a Argentina se encontrava
extremamente endividada e presa a um modelo de governabilidade corporativo,
autoritário e corrupto. A partir de 1992, com Carlos Menen no poder, inicia-se
um período de neoliberalização da economia com vistas a obter auxílio dos
Estados Unidos, assim como recuperar sua credibilidade perante a comunidade
internacional. Para isso, Menen promoveu uma abertura comercial aos fluxos de
capital externo, garantiu maior flexibilidade nos mercados de trabalho,
reformou a legislação trabalhista, realizou uma ampla reforma tributária,
privatizou empresas estatais, equiparou o peso ao dólar com o objetivo de
combater a inflação e garantir segurança aos investimentos estrangeiros.
Uma das principais conseqüências da neoliberalização da economia
argentina, sem sombra de dúvidas, foi a geração de milhares de postos de
trabalho precarizados, subempregos, empregos temporários e milhões de
desempregados. O índice de desemprego que na década de 1980 variava entre 4% e
6%, nos primeiros anos da década de 1990 chegam a 18,4%. Apesar da singela
recuperação no final dessa década, tais índices voltam a crescer de forma
assustadora a partir de 2001: dependendo da região, o índice de desemprego
chegou a atingir a cifra de 50% da população economicamente ativa (VITULLO,
2008; SVAMPA, 2010).
A intensidade com que a pobreza foi atingindo amplos setores da classe
trabalhadora foi proporcionalmente acompanhada pela intensidade das tensões
sociais derivadas de tal pobreza, pois para amplos setores da classe
trabalhadora argentina, o processo de privatização representou o fim de uma
estabilidade no emprego e o início de um caminho, muitas vezes sem volta, ao
desemprego e à vida lumpemproletária. A resposta popular a essa condição não
tardou a aparecer, pois a história argentina conheceria uma nova modalidade de
protestos sociais e um novo sujeito histórico, formado essencialmente pelo
lumpemproletariado: o movimento piquetero.
A emergência do movimento piquetero está diretamente relacionada
com o amplo processo de privatização neoliberal, principalmente com a
privatização da empresa estatal petrolífera YPF (Yacimientos Petrolíferos
Fiscales), localizada nas províncias patagônicas de Neuquén, especificamente em
Cutral-Có e Plaza Huincul, entre os anos de 1991 e 1993. Logo após a
privatização dessa empresa milhares de trabalhadores foram demitidos. No primeiro
momento buscaram sobreviver como autônomos e micro-empresários que prestavam
pequenos serviços para a petrolífera, no entanto essas tentativas resultaram em
verdadeiros fracassos[7] e esses ex-trabalhadores
passaram a se encontrar isolados frente á frente com o desemprego aberto e sem
nenhuma possibilidade de sustentarem a si mesmo e os seus familiares. Foi a
partir daí que em junho de 1997 um grupo de desempregados convocaram seus
familiares, vizinhos e vários outros setores sociais locais para bloquear a
estrada nacional 22, “artéria chave na economia da região” (VITULLO, 2008;
SVAMPA & PEREYRA, 2009; ALVAREZ, 2009).
Daí em diante, várias outras regiões afetadas pelos ajustes neoliberais
conheceriam manifestações de desempregados e de diversos grupos de
trabalhadores precarizados que passaram a adotar a estratégia dos piquetes e
cortes de estradas como forma principal de protestos que se espalharam por
diversas regiões da Argentina: General Mosconi e Tartagal (Salta), Libertador
General San Martín (Jujuy), Cruz Del Eje (Córdoba), Capitan Bermúdez (Santa
Fe), Buenos Aires e Conurbano Bonaerense e outras regiões mais.
É no ano de 2000 que a prática piquetera atinge o Conurbano Bonaerense,
alcançando um caráter nacional e permanente, deixando de ser um fenômeno
localizado e fragmentado e tornando-se uma prática de resistência aos ditames
neoliberais com caráter nacional. Em resposta à intensa lumpemproletarização de
diversas regiões do conurbano, a prática dos piquetes e cortes de ruas/estradas
se generalizam e se prolongam por semanas em vários municípios em volta de
Buenos Aires. Com isso o governo De La Rua se vê obrigado a reconhecer esse
movimento e iniciar negociações que apontem para a solução do desemprego em
massa. Concomitante a esses cortes de ruas locais, se espalham, no mesmo
período, cortes de estradas por todo o país. A repressão se intensifica e a
reação popular cresce assustadoramente após o assassinato de alguns militantes
piqueteiros (o assassinato de Aníbal Verón e Santillán são casos exemplares).
De acordo com Vitullo,
segundo um estudo
realizado pela consultora Centro de Estudios Nueva Mayoría (2004a)
divulgado pelo Jornal La Nacion, os cortes de estradas realizados em
todo o território nacional foram 140 em 1997, 51 em 1998, 252 em 1999, 514 em
2000, 1383 em 2001 e 2336 em 2002 (o que representa uma média superior aos 6
bloqueios diários, sendo este o ano recorde em matéria de cortes) e, em 2003,
verificaram-se 1278 interrupções à circulação de veículos e mercadorias” (2008,
p. 115).
Nesse período, insurge um ciclo ascendente de lutas sociais e de
enfrentamento popular contra as forças policiais que tomará conta da cena
política e social argentina até aproximadamente o ano de 2003, período em que
as lutas sociais iniciam seu refluxo. Em diversos períodos a tensão social
adquire elevado grau de radicalidade e, conseqüentemente, a repressão do
“Estado penal” tendeu a ampliar-se a ponto de iniciar um verdadeiro processo de
criminalização do protesto social (WACQUANT, 2001; KOROL, 2009).
Esse novo ator social,
composto majoritariamente pelo lumpemproletariado, denominado de movimento
piquetero, assim como a dinâmica de suas lutas firmadas na ação coletiva, na
organização solidária, com tomadas de decisões pautadas em assembleias
horizontais e adotando o corte de ruas e estradas como principal ferramenta de
luta, possui de acordo com vários autores uma dupla filiação. Portanto, para
que se compreenda a emergência e desenvolvimento do movimento piquetero
torna-se necessário apresentar essa dupla filiação.
Uma das principais e
mais complexa obra sobre o assunto, elaborada por Maristella Svampa e Sebastián
Pereyra e denominada Entre la ruta y el
barrio – la experiencia de las organizaciones piqueteras (2009) afirma que
não
é possível compreender a gênese nem o posterior desenvolvimento do movimento
piquetero se não estabelecermos sua dupla filiação: por um lado, a vertente que
apresenta a brusca separação dos marcos sociais e trabalhistas que configuraram
a vida cotidiana de gerações e povos inteiros; separação violenta que, no
limite, revela tanto uma relação mais próxima com o mundo do trabalho formal,
como reflete a opção por um tipo de ação sindical não-institucionalizada;
ligado a um modelo de ação confrontativo; por outro lado, a vertente que assinala
a importância da matriz especificamente territorial da ação coletiva, e que da
conta tanto de uma distância maior com o mundo do trabalho formal como, no
extremo, da continuidade de uma relação mais pragmática com os poderes
públicos, na luta nada fácil pela sobrevivência (p. 20).
A primeira filiação
está intimamente relacionada com as conseqüências sociais que as reformas e
“ajustes” neoliberais provocaram no mundo do trabalho a partir da implementação
de um novo projeto econômico orientado para a eliminação de déficits fiscais,
desregulamentação dos mercados e privatização acelerada de empresas públicas.
Juntamente com esses ajustes foi aprovado o Plano de Convertibilidade de 1991
que estabelecia a paridade entre o peso e o dólar, reduzindo as tarifas
alfandegárias, liberação do comércio exterior e aumentando a pressão fiscal. Os
principais mecanismos de controle do Estado foram suprimidos a favor das regras
do mercado.
As conseqüências
sociais foram drásticas, pois a queda na qualidade dos serviços públicos foi
extrema, milhares de pequenos investimentos se viram falidos, milhares de
lumpemproletários que além de perderem seus salários, perderam o
seguro-desemprego e se encontravam extremamente endividados. Nesse novo
contexto, as mudanças no mundo do trabalho modificaram-se bruscamente, pois
o
processo privatizador deixou uma importante quantidade de trabalhadores
desempregados com diferentes trajetórias ocupacionais. No caso dos
trabalhadores empregados se modificaram as condições de contrato de trabalho,
de uma situação de quase garantia de estabilidade no emprego se passa a uma
situação de incerteza e precarização das condições de trabalho e possibilidades
de associação sindical (BONIFACIO, 2011, p. 73).
Como
foi dito anteriormente, o impacto mais extremo dessas reformas veio em
conseqüência da privatização de uma das empresas públicas mais lucrativas e
estratégicas da Argentina, a YPF. Vale lembrar que a YPF consistia em uma das
maiores empresas estatais argentina e seus trabalhadores formavam uma espécie
de “aristocracia operária” visto que possuíam uma ampla gama de garantias e
direitos sociais (saúde, moradia, educação para os filhos, creches, espaços
recreativos etc.) oferecidos pelo Estado social argentino, usufruíam de
estabilidade no emprego e de excelentes salários. Com a privatização da empresa
no ano de 1993-1995, em pouco tempo todas essas garantias desapareceram e o
processo de intensificação da lumpemproletarização insurgiu:
a
empresa, que em 1990 contava com 51 mil empregados, logo após um acelerado
processo de reestruturação, que inclui demissões voluntárias e arbitrárias,
passou a ter 5.600 trabalhadores. As baixas contabilizadas de 1990 e 1997 foram
as seguintes: para a região saltenha, 3.400; na região neuquina, 4.246; no vale
austral, 1.660; em Comodoro Rivadavia, 4.402 e, finalmente, em Santa Fe (San
Lorenzo), 1.177. Enfim, a reorganização do trabalho esteve marcada por uma
forte flexibilização que incluiu a descentralização e desregulação dos setores,
a redução sistemática de pessoal, a limitação no pagamento das horas-extras, a
intensificação do tempo de trabalho e a incorporação de novas tecnologias
(ROFMAN apud SVAMPA & PEREYRA, 2009, p. 107).
É nesse contexto que
nasce na Argentina o movimento piquetero que, em resposta aos efeitos
desintegradores das políticas neoliberais e seus ajustes estruturais, buscou
auto-organizar e mobilizar o lumpemproletariado composto por desempregados e
outros setores empobrecidos da sociedade. O movimento piquetero adquiriu um
caráter de protagonista nas manifestações contra o neoliberalismo argentino e
seus métodos de resistência popular ocuparam um lugar destacado na política
nacional. Os explosivos cortes de estradas e as enérgicas puebladas de Neuquém,
Salta e Jujuy entre 1996 e 1997
representam
o ponto inicial no qual uma nova identidade – os piqueteros – um novo formato
de protesto - o corte de estrada -, uma nova modalidade organizativa – a
assembléia – e um novo tipo de demanda – o trabalho – ficam definitivamente
associados, originando uma importante transformação nos repertórios de
mobilização da sociedade argentina
(SVAMPA & PEREYRA, 2009, p. 25).
A segunda filiação do
movimento piquetero é marcada por uma modalidade de ação coletiva de caráter
territorial, pois diferentemente das manifestações ocorridas nas longínquas
províncias patagônicas que sofreram com as privatizações das empresas estatais,
os protestos que ocorreram na região do Conurbano Bonaerense remete a um longo
processo econômico e social ligado à desindustrialização e deterioração
crescente das condições de vida das classes populares e auxiliares, iniciados
ainda na década de 1970. O processo de desindustrialização da região afetou uma
parcela importante dos setores assalariados. De acordo com os dados para a
região da Grande Buenos Aires, entre 1980 e 1990 o desemprego aumentou de 2,3 a
6%, a subocupação duplicou, passando de 4,5 a 8,1% da população economicamente
ativa. O emprego informal que era de 42,1% em 1980 foi para 48,5% em 1991 e
terminou por adquirir características próprias de outros países
latino-americanos (SVAMPA & PEREYRA, 2009).
As ocupações ilegais de
terra na região do Conurbano Bonaerense são reveladoras do processo de
pauperização social que atinge a região desde o período da ditadura militar.
Esse processo de ocupação de terras às margens dos grandes centros urbanos
argentinos foi, muitas vezes, resultado de uma ampla organização territorial
que contaram com o apoio de organizações eclesiásticas de base e organização de
direitos humanos. De acordo com as análises de Merklen (2005), os assentamentos
de terras demonstram a emergência de uma nova configuração social que manifesta
o processo de inscrição territorial das classes populares, relacionada com a
luta pela sobrevivência e pelos serviços públicos básicos. Por conseguinte,
tais
ações foram construindo um novo marco e, por sua vez, um emaranhado relacional
próprio cada vez mais desvinculado do mundo do trabalho formal. Uma das
principais conseqüências dessa inscrição territorial é que o bairro foi
surgindo como espaço natural de ação e organização, e se converteu em um lugar
de interação entre diferentes atores sociais reunidos em refeitórios, posto de
saúde, organizações de base, formais e informais, comunidades eclesiásticas de
base, em alguns casos apoiadas por organizações não-governamentais. Enfim, o
surgimento de novos espaços organizativos dentro do bairro conheceu um novo
impulso, ainda que fugaz, durante os dois episódios hiperinflacionários de 1989
e 1990, visíveis na proliferação de refeitórios populares (SVAMPA, 2005, p.
106).
Entre 1990 e 1998 sucessivas ondas
desindustrializadoras atingiram a região do Conurbano Bonaerense como resultado
das privatizações e ajustes neoliberais. Conseqüentemente, ocorreu um acelerado
processo de expulsão do mercado de trabalho acompanhado de uma maior
instabilidade no emprego. Vale lembrar que boa parte dos sindicatos argentinos
foram cooptados e aceitaram prontamente esse conjunto de reformas e ajustes
neoliberais. Dessa maneira, parcela significativa dos trabalhadores do
conurbano passou a se sentir completamente desorientados politicamente. No
entanto, as conseqüências políticas e sociais para as instituições burocráticas
e clientelistas do Partido Justicialista também foram enormes, assim como o
debilitamento do peronismo no mundo popular.
Diante da ausência de respostas efetivas do
poder público e das suas instituições para os problemas sociais que afetavam o
lumpemproletariado da região, emergiram organizações populares nos bairros que
passaram a se organizar por fora das estruturas burocráticas, tais como
partidos políticos e sindicatos. É nesse contexto que emerge as organizações de
desempregados e um novo modelo de militância territorial na região do
conurbano. Portanto, entre 1990 e 1995 alguns bairros começaram a se organizar
para reclamar das tarifas dos serviços públicos privatizados. Em 1995 surge a
primeira comissão de desempregados no município de La Matanza, porém somente em
1996 inicia as primeiras manifestações exigindo auxílio à alimentação.
Tais manifestações
ocorrem em maio de 1996 quando vários vizinhos dos bairros María Elena e Villa
Unión realizam uma manifestação na Praça São Justo com uma importante
participação feminina. Logo em seguida, no dia 06 de setembro de 1996 se
realiza uma importante “Marcha contra a fome, a repressão e o desemprego” até a
Praça de Maio, que reuniu aproximadamente duas mil pessoas. A marcha foi um
pontapé inicial para a emergência de diversas organizações de desempregados em
vários municípios do conurbano (SVAMPA & PEREYRA, 2009).
La Matanza é um
município vizinho à capital da República, com aproximadamente 1.500.000
habitantes, população que supera de longe à de 18 das 23 províncias argentinas
(ISMAN, 2004). Trata-se de um enorme aglomerado urbano com grande quantidade da
população vivendo abaixo da linha da pobreza. Segundo o Jornal Clarin de 22 de outubro de 2001:
La
Matanza é um dos maiores e mais difíceis municípios do conurbano bonaerense:
calcula-se que o 50% de seu um milhão e meio de habitantes vive abaixo da linha
da pobreza e que o índice de desemprego chega a 30%. Viver, nesse contexto, se
torna mais complicado a cada dia. As pessoas não têm dinheiro, não tem teto
seguro, não tem comida, não tem roupa, não tem remédios. E não tem esperança
(Apud ISMAN, 2004, p. 18).
As condições de
deterioração pelas quais vem sofrendo o município de La Matanza se inicia em
1976 com o golpe militar e vêm se ampliando continuamente até atingir sua fase
mais acentuada durante o período menemista (1989-1999). As ocupações ilegais de
terra na região do Conurbano Bonaerense são reveladoras do processo de
pauperização social que atinge a região desde o período da ditadura militar.
Durante o período
marcado pela substituição de importações, o setor fabril carregava consigo o
restante das atividades econômicas em termos de produção e gerava diversos
postos de trabalho, porém nos anos noventa o coeficiente de empregabilidade se
encontrava na ordem de -3,7% e demonstrava que o setor industrial foi o grande
responsável pela expulsão da mão-de-obra na região (BASUALDO, 2002; BARRERA
& LÓPEZ, 2010). Nesse contexto, La Matanza deixou de ser um dos grandes
pólos industriais do conurbano para se converter numa região que apresenta
altos índices sociais negativos. E essa realidade não era exclusividade desse
município, pois diversas outras regiões do país também passaram a experimentar
um intenso processo de lumpemproletarização.
De acordo com uma nota
de Ismael Bermudez, contida no jornal Clarin
de 19 de setembro de 2001, exemplifica a situação geral do Conurbano
Bonaerense:
O
desemprego cresceu quatro vezes mais (subiu de 5,7% para 22,9%) e entre os
chefes de família se multiplicou por cinco (de 3,3% a 17,2%). Como resultado
direto dessa situação, nesses municípios quase 40% das residências é formada
por pessoas que recebe apenas 20% da renda da região. Isso explica a razão pela
qual a pobreza atinge quase 50% da população, o que significa que seus
habitantes ou famílias da região não possuem renda suficiente para custear as
compras dos bens e serviços básicos (Apud ISMAN, 2004, p. 17).
Contra essa situação de
desemprego, condições de vida precária e inexistência de serviços públicos
básicos de qualidade (creches, escolas, postos de saúde, moradia, asfalto, rede
de esgotos etc.), ou seja, por conta desse completo quadro de abandono gerado
pelo descaso dos poderes públicos (municipal, estadual e federal) é que nascem,
na região de La Matanza, diversas organizações de bairros que darão início a
uma onda de protestos sociais que resultara em 1995 nas primeiras tentativas de
organização do lumpemproletariado na região. É nesse contexto que emerge as
organizações lumpemproletárias e um novo modelo de militância territorial na
região do conurbano.
O que vem ocorrendo na Argentina da década de 1990 é parte do já vinha
acontecendo em quase toda a sociedade moderna a partir da década de 1980, isto
é, a sociedade moderna passa a sofrer importantes transformações nas suas
formas de valorização do capital (toyotismo), assim como nas suas formas de
regularização das relações sociais garantidoras do mesmo. A principal forma
regularizadora dessas relações consiste no Estado Neoliberal. Esse emerge com o
objetivo de proporcionar melhores condições para a acumulação capitalista
através da desregulamentação do mercado, do “afastamento” do Estado das
obrigações sociais (saúde, educação, segurança, emprego etc.) e de sua
transferência para a iniciativa privada via privatização dessas obrigações e de
alguns setores estratégicos antes sob o controle estatal (energia, água, gás,
petróleo, transportes coletivos, telefonia etc.).
Juntamente com a
emergência de um movimento lumpemproletário que passou a construir estratégias
de enfrentamento ao processo de lumpemproletarização e empobrecimento
generalizado, e que dificultaram a expansão das conquistas necessárias à
acumulação integral, emergiu também a face mais autoritária e repressiva do
Estado Neoliberal que, juntamente com os meios de comunicação dominante,
transformaram a luta pelos direitos sociais em delitos contra a ordem e os
manifestantes como delinqüentes dignos de serem aprisionados ou quando não
executados sumariamente pelo Estado Penal, como ocorreu nos diversos casos de
“gatilho fácil”[8].
A análise que Wacquant
vem realizando em suas diversas obras sobre o Estado Penal e seu processo de
criminalização do lumpemproletariado e de diversos movimentos sociais (tanto
nos EUA, quanto na Europa) também serve para compreender a realidade Argentina,
pois em todos os rincões em que o neoliberalismo se implantou enquanto forma
estatal, se implantaram também suas faces punitivas da pobreza e do protesto
social: criminalização, aprisionamento e extermínio. Segundo ele,
mais
do que mera medida repressiva, a criminalização dos que defendem os direitos
sociais e econômicos integra uma agenda política mais ampla, que tem levado à
criação de um novo regime que pode ser caracterizado como
“liberal-paternalismo”. Ele é liberal no topo, para com o capital e as classes
privilegiadas, produzindo o aumento da desigualdade social e da marginalidade;
e paternalista e punitivo na base, para com aqueles já desestabilizados seja
pela conjunção da reestruturação do emprego com o enfraquecimento da proteção
do Estado de bem-estar social, seja pela reconversão de ambos em instrumentos
para vigiar os pobres (WACQUANT, 2008, p. 94).
O processo de criminalização do lumpemproletariado e
de outras classes sociais afetadas pelo neoliberalismo inicia aproximadamente
no ano de 1993 quando a Argentina foi tomada por distintas manifestações
populares contra os ajustes neoliberais, nas principais cidades do país. Em
diferentes momentos tais manifestações atingiram níveis de enfrentamento e
violência que assustaram os poderes estabelecidos que em resposta procuraram
ampliar a repressão policial e a criminalização dos militantes dos mais
variados movimentos sociais.
Nos dias 16 e 17 de
dezembro de 1993 ocorre em Santiago del Estero o que ficou conhecido como “El
Santiagazo”. A pueblada, como também ficou conhecida as grandes manifestações
populares, foi iniciada por trabalhadores estatais demitidos ou que tiveram seu
salários reduzidos e atrasados por vários meses. Seus participantes invadiram e
incendiaram simultaneamente inúmeros prédios dos poderes legislativo,
judiciário, executivo e vários outros edifícios públicos, assim como algumas
residências de políticos e sindicalistas locais. Na noite do dia 16, o
governador Juárez foi destituído e o Congresso Nacional realizou uma
intervenção nos três poderes provinciais após aprovar um projeto do poder
executivo que autorizava o envio de tropas do exército e da polícia federal
para a província de Santiago del Estero (KOROL & LONGO, 2009). Segundo
Vitullo, foi nesse dia que a pueblada experimentou elevado nível de
conflitividade, pois
os
choques entre as forças repressivas e os manifestantes deixaram um saldo de
quatro mortos e mais de cem feridos e uma forte impressão no restante da
sociedade argentina, que, através da televisão, assistia azoada a estes fatos.
Além deste saldo e como conseqüência da mobilização popular, o justicialista
Fernando Lobo, governador da província em substituição de Carlos Mijuca – quem
tinha deixado o cargo escassos 50 dias antes sem sequer alcançar metade do seu
mandato devido a uma forte crise política -, também viu-se obrigado a renunciar,
o que acabou precipitando o já assinalado processo de intervenção federal à
província (VITULLO, 2008, p. 112).
Após o Santiagazo
começaram a explodir em diversas localidades do país vários protestos sociais
que passaram a desenvolver formas de mobilização popular pautadas pela ação
direta. A somatória dos protestos e tensões sociais que assolavam todo o país
desde a sua fase mais aguda entre os anos de 1996 e 1997, explode nos dias 19 e
20 de dezembro de 2001 na grande rebelião generalizada.
Por todo o país
eclodiam tensões sociais, movimento de desempregados, mulheres agropecuaristas
em luta, greves de professores, ocupação de fábricas e vários outros setores
sociais em luta contra aquilo que era considerado por eles os responsáveis por
toda a gama de dificuldades, lumpemproletarização, empobrecimento e diversas
outras humilhações sociais. Dentre os eleitos responsáveis destacam-se: os
governantes, os partidos políticos, o próprio Estado, a burocracia estatal,
partidária e sindical, suas hierarquias, o sistema financeiro nacional e
internacional, o FMI e o Banco Mundial e, para os setores mais radicalizados,
todas as relações sociais pautadas pela obrigatoriedade capitalista da
exploração do homem em troca da obtenção de lucros. Por essas razões o lema central
dessas jornadas foi expresso na frase “Que se vayan todos, que no quede ni uno
solo!” [9].
O caráter massivo dos
protestos sociais promovido pelos diversos movimentos piqueteros argentinos,
juntamente com seus métodos de bloqueios de estradas que impossibilitava a
circulação de veículos, pessoas e, principalmente mercadorias, assim como a
construção de formas de participação e decisões políticas pautadas por uma
espécie de democracia direta, decisões coletivas e horizontais em assembléias
etc. consistiram nas principais razões que levaram os poderes governamentais a
temerem a expansão dessas formas de organização e da consciência de classe
derivada das mesmas.
Por esses motivos é que
desde o início dos primeiros levantes de desempregados, o governo argentino
procurou criminalizar as lutas sociais. No primeiro momento com a ampliação da
repressão policial – o deslocamento da Gendarmería (tropas militares), que
originalmente foi criada para defender as fronteiras nacionais, para as
províncias patagônicas tomadas pelas puebladas é um sinal demonstrativo da
mudança na política repressiva. Com o avanço das lutas e das mobilizações
populares o governo inicia um intenso processo de judicialização dos militantes
de diversos movimentos sociais, principalmente dos integrantes de movimentos
piquteros. Segundo Korol & Longo,
algumas
das formas em que se manifesta a criminalização dos movimentos populares é o
avanço do processo de judicialização dos conflitos, visível na multiplicação e
no agravamento das figuras penais, na maneira em que estas são aplicadas por
juízes e promotores, no número de processos contra militantes populares, na
estigmatização de populações e grupos mobilizados, no incremento das forças
repressivas e na criação especial de tropas de elite, orientadas para a
repressão e militarização das zonas de conflito (2009, p. 84).
Outra estratégia adotada pelo governo argentino para
criminalizar o movimento piquetero se deu através do uso excessivo dos meios de
comunicação com o objetivo de criar uma imagem negativa dos militantes. Dessa
forma, os meios de comunicação apresentavam os manifestos por direitos sociais
como delitos contra a ordem e os manifestantes como delinqüentes violentos,
assim como ocultando as motivações populares e apresentando apenas os episódios
de violência popular, com isso gerando o medo, fragmentando a sociedade e
impossibilitando o crescimento do apoio às lutas por direitos sociais[10].
O regime de acumulação
integral é marcado por contradições crescentes, pois se de um lado é necessário,
para manter a acumulação capitalista, realizar cortes drásticos em políticas
sociais, corroer os direitos trabalhistas, precarizar e intensificar as
relações de trabalho, expandir e intensificar a lumpemproletarização para
alimentar o exército industrial de reserva e seu papel na manutenção de baixos
salários e etc., por outro lado ela se vê obrigada a intensificar a repressão,
pois, em conseqüência de tais práticas, cresce a violência contra a propriedade
privada, os protestos sociais se radicalizam e a criminalidade tende a se
generalizar. No entanto, o Estado neoliberal não pode ser mantido às custas da
não redução da dívida pública e da poupança de recursos, e por isso tal Estado
opta por ampliar o aparato repressivo e criminalizar o movimento piquetero e
diversos outros movimentos sociais. É exatamente isso que vem ocorrendo na
Argentina contemporânea e em diversas outras regiões do globo.
O movimento piquetero
nos fornece um excelente exemplo de que a postura política do
lumpemproletariado não é a mesma em todos os contextos históricos, pois se na
França do século XIX, o lumpemproletariado foi cooptado pelo Estado francês e
utilizado na repressão contra o avanço das lutas operárias, na argentina
contemporânea, as lutas dessa classe social desenvolveu-se de forma autônoma,
inicialmente desvinculada das instituições burocráticas, tais como sindicatos e
partidos políticos, resgatando práticas do movimento operário revolucionário
(assembléias coletivas e horizontalizadas, auto-organização dos bairros e de
algumas atividades produtivas etc.) e adquirindo elevados níveis de
radicalidade, que o tornou o principal ator em luta contra a intensificação da
lumpemproletarização, típica da acumulação integral subordinada.
Portanto, não é
possível afirmar que o lumpemproletariado é, e sempre será politicamente
reacionário e cooptável, pois sua postura política se altera dependendo do
contexto, das singularidades regionais e da correlação das forças sociais,
podendo representar uma importantíssima aliança com o proletariado em torno de
um bloco revolucionário. Na contemporaneidade, a postura contestadora do
lumpemproletariado tende a crescer e, consequentemente, a se apresentar como
uma ameaça cada vez maior à existência da sociedade capitalista.
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*
Doutorando em Sociologia/UFG e pesquisador do NUPAC – Núcleo de Pesquisa e Ação
Cultural.
[1] Sobre o
regime de acumulação integral Cf. VIANA, 2009.
[2] Para
nós, o lumpemproletariado equivale a uma classe social composta pela totalidade
do exército industrial de reserva (desempregados temporários ou de longa data,
mendigos, sem-tetos, prostitutas etc.).
[3] “O
cidadão, enfim, é um indivíduo que cumpre com seus deveres e direitos, ou seja,
é aquele que respeita a propriedade privada, a liberdade de imprensa etc., paga
os impostos, legitima o estado capitalista reconhecendo o processo eleitoral
etc. O cidadão é o indivíduo conservador, o indivíduo que aceita o mundo
existente, ou seja, a sociedade burguesa (modo de produção capitalista e formas
de regularização não-estatais) e o estado capitalista. A cidadania, por
conseguinte, é a concretização dos direitos do cidadão e, portanto, significa a
integração do indivíduo na sociedade burguesa por intermédio do estado” (VIANA,
2003, p. 69).
[4]
Utilizamos o conceito de classes auxiliares em substituição ao constructo
ideológico de “classes médias”. A garantia e manutenção dos interesses dessas
classes estão intimamente vinculadas à sociedade capitalista, portanto, “o que
se deve ressaltar é que as classes auxiliares, devido às necessidades de sua
própria reprodução, bem como sua inserção social, auxiliam a dominação burguesa
[...]” (VIANA, 2003, p. 72).
[5] Já há algumas décadas, diversos estudos vêm
sendo realizados sobre a dívida externa dos países da América Latina e vários
deles apontam para o seu caráter ilegal. De acordo com estudos realizados por
pesquisadores do Observatório da Dívida na Globalização (Catalunha, Espanha),
“no caso argentino, durante o mandato de Carlos Ménen (1989-1999), se ampliou o
número de juízes da Corte Suprema de Justiça (o máximo tribunal de justiça), e
o executivo designou, com apoio de um senado majoritariamente menemista,
cortesias a dependentes do regime. Com isso, o governo de Ménen assegurava a
ratificação de todos os seus atos sem que fossem impugnados por via judicial.
Na mesma época se revisou a Constituição Nacional (1994). A reforma da Carta
Magna não só permitiu a reeleição de Ménen, mas, além disso, facultou o
presidente a tomar decisões próprias do Parlamento (delegação do poder
legislativo ao poder executivo) [...] Esse foi o marco político que
possibilitou que durante o ‘menemismo’ a dívida externa da Argentina crescera
150% e, em cumprimento as exigência do FMI, se privatizaram todas as empresas
de serviços públicos e as que controlavam os recursos estratégicos do país”
(RAMOS, 2006, p. 32-33).
[6] “Uma das
conseqüências de grande peso econômico e sócio-culturais mais inesperadas que
os setores médios têm sofrido na Argentina foi a de dar origem a um tipo de
pobreza com traços particulares, uma vez iniciado o intenso processo de
empobrecimento sofrido pela sociedade desse país. Basta dizer que entre 1980 e
1990 os trabalhadores em seu conjunto perderam em torno de 40% do valor de suas
rendas, e logo após certa recuperação em 1991 devido à estabilidade, voltaram a
perder em torno de 20% entre 1998 e 2001, com importantes oscilações até hoje.
A profundidade e persistência da crise iniciada em meados da década de 1970
fizeram com que milhares de famílias de classe média e de pobres de longa data,
que no passado conseguiam escapar da miséria, visualizassem suas rendas declinar
abaixo da “linha de pobreza” (KESSLER & DI VIRGILIO, 2008, p. 32).
[7] Um conjunto de obstáculos e dificuldades
possibilitou que a maior parte dessas experiências resultasse em fracasso.
Svampa e Pereyra apresentam alguns desses obstáculos: “Por causa da ausência de
uma verdadeira política de recursos humanos, muitas das empresas naufragaram
rapidamente, atravessadas por dificuldades ligadas ao reconhecimento da
autoridade, à tomada de decisões, a escassa capacidade negociadora, a
impossibilidade de obter contratos por causa do não cumprimento com obrigações
impositivas, a carência de edifício próprio e a impossibilidade de acesso ao
crédito, por falta de garantias de pagamento ou hipoteca; por último, pelos
problemas associados ao elevado nível de endividamento” (2009, p. 109).
[8] “Gatilho
Fácil é o nome utilizado na Argentina para denominar os episódios de abuso de
poder no uso de armas de fogo por parte da polícia. Em geral, as vítimas de
gatilho fácil são, sobretudo, jovens militantes dos bairros pobres, vítimas de
processos de disciplinamento compulsivo realizados pelas forças policiais. A
Correpi (Coordenadoria contra a repressão policial e institucional) tipifica
esses métodos como execução sumária aplicada pela polícia e que geralmente são
acobertas sob a alegação de mortes oriundas do enfrentamento. Esta pena de
morte ‘extralegal’ se distingue por duas etapas: o fuzilamento e o
acobertamento (KOROL & LONGO, 2009, p. 106).
[9]
“Que todos vão embora, que não fique nenhum sequer” (tradução nossa).
[10] Para saber
mais sobre o processo de criminalização da pobreza e dos movimentos sociais na
Argentina Cf. KOROL, Claudia (org.).
Criminalización de la pobreza y de La protesta social. Buenos Aires: El
coletivo/America libre, 2009); CARDOZO, Fernanda. “Protestar não é delito”. A criminalização dos movimentos sociais na
Argentina contemporânea – o caso do movimento piquetero (1997-2007). 2008.
Dissertação (mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2008. 130 p.
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