Neoliberalismo
e Movimento Piqueteiro na Argentina – A Experiência Neuquina (Argentina, 1996)
A
emergência de um tardio, porém robusto, movimento de contestação à
regularização neoliberal nas cidades petroleiras de Cutral-Có e Plaza Huincul,
província de Neuquén - Argentina (junho de 1996, reemergido em abril de 1997),
representou um significativo avanço na capacidade organizativa dos grupos e
classes sociais que se movimentaram para impedir e/ou reverter as formas sociais
neoliberais aprovadas para a região. Em seu trabalho, realizado no interior do
PIMSA,
Las formas de organización emergentes del
ciclo de la rebelión popular de los ’90 en la Argentina (2007), Paula
Klachko apresenta algumas das principais características desse movimento de contestação
social. Segundo a autora, as cidades de Cutral-Có, Plaza Huincul, foram tomadas por esse movimento que,
posteriormente, denominou-se de Movimento
Piqueteiro. Segundo a autora, esse expressou uma
organização mais complexa e sistemática
para manter os piquetes de bloqueio de estradas que sustentam a ocupação das
cidades por vários dias e para resistir à Gendarmeria, mas prevalece a prática
espontânea, já que se dilui quando conclui os enfrentamentos; Realização de
assembleias populares diárias; Participação massiva e socialmente heterogênea
nas assembleias; Emerge a personificação de “piqueteros” primeiro e “fogoneros”
depois, os que representam maior disposição à luta; Organização assembleiaria,
horizontal, prática democrática que acarreta a desinstitucionalização;
Delegados revogáveis das assembleias por piquetes para a coordenação entre eles
e para a negociação com os governos (os delegados devem consultar as
assembleias sob o que foi negociado antes de assinar os acordos) [...]
(KLACHKO, 2007, p. 159-160).
Como
é possível perceber, o movimento piqueteiro emergido na província de Neuquén
recupera uma série de ações e ferramentas radicais, próprias do movimento
operário, tais como piquetes, assembleias diárias, ações diretas, auto-organização
/organização horizontal, decisões coletivas, revogabilidade da representação
etc., que tendem a caminhar de forma autônoma e com certo grau de
desinstitucionalização das lutas. É necessário entendermos como esse movimento
se desenvolveu, qual a particularidade da região na qual ele emerge, que razões
explicam a emergência de sua radicalidade, que dinâmica adquiriu seus
enfrentamentos etc. Para isso é imprescindível recuperarmos um pouco da história
da região na qual ele insurge.
A
origem da Província de Neuquén está íntima e exclusivamente ligada ao
intervencionismo estatal na região que, logo após o extermínio da população
indígena local, através da “Campanha do Deserto”, se encarregou de criar as
melhores condições para o início da ocupação da Patagônia, visto que os
latifundiários agropecuaristas não manifestavam interesse em fazê-lo, nem
tampouco contribuir com o projeto de ocupação territorial. Portanto, os
Territórios Nacionais nasceram mediante o saque violento dos territórios
indígenas, constituindo-se em entidades jurídicas distintas das províncias, nas
quais sua administração territorial era exercida pelo governo central, com o
propósito de promover a organização econômica-social e demográfica adequada
para seu processo de provincialização (BUCCIARELLI, 1999).
Desde a incorporação (massacre genocida)
desses territórios ao estado nacional, entre o final do século XIX até a
primeira metade do século XX, a economia local se baseava na pecuária e na
agricultura em menor medida. Somente a partir da década de 1960 e,
principalmente a partir de 1980, é que a província passará a se destacar como
polo produtor de energia: petróleo, gás e eletricidade. A estrutura
econômico-administrativa aí instalada fundamentou-se no crescimento
extraordinário dos serviços em geral e do funcionalismo estatal. O setor de
comércio e de serviços privados era responsável por aproximadamente um terço da
ocupação da força de trabalho, em conjunto com os funcionários públicos,
somavam dois terços os trabalhadores que estão ocupados no setor terciário da
economia (comércio, administração pública, transportes, finanças, saúde,
educação etc.).
Conforme
aponta Bonifacio (2011), a província de Neuquén foi marcada por duas
modalidades de regularização estatal, em períodos distintos: a) a regularização
integracionista
(estado integracionista – 1960/1980) e b) a regularização neoliberal (estado
neoliberal – 1990/dias atuais). Segundo esse autor,
essas formas de intervenção estatal na
economia foram acompanhadas por diferentes lógicas de intervenção social. Na
primeira etapa, a intervenção estatal se aproxima ao denominado Estado de
Bem-Estar. Em uma sociedade dinâmica que cresce com as contribuições das
migrações nacionais e estrangeiras, o Estado favorece a integração social
mediante constante oferta de trabalho e a cobertura da infraestrutura social:
saúde, educação, habitação e ação social. Na segunda etapa a intervenção
estatal adquire um forte conteúdo neoliberal cujo resultado foi a formação de
uma sociedade polarizada, caracterizada por um processo de desintegração
crescente, com altos níveis de conflitividade social. Durante as duas etapas o
Estado foi conformando sólidas redes clientelares para garantir o controle
político dos setores subalternos, através de diversas estratégias de
intervenção territorial (BONIFACIO, 2011, p. 66).
Durante
o período de regularização interventora, o estado nacional encarou sua
determinação fundamental de regularizar as relações de produção (e reprodução)
capitalistas que, em um contexto de capitalismo subordinado, no qual inexiste
uma burguesia com autonomia suficiente para incitar o processo de acumulação
por conta própria, o estado se apresenta como o único com capacidade de
impulsionar o desenvolvimento capitalista com suas singularidades regionais: “o
fato decisivo é a inexistência de uma burguesia local importante, com bases de
acumulação independentes do Estado [...] é sintomático que o grosso dos mais
importantes empresários provinciais seja seus provedores ou empreiteiros. O
setor produtivo da economia é raquítico” (PETRUCCELLI, 2005, p. 17). As duas
exceções são compostas pelo setor energético, uma atividade mais extrativa do
que produtiva, e a indústria de construção que se desenvolveu à sombra das
obras estatais.
Essas
peculiaridades em muito se deve à correlação de forças políticas existentes na
província desde os anos 60, marcadas pelo monopólio político do Movimento Popular Neuquino (MPN), que
reinou absoluto ao longo de quatro décadas, estando intimamente ligado à
estrutura econômica provincial e exercendo um papel preponderante no seu
interior. Como resultado das intervenções estatais no setor produtivo local,
consolidou-se uma economia fundamentalmente caracterizada pela especialidade
nas atividades de extração de petróleo, gás e eletricidade. Essa economia
especializada possibilitou a emergência de uma burguesia comercial local que se
fortaleceu amparada pela intervenção estatal. Nesse sentido, exercer o controle
sobre as decisões do estado tornou-se decisiva para essa classe social e, por
essa razão, a burguesia neuquina está composta por indivíduos diretamente
vinculados com a burocracia estatal e com a burocracia partidária do MPN. Na
verdade, “em Neuquén os políticos são empresários e os empresários são políticos”
(PETRUCCELLI, 2005, p. 18).
As
classes sociais que se enriqueceram e prosperaram sob o amparo do estado
nacional foram os responsáveis por fundar, no ano de 1962, o MPN. A partir de
1963, com a eleição de Felipe Sapag a governador da Província, dá-se início ao
processo de constituição do estado, formação de uma burocracia estatal composta
por técnicos-administrativos especializados e influenciados pelas ideias
dominantes da época, em torno do modelo de industrialização predominante na
América Latina. Em tal modelo, era o estado nacional quem exclusivamente
financiava todas as atividades de grande envergadura, tais como a extração de
hidrocarbonetos, construção de grandes obras de infraestrutura, que
possibilitariam o crescimento econômico provincial. A nascente burocracia
estatal, de origem burguesa, soube muito bem utilizar as redes mercantis,
clientelistas e de parentesco para garantir o apoio político de diversas
classes sociais e, também, a subordinação das classes subalternas. Nesse
sentido,
a riqueza estatal permitia gerar uma
ampla rede de obras, serviços e empregos públicos, que beneficiava tanto os
assalariados e os pequenos produtores, como aos empresários que acessava as
licitações ou eram beneficiados com prêmios diretos de legalidade duvidosa,
porém absolutamente habituais. As sucessivas ondas de trabalhadores imigrantes
que chegavam a Neuquén tinham poucos motivos para estarem em desacordo com a
província que lhes “brindava” oportunidades laborais, salariais, educativas,
habitacionais e de saúde com as quais, em muitos casos, não poderiam nem sequer
sonhar em seus lugares de origem. Esses tangíveis benefícios eram a base
material de uma forte identificação simbólica e emotiva com a Neuquén e seu
partido, que redundava e ainda redunda na supremacia indisputada do MPM. Ao
longo desses anos o partido do governo – quase um partido-Estado, como gosta de
dizer meu amigo Silvio Winderbaum – tem tecido uma frondosa rede de
clientelismo político, que se estende não apenas entre as classes assalariadas,
senão que também inclui a muitos produtores, formalmente autônomos, mas que de
fato dependem do Estado (PETRUCCELLI, 2005, p. 18-19).
Demonstração
clara do monopólio político absoluto do MPN em Neuquén é fornecida pelo fato de
que as grandes disputas partidárias na província equivalem a disputas
intrapartidárias. Tal monopólio, em parte, se deve a existência de uma oposição
política fragmentada e dividida entre os dois maiores partidos políticos
nacionais, a União Cívica Nacional
(UCR) e o Partido Justicialista (PJ).
Apesar dos discursos federalistas e suas constantes críticas ao estado
nacional, o MPN sempre foi um partido “oficialista”. Governe quem governe o
estado nacional (peronistas, radicais, militares), o MPN sempre oferta apoio
político, direta ou indiretamente, aos governos nacionais em troca de
benefícios. É importante perceber que o MPN soube capitalizar muito bem as
benesses políticas, oriundas principalmente da adesão das classes exploradas,
ao seu discurso federalista, pois
este componente ideológico possibilitou
exitosamente a remissão do conflito de classe à relação entre a província e o
poder centralizado de Buenos Aires. Este tipo de federalismo constituiu-se no
princípio ideológico articulador, mediante o qual as classes dominantes na
província lograram capturar com êxito as orientações dos setores populares,
inscrevendo assim seus interesses em termos de “interesse geral provincial”.
Dessa forma, se reduziu o potencial antagônico das classes subalternas aos
setores dominantes (PALERMO apud BONIFACIO, 2011, p. 71).
Ademais,
o estado neuquino usufruía de uma importante autonomia financeira, proveniente,
fundamentalmente, dos royalties do petróleo, mas também da exploração de gás e
eletricidade e da arrecadação provincial, que juntas equivaliam a mais da
metade das receitas da província. Através do Regime de Coparticipação Federal dos Impostos, das receitas
provinciais e dos royalties, a província conseguia cobrir seus gastos
operacionais, ficando livre de quaisquer riscos que o corte nos envios
discricionários federais pudessem representar, fato que facilmente seria
aproveitado pela oposição ligada ao governo central. Tal autonomia deixava os
governos provinciais em uma situação favorável para negociar com o estado
nacional, visto que esse “não podia afogá-los, e o apoio às políticas do
oficialismo em escala nacional sempre era em troca de contrapartidas materiais”
(PETRUCCELLI, 2005, p. 20).
Outra
determinação importante que auxilia nossa compreensão sobre a emergência de um
movimento de contestação social (movimento piqueteiro) na província, remete a
existência prévia de uma cultura contestadora na região. Desde a década de 1960
passava a existir na província, essencialmente na sua capital Neuquén, uma
cultura contestadora que, por mais que fosse marginal, era bastante ativa e
numerosa. Tal cultura contestadora não era homogênea, nem tão pouco se
inspirava em uma única fonte político-teórica (ou ideológica no sentido
marxista), no entanto, compartilhavam de muitos valores e práticas sociais:
desejo por igualdade, um genérico anti-imperialismo, uma visão positiva da
contestação e militância social, uma concepção crítica em relação à sociedade,
uma organização e mobilização coletiva cotidiana, a preocupação com os direitos
humanos (herança da última ditadura burguesa), uma postura opositora ao MPN e
certo nível de consciência de classe (PETRUCCELLI, 2005). Bonifacio sintetiza a
existência dessa cultura contestadora (denominada por ele de contracultura do
protesto) da seguinte maneira:
uma história que combina processos
políticos e lutas coletivas contribuíram na formação desta contracultura do
protesto: a) as greves dos operários da construção nas grandes hidrelétricas,
b) a migração de chilenos (sob posse de uma cultura contestadora) logo após o
golpe militar de 1973, c) o papel da igreja neuquina durante a última ditadura
militar (catolicismo progressista militante), d) o papel da Universidade
Nacional de Comahue (movimento estudantil combativo) e e) a própria cultura que
se recria nas constantes lutas sociais. Esses processos remontam a uma história
de mais de três décadas, foram interiorizados por sujeitos que tem uma
disposição a perceber, valorizar, sentir, pensar e atuar no marco de uma
cultura militante e combativa [...] (2011, p. 88 – parênteses nossos).
A
chegada da regularização neoliberal promoveria alterações drásticas na paisagem
social neuquina. De uma província notada, em meados dos anos 70, pelo
desenvolvimento econômico, se tornaria, nos anos 90, em uma ilha de desemprego
e precarização laboral, mas também de resistência ao neoliberalismo, marcada
pela emergência de um arrojado movimento de contestação social, responsável por
árduos enfrentamentos contra o processo de regularização da acumulação
integral. Nascia aqui o Movimento Piqueteiro.
Iniciada
na segunda metade da década de 1980, a fase de regularização neoliberal promoveu
uma acentuada redução das receitas públicas, através da diminuição do pagamento
dos royalties dos setores energéticos, levando o estado a adotar uma série de regularizações
neoliberais para readequar as contas públicas. No ano de 1991, com a
consolidação do processo de privatização das empresas estatais, a forma de
intervenção do estado e sua relação com as empresas, assim como as relações
sociais em conjunto, alteraram significativamente.
É importante destacar que nessa província
desenvolveu-se aquilo que Carrera, Podestá e Cotarelo (1999) denominam de capitalismo de estado en enclaves, isto
é, caracterizado por uma atividade da grande indústria, com características
singulares, típicas da atividade extrativista energética, tais como a pequena
quantidade de parques industriais, com elevada ocupação do proletariado na
indústria petroleira, construção, eletricidade, gás e água, nas quais o estado
é o proprietário dos meios de produção. Porém, com a regularização neoliberal,
tais empresas se privatizam e tornam-se poucos grandes complexos oligopólicos
extrativistas internacionais.
Conforme
aponta diversos estudiosos do tema, a empresa Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), maior empresa
produtiva-extrativista da Argentina, modelo de empresa estatal petrolífera para
toda a região, constituía um verdadeiro
estado dentro do estado, no qual o conjunto da vida social estruturava-se,
direta ou indiretamente, em torno de suas atividades (SVAMPA E PEREYRA, 2009;
ARTESE, 2009). Seguindo Svampa e Pereyra (2009), o modelo de desenvolvimento
social instituído pela empresa era expressão máxima do estado social
interventor argentino, no que se refere à garantia dos direitos sociais em
geral. Os trabalhadores da YPF eram os trabalhadores mais bem remunerados pelo
estado e pertencer ou não pertencer a YPF marcava fronteiras sociais nítidas no
interior dessa sociedade. Assim como as relações sociais internas eram também
caracterizadas por uma alta hierarquia entre os diferentes setores que a
compunham.
Ao
longo de todo o século XX a exploração petrolífera estatal conviveu com a
exploração privada, em um quadro de grande instabilidade nos quadros
regulatórios dessa indústria extrativa. Em diversos governos houve reformas que
regularizavam a participação de capitais privados nas atividades de exploração
e comercialização do petróleo, de acordo com o sistema de concessões mineiras. Tais concessões eram suspensas e retornavam
segundo as políticas estatais nacionais, no entanto,
logo após o golpe de estado militar, uma
nova mudança na orientação petrolífera indicaria uma política mais firme em
direção a abertura para a exploração privada. Não é casual, aliás, que o
endividamento externo e o agravamento da situação financeira da empresa se
deram durante o período da ditadura militar. Assim, até o final do Processo de
Reorganização Nacional e início do regime democrático, as constantes
desvalorizações do peso levaram as empresas privadas a desenvolverem uma forte
política de pressão para a renegociação dos contratos (Gadano, 1998). A isso
tem que somar a política de “subsídio” que YPF se permitia desenvolver para com
outras do Estado, que não pagavam seus consumos. Assim, a setenta anos de sua
criação, a empresa que havia sido o “modelo de indústria petrolífera estatal”
na América Latina, se encontrava distante da performance de seus pares mexicano e venezuelano, pois,
paradoxalmente, em lugar de representar uma fonte de divisas para o Estado, havia
se constituído em uma empresa onerosa, na qual havia que assistir
financeiramente. Nesse contexto, exacerbado pelo discurso neoliberal do governo
Menem, se prepara e se dispõe primeiro à privatização, logo após a
reestruturação e, por último, a reorganização laboral da YPF (SVAMPA e PEREYRA,
2009, p. 106-107).
Desde
1989 o processo de privatização da YPF vinha sendo instrumentado por decretos
(1.055, 1.212 e 1.589) que determinavam a transferência de vastas áreas de
extração para a iniciativa privada. Em 1992, com a nova Lei de Hidrocarbonetos
(21.145), transferia-se para as províncias a posse sobre os hidrocarbonetos e,
ao mesmo tempo, declarava a YPF sujeita à privatização integral. No primeiro
momento, buscou-se vender suas ações de forma fragmentada, com o intuito de não
deixar nas mãos de um único operador internacional, no entanto a partir de 1999
a YPF convertia-se em propriedade da empresa espanhola Repsol.
Sua privatização promoveu uma verdadeira
devastação social para a província de Neuquén e outras províncias petroleiras.
A consequência imediata do processo de reestruturação produtiva e, logo após a
privatização da YPF, foi a intensa lumpemproletarização social
ocorrida na região de Cutral-Có e Plaza Huincul. Para termos uma ideia da
intensidade desse processo, basta resgatarmos alguns números. Em 1990 a empresa
possuía 50 mil funcionários, depois da privatização, foram demitidos 44.400
trabalhadores. O número de demissões entre 1990 e 1997 foram os seguintes:
Província de Salta – 3.400; Província de Neuquén – 5.000; Região da Bacia
Austral – 1.660; em Comodoro Rivadavia – 4.402; Santa Fé – 1.777. Juntamente
com a lumpemproletarização, a privatização trouxe as formas de valorização do
regime de acumulação integral e sua intensificação do trabalho, a precarização
dos contratos e consequentemente do trabalho, a redução do pagamento de
horas-extras etc. daqueles que permaneceram empregados.
A
política de reestruturação (demissão) da YPF foi marcada pela existência de
duas modalidades: retiros voluntários e licenciamentos. Parte expressiva das
indenizações recebidas pelos demitidos foi utilizada para aquisição de pequenos
empreendimentos comerciais individuais (lojas e remisería – tipo de serviço
parecido com o taxi) ou para a aquisição de bens (automóvel, residência etc.).
Passado alguns anos, boa parte de tais empreendimentos faliram, seus bens foram
vendidos e a lumpemproletarização se expandiu. Um exemplo nítido de como esse
processo ocorreu, pode ser fornecido pela experiência dos ex-trabalhadores da
YPF.
Com
o intuito de levar à cabo a enorme quantidade de demissões na YPF e, ao mesmo
tempo, mascarar a lumpemproletarização e controlar o nível de conflitividade
social que nasceria dela, o estado procurou, juntamente com a empresa
privatizada e com a conivência do principal sindicato do setor petrolífero
(SUPE), impulsionar a criação de pequenas empresas prestadoras de serviços,
formadas pelos seus ex-trabalhadores, e de acordo com a área em que trabalhava,
através do repasse de maquinarias e outros bens como parte das indenizações por
demissão. No primeiro momento, essas pequenas e médias empresas alavancaram com
a assinatura de contratos de serviços de 18 a 24 meses. Passado esse momento,
tais empresas começaram a ter enormes dificuldades para renovar os contratos
visto que a Repsol
continuou
multiplicando suas exigências. Reclamando bonificações, subdividindo os
contratos por zonas; em suma, fixando tarifas a níveis de custo tais que para
muitos se tornou impossível manter os empreendimentos. Em segundo lugar tem que
agregar que a maior parte dos equipamentos vendidos pela YPF era obsoleta. Em
pouco tempo, as dificuldades de renovação tecnológica coincidiram com o aumento
das exigências tecnológicas da empresa. Por último, as contratadas deviam competir
com as outras empresas de serviços de alta performance
e acostumadas às regras do mercado [...] Por conta da ausência de uma
verdadeira política de recursos humanos, muitas das empresas naufragaram muito
cedo, atravessadas por dificuldades ligadas ao reconhecimento da autoridade, a
tomada de decisões, a escassa capacidade negociadora, a impossibilidade de
obter contratos por incumprimento das obrigações impositivas, a carência de
prédio próprio e impossibilidade de acesso a créditos por falta de garantias de
penhor e hipotecárias; por último, a problemas associados ao elevado nível de
endividamento (SVAMPA e PEREYRA, 2009, p. 109).
Somadas
à intensidade da lumpemproletarização, em consequência da privatização da YPF,
outras determinações contribuíram para a emergência de uma forte contestação
social na região. Referimos-nos fundamentalmente às lutas internas no MPN e a
consequente decisão da burocracia provincial de cancelar um contrato realizado
pelo governo anterior, com a empresa canadense Agrium que se instalaria na região. Tal instalação era encarada
pela população local como prováveis condições de desenvolvimento e oferta de
trabalho. Outra determinação foi fornecida pela greve docente que contestava a
lei neoliberal de educação e das consequências da privatização, que “em busca
de solidariedades sociais, encontraram nos habitantes de Cutral-Có e Plaza
Huincul, aliados inesperados” (BONIFACIO, 2011, p. 163). Vejamos essas
determinações.
Em
dezembro de 1995, eleito novamente governador de Neuquén, Sapag assume o poder
com a missão de programar as medidas de regularização neoliberal na província.
Envolto na dinâmica das lutas intestinais da burocracia partidária, Sobisch,
arqui-inimigo histórico de Sapag, foi o ex-governador que iniciara as
negociações com a empresa canadense, decide cancelar as negociações para sua
instalação na região:
na noite de 19 de junho de 1996, Sapag
anunciou a ruptura do contrato com a empresa canadense “Agrium”, para construir
uma planta de fertilizantes. O acordo havia sido firmado pelo anterior
governador Jorge Sobisch (linha branca do MPN). Tratava-se de um contrato
leonino: o estado cedia os terrenos e a provisão de água e energia elétrica,
renunciava aos royalties das reservas de gás “El mangrullo” e, como se isso
fosse pouco, comprometia-se a investir 100 milhões de peso/dólares para a
instalação. Agrium teria um prazo de 24 meses para a construção. Os moradores
das localidades de Cutral-Có e Plaza Huincul não conheciam em detalhe os termos
do acordo; mas a construção da planta supunha emprego temporário por um par de
anos para umas 1.500 pessoas, mas uns duzentos postos permanentes. O
desaparecimento desses postos laborais esperados por longa data incendiou o
pavio da rebelião, em uma das localidades em que o desemprego havia se
convertido em uma verdadeira praga (PETRUCCELLI, 2005, p. 43).
O
oportunismo político de Sobisch e de seus partidários se manifestou na manhã do
dia 20 de junho de 1996 quando a Radio
Victoria, porta-voz histórica de Sobisch na região, transmitiu a notícia do
cancelamento do acordo com a empresa canadense Agrium e disponibilizou seus
microfones para que os ouvintes emitissem suas opiniões a respeito de tal
cancelamento. Sem dúvida alguma, essa rádio e alguns burocratas “blancos”
contribuíram para a convocatória de uma mobilização que, logo em seguida
caminharia no sentido da composição de um robusto movimento de contestação
social radical que lhes escaparia o controle. O enfático anúncio sobre o não
cumprimento do acordo (traição de Sapag),
emitido pelo proprietário da rádio, Mario Fernández, foi decisivo para o início
das convocações mobilizatórias. Ás 09 da manhã ele exclamou: “acaba de consumar
a traição de Felipe Sapag, não teremos a planta de fertilizantes. É a traição
de Felipe a Cutral-Có”.
Tratou-se,
no primeiro momento, de um oportunismo faccioso interno ao MPN, articulado
pelos partidários “blancos” de Sobisch contra o governo de Sapag. Diversas
ações confirmam essa articulação política, dentre elas podemos citar: a) a
convocatória lançada pela Radio Victoria para uma mobilização às 16 horas no
acesso a Plaza Huincul; b) Por volta das 11 horas Leticia García, legisladora
da fração “blancos”, informava a um jornalista do diário Río Negro que em
Cutral-Có haviam bloqueado uma estrada, fato que se concretizaria somente às 16
horas. No dia seguinte, vereadores e deputados “blancos”, junto com alguns de
seus aliados peronistas, estiveram presentes no bloqueio da estrada; c) No dia
20 de junho, partidários “blancos” convocam para um protesto no setor da Torre Uno, meia hora depois um militante
(Opazo) do MPN atravessar seu automóvel sobre a estrada 22 – “Opazo sabia o que
fazia mas ignorava o peso dessa primeira pedra” (Río Negro, 25/06/2006); Adolfo
Grittini, ex-prefeito de Cutral-Có, partidário “blanco”, auxiliou o bloqueio da
estrada fornecendo produtos e gasolina para aqueles que mantiveram a estrada e
as cidades bloqueadas por dois dias
(BONIFACIO, 2011).
Por
volta das 16 horas começaram a concentrar os primeiros manifestantes na Torre
Uno. Os primeiros a se concentrarem ali foram estudantes secundaristas e
professores. Com apoio concedido por partidários “blancos” taxis e remises
(serviço parecido com o de taxi) começavam a levar pessoas para o bloqueio na
estrada 22 e aos poucos a concentração de pessoas tornou-se massiva e pneus
incendiados começaram a ser utilizados para o bloqueio da estrada nacional 22 e
a provincial 17. Diversos comerciantes em apoio ao bloqueio fecharam seus
estabelecimentos, às 22 horas os postos de gasolina suspendem o serviço,
passando a abastecer somente ambulâncias, taxis utilizados para levar pessoas
ao bloqueio, viaturas policiais e bombeiros. Em seguida passaram a bloquear a
entrada dos principais postos de fornecimento de combustível, assim como suas
estradas de acesso alternativas. Às 08 da manhã, do dia 21 de junho, o
município de Cutral-Có concede folga a todos os seus funcionários, logo depois
a Cooperativa de Energia Elétrica, assim como o município de Plaza Huincul, faz
o mesmo. Ao meio dia todas as escolas suspendiam suas atividades, os comércios
fechavam suas portas, os serviços de transporte coletivo paralisavam e o
aeroporto era bloqueado por piquetes, com todos os voos cancelados. Os
bloqueios começavam a preocupar o abastecimento de combustíveis para a região.
Em cidades vizinham começavam a formar filas para o abastecimento de automóveis
e a YPF começava a rearticular seu abastecimento (PETRUCCELLI, 2005; BONIFACIO,
2011).
Os
contestadores sociais que passaram a improvisar com pedras, pneus e todo tipo
de escombro que pudesse auxiliar no bloqueio das estradas, assim como no fogo
para amenizar o implacável frio patagônico, construíam, naquele momento, os
primeiros traços daquilo que entraria para a história com o nome de piquete e
seus mantenedores ficariam conhecidos como piqueteiros. Vejam, portanto, que os
piqueteiros de Cutral-Có e Plaza Huincul não se restringiam ao
lumpemproletariado (desempregados), pois os comerciantes auxiliaram fechando
seus negócios e fornecendo alimentos e outros produtos que ajudavam na
manutenção dos piquetes. Milhares de pessoas foram se concentrando nos
piquetes, no entanto, aqueles que se prontificaram a garantir a segurança e
proteção aos mais de vinte piquetes instalados na estrada, sustentar a queima
de pneus e enfrentar todos aqueles que tentassem ultrapassar o boqueio, eram
compostos basicamente pelos desempregados (lumpemproletários).
Durante a jornada de sábado, 22 de junho de 1996, os
piquetes se multiplicaram e atingiram a quantidade de 21, cercando toda a
cidade. Durante a tarde foi realizada uma assembleia no piquete próximo ao
setor da Torre Uno, com aproximadamente 05 mil contestadores sociais que
decidiram com vigor e força sua ordem: Que venha Sapag! Essa assembleia foi
realizada logo após o descaso da burocracia governamental que insistia em
afirmar, com vistas a descaracterizar a contestação social, que a mesma não
passava de manobra política da oposição composta pelos “blancos”. Por volta das
15 horas, a burocracia estatal provincial modera sua posição e busca iniciar um
diálogo com os contestadores sociais, com o objetivo de propor a formação de
uma comissão de representantes para se reunir com o governador na capital. Na
verdade, trata-se da estratégia da burocracia para fragmentar o movimento e
negociar com as lideranças, algo inexistente nessa mobilização. A proposta é
apresentada por uma radio local e atinge um resultado oposto ao esperado, ao
afirmarem que não sabiam se o governador poderia chegar a Cutral-Có e que isso
não mudaria etc., incendiaram os ânimos dos piqueteiros que nesse momento
levantam o lema “ninguém viaja, ninguém negocia, a menos que o governador venha
falar conosco”. Com o passar das horas tal lema se resumiria no grito: Que
venha Sapag!
Os piqueteiros afirmavam que os piquetes só se
levantariam após a resolução concreta para o problema do desemprego. Aqui se
percebe uma forte manifestação do interesse imediato do lumpemproletariado no
interior dessa mobilização. No dia 23 de junho de 1996, circulava pelos piquetes
um texto, apresentado no Jornal La Mañana
del Sur, que foi lido em diversas rádios da região e expressava as razões e
objetivos do movimento de contestação social, na qual possibilita a preocupação
com algumas questões que remetem aos interesses imediatos do
lumpemproletariado:
Hoje o povo de Cutral Có y Plaza Huincul está de
pé, lutando pela dignidade de sua gente, bloqueamos as estradas de ingresso a
essas duas cidades porque pretendemos fazer escutar nossos direitos em busca de
uma reativação econômica real e concreta. O desemprego, a fome e a
falta de respostas do governo provincial nos levaram a isso. Se hoje bloqueamos
as estradas é porque sentimos indignação, marginalidade
e esquecimento. Nossa gente que hoje ocupa as estradas é a mesma que durante
várias décadas brindou seu trabalho de sol a sol para que esta província e o
país crescera… Então considerando a “falta de respostas oficiais”, o mínimo que
podemos pretender é uma reparação histórica. (…) Já não nos servem as mentiras
de alguns segundões … Hoje queremos a Felipe Sapag sim ou sim (Jornal La mañana
del Sur, 23-06-96 - negritos nossos)
Acostumado com o
jeito caudilho de ser, Sapag tinha pouca habilidade para lidar com a
contestação social. Sua postura conservadora e reacionária já não amedrontava
os contestadores sociais, pelo contrário, servia de lenha para seus piquetes.
Nesses primeiros dias da mobilização social, concederia algumas entrevista para
os jornais locais, na qual sua postura inflexível se destacaria, assim como seu
discurso criminalizador da contestação social:
Jornalista: “A população
quer que você vá a Cutral-Có...”.
Sapag: “Lhes digo que venha eles”.
Jornalista: “Mas eles não
querem vir”, lembrou o periodista.
Sapag: “Eu lamento, mas terão que vir.
Eu poderia, mas primeiro devem conversar comigo. Não posso ir a nenhum lugar que
tenha insubordinação”.
Jornalista: “Tão pouco vai
permitir que alguém do seu gabinete vá”?
Sapag: “Não, porque eles estão
com uma atitude de força que não é legítima, ocupar a rua e impedir que a gente
se mova e trafique é um delito” (Jornal Río Negro, 22/06/1996).
“A gente que continua com essas
drásticas medidas estão cometendo um delito, e nessas condições não posso
dialogar com a investidura de governador, Não posso dialogar com gente que está
cometendo um delito. Se a gente quer que eu vá, terá que voltar para sua casa e
despejar a estrada” (Sapag, governador de Neuquén, Jornal La Mañana del Sur,
24/06/96).
Enquanto por um lado a burocracia estatal acusava a
oposição de controlar o movimento de contestação social e a burocracia
partidária opositora buscava, realmente, formas de controla-lo; por outro lado,
no interior dos piquetes se organizava a contestação social através dos debates
nas assembleias e da participação direta e igualitária nas decisões, crescia
entre os contestadores uma forte desconfiança em relação à burocracia
partidária tradicional e seus interesses em canalizar a contestação social para
seus interesses particulares e oportunistas. Os burocratas, que desde o início
do bloqueio das estradas, estiveram presentes e auxiliaram na sua manutenção,
assim como outros que tentavam se aproximar dos bloqueios, passaram a ser
duramente hostilizados nos piquetes:
o
ex-prefeito Grittini, no momento de chegada ao cenário (local dos bloqueios e
piquetes) foi agredido verbalmente, não obstante persistindo em seu discurso
conseguiu arrancar aplausos dos assembleístas. Não tiveram a mesma sorte os
prefeitos Martinasso e Pérez que não puderam chegar ao cenário e em suas
intervenções foram objetos de constantes vaias e agressões verbais. Pior ainda
foi a situação que tiveram que atravessar o senador nacional pelo Partido
Justicialista Daniel Baum, os deputados provinciais e vereadores; quando
chegaram ao local lhes foram lançados elementos contundentes que os obrigaram a
desistir da ação (Jornal La Mañana del Sur, 03/06/96).
A hostilidade
dos contestadores sociais contra a burocracia estatal e partidária
(tradicional) não era gratuita, mas sim fruto do avanço, mesmo que ainda
limitado, da consciência de classe, no interior da luta de classes. Dessa
maneira, passaram a se organizar nos piquetes e pretenderam canalizar eles
mesmos suas demandas, através de representantes eleitos sob o calor do fogo e
fumaça dos piquetes. Já nos primeiros momentos da contestação social, setores
da classe subalterna
e do lumpemproletariado com tendências mais radicais recuperaram ferramentas de
luta e organização tradicionalmente pertencentes ao movimento operário
revolucionário. Dentre as principais estavam os piquetes, a assembleia
coletiva, a auto-organização, a decisões horizontais e a ação direta. O uso
combinado dessas ferramentas afastaram decididamente as pretensões da
burocracia partidária de exercer o controle sobre o movimento de contestação.
A primeira constatação que extraímos desses
registros é que os discursos emitidos pelos contestadores sociais ocupam um
espaço infinitamente menor (28,4%) que o espaço ocupado pelos discursos da
burocracia (56,8%). A maioria absoluta dos discursos dos contestadores sociais
demonstra, tanto antes quanto depois dos enfrentamentos, um elevado grau de
descontentamento e impaciência com a burocracia (apontada como a responsável
pela situação social) e exigências de soluções imediatas da parte da burocracia
(estatal e governamental) provincial. Mesmo nos discursos dos contestadores
sociais, que também é produzido pelo capital comunicacional que seleciona,
recorta, fragmenta o discurso etc., existe uma mensagem implícita que os
apresenta de forma negativa (ameaçador, duro, violento, radicais, impacientes),
parecendo confirmar a corrente de opinião do capital comunicacional.
Em segundo lugar, as declarações que buscaram
caracterizar os contestadores sociais e seus métodos compõe um total de 56
discursos dos quais 34% vinculam a contestação social com o delitivo, com a
violência e como prejudiciais para as instituições burguesas. Tais
caracterizações foram emitidas majoritariamente pela burocracia
estatal/governamental (aproximadamente 80%), o que revela um monopólio
discursivo por parte dessa classe social. Mais de 20% dos discursos analisados
nesse período apontaram para denúncias contra os bloqueios das estradas e da
exigência de encerramento da contestação social com o uso da repressão
institucional; mais de 40% dos demais discursos tem no seu conteúdo acusações
entre frações da burocracia partidária/estatal/governamental buscando
mutuamente na oposição os verdadeiros responsáveis pela contestação social
(ARTESE, 2013).
Podemos observar que o bloco dominante, desde o
início dos enfrentamentos sociais, veio construindo uma corrente de opinião
hegemônica que apontava para a criminalização da contestação social,
apresentando-a negativamente e de forma estereotipada como delitiva, violenta,
perigosa para o estado de direito e suas instituições e, portanto, ilegítima.
Coube ao capital comunicacional produzir e reproduzir essa corrente de opinião
diariamente, em diversos jornais provinciais e nacionais, ao longo dos dias que
antecederam e precederam a repressão institucional. Porém, é importante
ressaltar que para os milhares de contestadores sociais essa corrente de
opinião era falaciosa, pois em seus discursos o significado de delito era
interpretado de forma muito distinta, como exemplifica o discurso de um jovem
lumpemproletário que esteve presente nos piquetes e enfrentou o avanço da
gendarmeria:
delito
é deles. Delito é não trazer pão às crianças, não comprar os materiais da
escola, isso é delito. De que delito estão nos acusando quando o que você quer
é trabalho e algo para suas crianças? E te vem atacar com a gendarmeria ...
isso diretamente é matança, não delito, uma agressão moral. Aqui tem
criancinhas que estão anêmicas, que tem desnutrição, gente que não tem nem o
que comer. Delito é ter que levar meus filhos a um refeitório comunitário, e
que não haja fonte de trabalho para que comamos todos os dias na mesa juntos.
Não sei de que delito a juíza vem me acusar (ARTESE, 2013, p. 43).
A primeira Pueblada
de Cutral-Có, como ficou conhecido esse episódio, apresentaria de forma
mais transparente os elementos que combinariam a nova dinâmica da luta de
classes (a ação direta com fortes tendências à autonomização, decisões
horizontais em assembleia, auto-organização da luta etc.), seu principal
protagonista social (os piqueteiros que inicialmente formavam uma diversidade
de grupos e classes sociais e, posteriormente, passou a ser composto
majoritariamente pelo lumpemproletariado – desempregados, subempregados etc.),
seus principais métodos de luta (os piquetes bloqueando estradas, ruas e pontes
de acesso), sua eficácia contra a invisibilidade social (a radicalidade dos
piquetes garantiram a atenção do capital comunicacional e sua propaganda) e sua
principal exigência (trabalho).
Nessa pueblada, conheceríamos mais nitidamente
também a postura dos seus principais inimigos (burguesia e burocracia) diante
da contestação social. Para esses não haveria espaços para canais políticos
alternativos, ou está dentro da normalidade institucional, seguindo suas regras
e aceitando a regularização neoliberal ou será considerado um
delinquente/criminoso/inimigo imaginário e, portanto, passivo de repressão,
criminalização e eliminação (fuzilamentos). Para isso, a burguesia contaria com
o capital comunicacional e, fundamentalmente, com a burocracia para produzirem
e reproduzirem um discurso ideologêmico que criminaliza, apontando a
contestação social como delitiva, violenta; criando inimigos imaginários
(franco-atiradores, infiltrados, guerrilheiros, terroristas, comunistas etc.);
e construindo, a partir desses discursos, uma corrente de opinião hegemônica,
contrária à contestação social e seus métodos, temerosa do “perigo”
representado pelos piqueteiros e, por conseguinte, favoráveis à repressão
institucional. Nesse sentido,
se
trata de um produto de noções próprias de um paradigma ideológico no qual se
considera a autogestão como uma instância de periculosidade que deve ser
remediada, se necessário mediante castigo. A elaboração desse paradigma
conforma o germe, semente do processo de criminalização e penalização simbólica
do protesto que seria aplicado a outros episódios nos sucessivos governos
(ARTESE, 2013, p. 43).
Nessa pueblada podemos encontrar com maior nitidez
as principais características da nova dinâmica da luta de classes no
capitalismo contemporâneo (não só argentino), isto é a emergência de uma
postura política do lumpemproletariado com maior potencialidade para contestar
as formas sociais neoliberais, a recuperação de antigas, porém poderosas,
ferramentas de enfrentamento, com destaque para o bloqueio de estradas, ruas,
pontes e outras vias importantes para a reprodução da sociabilidade burguesa, a
auto-organização assembleiaria e horizontal como alternativa às moribundas
instituições tradicionais (partidos e sindicatos), a ação direta e o
enfrentamento declarado ao poder estatal burguês etc. Está claro que em resposta
a essas ferramentas e a radicalidade que as lutas contemporâneas tendem a
adquirir, o bloco dominante vem engendrando diversas maneiras de evitar o
avanço da contestação social que, no entanto, não possui grandes novidades. Na
verdade, o receituário repressivo burguês se apresenta como sendo mais do
mesmo, isto é, discurso criminalizador via capital comunicacional, construção
de uma corrente de opinião dominante que aponte para a deslegitimação da
contestação, invenção de inimigos imaginários em torno dos contestadores
sociais, criminalização de toda e qualquer luta social que apresente
dificuldades e barreiras para o avanço da insaciável acumulação capitalista e,
por fim, uma brutal repressão política, travestida de luta contra inimigos
sociais (imaginários) perigosos. É contra esse receituário que os contestadores
sociais contemporâneos precisam aprender a lidar para poder superá-lo e promover
o avanço da luta pela total transformação social.
Referências:
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consciência da história – ensaios sobre o materialismo histórico-dialético.
Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.
VIANA, Nildo. O
capitalismo na era da acumulação integral. Aparecida, SP: Ideias e letras,
2009.
“Na investigação de Auyero (2004a) menciona-se a
quantidade e qualidade de recursos que o ex-prefeito havia mobilizado para a
realização do protesto. Muitos dos entrevistados pelo autor falam do suporte de
caminhões carregados de cobertas para alimentar o fogo das barricadas, a
provisão de combustíveis gratuito aos veículos que se dirigiam aos postos de
bloqueio nas estações de serviço de sua propriedade, como demais insumos para sustentar
a presença dos manifestantes: alimentos, cobertas, combustível para aquecer-se
etc. Inclusive desde o oficialismo acusou-se a radio “FM Victoria” –que
difundiu pela primeira vez o fracasso das negociações entre a empresa de
fertilizantes e o governo de estar vinculada com o ex-prefeito e de cumprir um
papel de “alcoviteiro” ao incentivar a população a bloquear a estrada. O
prefeito de Cutral Có, Daniel Martinasso declarava que “tem gente do meu
próprio partido que segue manejando interesses pessoais e setoriais” (Río
Negro, 24-06-96, p. 1) [...] (ARTESE, 2009, p. 101-102).
“
A classe subalterna é
composta pelos trabalhadores assalariados improdutivos que exercem, na divisão
social do trabalho, a atividade de serviços em geral, desde os comerciais aos
domésticos (VIANA, 2012). Marx já havia percebido a emergência de subalternos
domésticos, que ele denominou ‘classe dos serviçais’ (MARX, 1988). Nesse
sentido, um ‘datilógrafo’ (hoje seria um ‘digitador’) não é um membro da ‘nova
classe média’ (que englobaria a burocracia), como alguns erroneamente pensam
(DAHRENDORF, 1982; CAMPOS, 1976), muito menos outros funcionários (como
funcionário de limpeza ou faxineiro) seria parte da burocracia ou mesmo do
termo equivocado e genérico de ‘nova classe média’. Eles pertencem, na verdade,
à classe subalterna, pois não tem poder de decisão dentro da organização”
(VIANA, 2015a). Também Cf. (VIANA, 2012).
“No mesmo dia dos enfrentamentos, a multisetorial de Neuquén -que
aglutinava os grêmios docentes da ATEN, legislativo (ANEL), judicial (SEJUN),
estatal (ATE) junto a partidos políticos, la APDH local e outras organizações
de Direitos Humanos convocou a uma paralização geral –que obteve um elevado
acatamento nas escolas- e a movilização em apoio aos moradores das regiões em
conflito. Segundo os diários locaiss, mais de 2.500 pessoas se mobilizaram
desde o centro da cidade até a ponte que une as cidades de Cipolletti com
Neuquén – que seria umo dos epicentros do protesto de março e abril de 1997-,
interrompendo-o das 13hs00min. até as 17hs00min. O mesmo ocorreria na ponte que
une a localidade neuquina de Centenario (ao norte da capital) com a região
rionegrinha de Cinco Saltos. Estes atos de solidariedade realizados pelos
grêmios se produziram, contudo, quando o conflito encerrava. Apesar dos já sabidos
transtornos produzidos pelo bloqueio desses importantes caminhos, a população
neuquina aderiu e saudou a medida” (La Mañana del Sur, 27-06-96 apud
ARTESE, 2009, p. 112).)
Alguns discursos dos
piqueteiros parecem reforçar implicitamente a corrente de opinião que o capital
comunicacional visava produzir e tornar predominante, isto é, os contestadores
como violentos e delinquentes, contudo não passa de aparência. Por exemplo, no
trecho a seguir: “Estamos
cansados de viver de esmolas e de sermos mantidos por nossas mulheres. Não
queremos mais discursos, se isso não for corrigido vamos fechar as válvulas de gás e depois vemos o que fazem”
(Piqueteiro, La Mañana del Sur, 22/06/1996). Levando em consideração que
estamos falando da Patagônia nos meses de inverno rigorosíssimo, em que toda a
população necessita do acesso ao gás para manter aquecida suas residências, o
trecho grifado soa como bastante ameaçador e violento, podendo reforçar a
corrente de opinião desejada pelo capital comunicacional, isto é, a de que os piqueteiros são violentos. Porém,
vale ressaltar que a violência não é uma essência dos indivíduos que
contestavam bloqueando as estradas, cercando as cidades e deixando-as
desabastecidas, enfrentando as forças repressivas, ameaçando interromper o
fornecimento de gás etc. No fundo, tais ações devem ser encaradas como realmente
foram: a resistência das classes exploradas, precarizadas e marginalizadas da
divisão social do trabalho; lançadas pela regularização neoliberal no
esquecimento social, na miséria, na fome, na desnutrição, na imensa mortalidade
infantil etc; tratou-se de uma reação, infinitamente mais fraca, à brutal
violência burguesa e, fundamentalmente, orquestrada pela burocracia. Quer
dizer, contextualizando, percebe-se que se tratou de uma contraviolência à violência burguesa.