Neoliberalismo
e Movimento Piqueteiro na Argentina – A Experiência Neuquina (Argentina, 1996)
A
emergência de um tardio, porém robusto, movimento de contestação à
regularização neoliberal nas cidades petroleiras de Cutral-Có e Plaza Huincul,
província de Neuquén - Argentina (junho de 1996, reemergido em abril de 1997),
representou um significativo avanço na capacidade organizativa dos grupos e
classes sociais que se movimentaram para impedir e/ou reverter as formas sociais[1]
neoliberais aprovadas para a região. Em seu trabalho, realizado no interior do
PIMSA[2],
Las formas de organización emergentes del
ciclo de la rebelión popular de los ’90 en la Argentina (2007), Paula
Klachko apresenta algumas das principais características desse movimento de contestação
social. Segundo a autora, as cidades de Cutral-Có, Plaza Huincul, foram tomadas por esse movimento que,
posteriormente, denominou-se de Movimento
Piqueteiro. Segundo a autora, esse expressou uma
organização mais complexa e sistemática
para manter os piquetes de bloqueio de estradas que sustentam a ocupação das
cidades por vários dias e para resistir à Gendarmeria, mas prevalece a prática
espontânea, já que se dilui quando conclui os enfrentamentos; Realização de
assembleias populares diárias; Participação massiva e socialmente heterogênea
nas assembleias; Emerge a personificação de “piqueteros” primeiro e “fogoneros”
depois, os que representam maior disposição à luta; Organização assembleiaria,
horizontal, prática democrática que acarreta a desinstitucionalização;
Delegados revogáveis das assembleias por piquetes para a coordenação entre eles
e para a negociação com os governos (os delegados devem consultar as
assembleias sob o que foi negociado antes de assinar os acordos) [...]
(KLACHKO, 2007, p. 159-160).
Como
é possível perceber, o movimento piqueteiro emergido na província de Neuquén
recupera uma série de ações e ferramentas radicais, próprias do movimento
operário, tais como piquetes, assembleias diárias, ações diretas, auto-organização
/organização horizontal, decisões coletivas, revogabilidade da representação
etc., que tendem a caminhar de forma autônoma e com certo grau de
desinstitucionalização das lutas. É necessário entendermos como esse movimento
se desenvolveu, qual a particularidade da região na qual ele emerge, que razões
explicam a emergência de sua radicalidade, que dinâmica adquiriu seus
enfrentamentos etc. Para isso é imprescindível recuperarmos um pouco da história
da região na qual ele insurge.
A
origem da Província de Neuquén está íntima e exclusivamente ligada ao
intervencionismo estatal na região que, logo após o extermínio da população
indígena local, através da “Campanha do Deserto”, se encarregou de criar as
melhores condições para o início da ocupação da Patagônia, visto que os
latifundiários agropecuaristas não manifestavam interesse em fazê-lo, nem
tampouco contribuir com o projeto de ocupação territorial. Portanto, os
Territórios Nacionais nasceram mediante o saque violento dos territórios
indígenas, constituindo-se em entidades jurídicas distintas das províncias, nas
quais sua administração territorial era exercida pelo governo central, com o
propósito de promover a organização econômica-social e demográfica adequada
para seu processo de provincialização (BUCCIARELLI, 1999).
Desde a incorporação (massacre genocida)
desses territórios ao estado nacional, entre o final do século XIX até a
primeira metade do século XX, a economia local se baseava na pecuária e na
agricultura em menor medida. Somente a partir da década de 1960 e,
principalmente a partir de 1980, é que a província passará a se destacar como
polo produtor de energia: petróleo, gás e eletricidade. A estrutura
econômico-administrativa aí instalada fundamentou-se no crescimento
extraordinário dos serviços em geral e do funcionalismo estatal. O setor de
comércio e de serviços privados era responsável por aproximadamente um terço da
ocupação da força de trabalho, em conjunto com os funcionários públicos,
somavam dois terços os trabalhadores que estão ocupados no setor terciário da
economia (comércio, administração pública, transportes, finanças, saúde,
educação etc.).
Conforme
aponta Bonifacio (2011), a província de Neuquén foi marcada por duas
modalidades de regularização estatal, em períodos distintos: a) a regularização
integracionista[3]
(estado integracionista – 1960/1980) e b) a regularização neoliberal (estado
neoliberal – 1990/dias atuais). Segundo esse autor,
essas formas de intervenção estatal na
economia foram acompanhadas por diferentes lógicas de intervenção social. Na
primeira etapa, a intervenção estatal se aproxima ao denominado Estado de
Bem-Estar. Em uma sociedade dinâmica que cresce com as contribuições das
migrações nacionais e estrangeiras, o Estado favorece a integração social
mediante constante oferta de trabalho e a cobertura da infraestrutura social:
saúde, educação, habitação e ação social. Na segunda etapa a intervenção
estatal adquire um forte conteúdo neoliberal cujo resultado foi a formação de
uma sociedade polarizada, caracterizada por um processo de desintegração
crescente, com altos níveis de conflitividade social. Durante as duas etapas o
Estado foi conformando sólidas redes clientelares para garantir o controle
político dos setores subalternos, através de diversas estratégias de
intervenção territorial (BONIFACIO, 2011, p. 66).
Durante
o período de regularização interventora, o estado nacional encarou sua
determinação fundamental de regularizar as relações de produção (e reprodução)
capitalistas que, em um contexto de capitalismo subordinado, no qual inexiste
uma burguesia com autonomia suficiente para incitar o processo de acumulação
por conta própria, o estado se apresenta como o único com capacidade de
impulsionar o desenvolvimento capitalista com suas singularidades regionais: “o
fato decisivo é a inexistência de uma burguesia local importante, com bases de
acumulação independentes do Estado [...] é sintomático que o grosso dos mais
importantes empresários provinciais seja seus provedores ou empreiteiros. O
setor produtivo da economia é raquítico” (PETRUCCELLI, 2005, p. 17). As duas
exceções são compostas pelo setor energético, uma atividade mais extrativa do
que produtiva, e a indústria de construção que se desenvolveu à sombra das
obras estatais.
Essas
peculiaridades em muito se deve à correlação de forças políticas existentes na
província desde os anos 60, marcadas pelo monopólio político do Movimento Popular Neuquino (MPN), que
reinou absoluto ao longo de quatro décadas, estando intimamente ligado à
estrutura econômica provincial e exercendo um papel preponderante no seu
interior. Como resultado das intervenções estatais no setor produtivo local,
consolidou-se uma economia fundamentalmente caracterizada pela especialidade
nas atividades de extração de petróleo, gás e eletricidade. Essa economia
especializada possibilitou a emergência de uma burguesia comercial local que se
fortaleceu amparada pela intervenção estatal. Nesse sentido, exercer o controle
sobre as decisões do estado tornou-se decisiva para essa classe social e, por
essa razão, a burguesia neuquina está composta por indivíduos diretamente
vinculados com a burocracia estatal e com a burocracia partidária do MPN. Na
verdade, “em Neuquén os políticos são empresários e os empresários são políticos”
(PETRUCCELLI, 2005, p. 18).
As
classes sociais que se enriqueceram e prosperaram sob o amparo do estado
nacional foram os responsáveis por fundar, no ano de 1962, o MPN. A partir de
1963, com a eleição de Felipe Sapag a governador da Província, dá-se início ao
processo de constituição do estado, formação de uma burocracia estatal composta
por técnicos-administrativos especializados e influenciados pelas ideias
dominantes da época, em torno do modelo de industrialização predominante na
América Latina. Em tal modelo, era o estado nacional quem exclusivamente
financiava todas as atividades de grande envergadura, tais como a extração de
hidrocarbonetos, construção de grandes obras de infraestrutura, que
possibilitariam o crescimento econômico provincial. A nascente burocracia
estatal, de origem burguesa, soube muito bem utilizar as redes mercantis,
clientelistas e de parentesco para garantir o apoio político de diversas
classes sociais e, também, a subordinação das classes subalternas. Nesse
sentido,
a riqueza estatal permitia gerar uma
ampla rede de obras, serviços e empregos públicos, que beneficiava tanto os
assalariados e os pequenos produtores, como aos empresários que acessava as
licitações ou eram beneficiados com prêmios diretos de legalidade duvidosa,
porém absolutamente habituais. As sucessivas ondas de trabalhadores imigrantes
que chegavam a Neuquén tinham poucos motivos para estarem em desacordo com a
província que lhes “brindava” oportunidades laborais, salariais, educativas,
habitacionais e de saúde com as quais, em muitos casos, não poderiam nem sequer
sonhar em seus lugares de origem. Esses tangíveis benefícios eram a base
material de uma forte identificação simbólica e emotiva com a Neuquén e seu
partido, que redundava e ainda redunda na supremacia indisputada do MPM. Ao
longo desses anos o partido do governo – quase um partido-Estado, como gosta de
dizer meu amigo Silvio Winderbaum – tem tecido uma frondosa rede de
clientelismo político, que se estende não apenas entre as classes assalariadas,
senão que também inclui a muitos produtores, formalmente autônomos, mas que de
fato dependem do Estado (PETRUCCELLI, 2005, p. 18-19).
Demonstração
clara do monopólio político absoluto do MPN em Neuquén é fornecida pelo fato de
que as grandes disputas partidárias na província equivalem a disputas
intrapartidárias. Tal monopólio, em parte, se deve a existência de uma oposição
política fragmentada e dividida entre os dois maiores partidos políticos
nacionais, a União Cívica Nacional
(UCR) e o Partido Justicialista (PJ).
Apesar dos discursos federalistas e suas constantes críticas ao estado
nacional, o MPN sempre foi um partido “oficialista”. Governe quem governe o
estado nacional (peronistas, radicais, militares), o MPN sempre oferta apoio
político, direta ou indiretamente, aos governos nacionais em troca de
benefícios. É importante perceber que o MPN soube capitalizar muito bem as
benesses políticas, oriundas principalmente da adesão das classes exploradas,
ao seu discurso federalista, pois
este componente ideológico possibilitou
exitosamente a remissão do conflito de classe à relação entre a província e o
poder centralizado de Buenos Aires. Este tipo de federalismo constituiu-se no
princípio ideológico articulador, mediante o qual as classes dominantes na
província lograram capturar com êxito as orientações dos setores populares,
inscrevendo assim seus interesses em termos de “interesse geral provincial”.
Dessa forma, se reduziu o potencial antagônico das classes subalternas aos
setores dominantes (PALERMO apud BONIFACIO, 2011, p. 71).
Ademais,
o estado neuquino usufruía de uma importante autonomia financeira, proveniente,
fundamentalmente, dos royalties do petróleo, mas também da exploração de gás e
eletricidade e da arrecadação provincial, que juntas equivaliam a mais da
metade das receitas da província. Através do Regime de Coparticipação Federal dos Impostos, das receitas
provinciais e dos royalties, a província conseguia cobrir seus gastos
operacionais, ficando livre de quaisquer riscos que o corte nos envios
discricionários federais pudessem representar, fato que facilmente seria
aproveitado pela oposição ligada ao governo central. Tal autonomia deixava os
governos provinciais em uma situação favorável para negociar com o estado
nacional, visto que esse “não podia afogá-los, e o apoio às políticas do
oficialismo em escala nacional sempre era em troca de contrapartidas materiais”
(PETRUCCELLI, 2005, p. 20).
Outra
determinação importante que auxilia nossa compreensão sobre a emergência de um
movimento de contestação social (movimento piqueteiro) na província, remete a
existência prévia de uma cultura contestadora na região. Desde a década de 1960
passava a existir na província, essencialmente na sua capital Neuquén, uma
cultura contestadora que, por mais que fosse marginal, era bastante ativa e
numerosa. Tal cultura contestadora não era homogênea, nem tão pouco se
inspirava em uma única fonte político-teórica (ou ideológica no sentido
marxista), no entanto, compartilhavam de muitos valores e práticas sociais:
desejo por igualdade, um genérico anti-imperialismo, uma visão positiva da
contestação e militância social, uma concepção crítica em relação à sociedade,
uma organização e mobilização coletiva cotidiana, a preocupação com os direitos
humanos (herança da última ditadura burguesa), uma postura opositora ao MPN e
certo nível de consciência de classe (PETRUCCELLI, 2005). Bonifacio sintetiza a
existência dessa cultura contestadora (denominada por ele de contracultura do
protesto) da seguinte maneira:
uma história que combina processos
políticos e lutas coletivas contribuíram na formação desta contracultura do
protesto: a) as greves dos operários da construção nas grandes hidrelétricas,
b) a migração de chilenos (sob posse de uma cultura contestadora) logo após o
golpe militar de 1973, c) o papel da igreja neuquina durante a última ditadura
militar (catolicismo progressista militante), d) o papel da Universidade
Nacional de Comahue (movimento estudantil combativo) e e) a própria cultura que
se recria nas constantes lutas sociais. Esses processos remontam a uma história
de mais de três décadas, foram interiorizados por sujeitos que tem uma
disposição a perceber, valorizar, sentir, pensar e atuar no marco de uma
cultura militante e combativa [...] (2011, p. 88 – parênteses nossos).
A
chegada da regularização neoliberal promoveria alterações drásticas na paisagem
social neuquina. De uma província notada, em meados dos anos 70, pelo
desenvolvimento econômico, se tornaria, nos anos 90, em uma ilha de desemprego
e precarização laboral, mas também de resistência ao neoliberalismo, marcada
pela emergência de um arrojado movimento de contestação social, responsável por
árduos enfrentamentos contra o processo de regularização da acumulação
integral. Nascia aqui o Movimento Piqueteiro.
Iniciada
na segunda metade da década de 1980, a fase de regularização neoliberal promoveu
uma acentuada redução das receitas públicas, através da diminuição do pagamento
dos royalties dos setores energéticos, levando o estado a adotar uma série de regularizações
neoliberais para readequar as contas públicas. No ano de 1991, com a
consolidação do processo de privatização das empresas estatais, a forma de
intervenção do estado e sua relação com as empresas, assim como as relações
sociais em conjunto, alteraram significativamente.
É importante destacar que nessa província
desenvolveu-se aquilo que Carrera, Podestá e Cotarelo (1999) denominam de capitalismo de estado en enclaves, isto
é, caracterizado por uma atividade da grande indústria, com características
singulares, típicas da atividade extrativista energética, tais como a pequena
quantidade de parques industriais, com elevada ocupação do proletariado na
indústria petroleira, construção, eletricidade, gás e água, nas quais o estado
é o proprietário dos meios de produção. Porém, com a regularização neoliberal,
tais empresas se privatizam e tornam-se poucos grandes complexos oligopólicos
extrativistas internacionais.
Conforme
aponta diversos estudiosos do tema, a empresa Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), maior empresa
produtiva-extrativista da Argentina, modelo de empresa estatal petrolífera para
toda a região, constituía um verdadeiro
estado dentro do estado, no qual o conjunto da vida social estruturava-se,
direta ou indiretamente, em torno de suas atividades (SVAMPA E PEREYRA, 2009;
ARTESE, 2009). Seguindo Svampa e Pereyra (2009), o modelo de desenvolvimento
social instituído pela empresa era expressão máxima do estado social
interventor argentino, no que se refere à garantia dos direitos sociais em
geral. Os trabalhadores da YPF eram os trabalhadores mais bem remunerados pelo
estado e pertencer ou não pertencer a YPF marcava fronteiras sociais nítidas no
interior dessa sociedade. Assim como as relações sociais internas eram também
caracterizadas por uma alta hierarquia entre os diferentes setores que a
compunham.
Ao
longo de todo o século XX a exploração petrolífera estatal conviveu com a
exploração privada, em um quadro de grande instabilidade nos quadros
regulatórios dessa indústria extrativa. Em diversos governos houve reformas que
regularizavam a participação de capitais privados nas atividades de exploração
e comercialização do petróleo, de acordo com o sistema de concessões mineiras. Tais concessões eram suspensas e retornavam
segundo as políticas estatais nacionais, no entanto,
logo após o golpe de estado militar, uma
nova mudança na orientação petrolífera indicaria uma política mais firme em
direção a abertura para a exploração privada. Não é casual, aliás, que o
endividamento externo e o agravamento da situação financeira da empresa se
deram durante o período da ditadura militar. Assim, até o final do Processo de
Reorganização Nacional e início do regime democrático, as constantes
desvalorizações do peso levaram as empresas privadas a desenvolverem uma forte
política de pressão para a renegociação dos contratos (Gadano, 1998). A isso
tem que somar a política de “subsídio” que YPF se permitia desenvolver para com
outras do Estado, que não pagavam seus consumos. Assim, a setenta anos de sua
criação, a empresa que havia sido o “modelo de indústria petrolífera estatal”
na América Latina, se encontrava distante da performance de seus pares mexicano e venezuelano, pois,
paradoxalmente, em lugar de representar uma fonte de divisas para o Estado, havia
se constituído em uma empresa onerosa, na qual havia que assistir
financeiramente. Nesse contexto, exacerbado pelo discurso neoliberal do governo
Menem, se prepara e se dispõe primeiro à privatização, logo após a
reestruturação e, por último, a reorganização laboral da YPF (SVAMPA e PEREYRA,
2009, p. 106-107).
Desde
1989 o processo de privatização da YPF vinha sendo instrumentado por decretos
(1.055, 1.212 e 1.589) que determinavam a transferência de vastas áreas de
extração para a iniciativa privada. Em 1992, com a nova Lei de Hidrocarbonetos
(21.145), transferia-se para as províncias a posse sobre os hidrocarbonetos e,
ao mesmo tempo, declarava a YPF sujeita à privatização integral. No primeiro
momento, buscou-se vender suas ações de forma fragmentada, com o intuito de não
deixar nas mãos de um único operador internacional, no entanto a partir de 1999
a YPF convertia-se em propriedade da empresa espanhola Repsol.
Sua privatização promoveu uma verdadeira
devastação social para a província de Neuquén e outras províncias petroleiras.
A consequência imediata do processo de reestruturação produtiva e, logo após a
privatização da YPF, foi a intensa lumpemproletarização social[4]
ocorrida na região de Cutral-Có e Plaza Huincul. Para termos uma ideia da
intensidade desse processo, basta resgatarmos alguns números. Em 1990 a empresa
possuía 50 mil funcionários, depois da privatização, foram demitidos 44.400
trabalhadores. O número de demissões entre 1990 e 1997 foram os seguintes:
Província de Salta – 3.400; Província de Neuquén – 5.000; Região da Bacia
Austral – 1.660; em Comodoro Rivadavia – 4.402; Santa Fé – 1.777. Juntamente
com a lumpemproletarização, a privatização trouxe as formas de valorização do
regime de acumulação integral e sua intensificação do trabalho, a precarização
dos contratos e consequentemente do trabalho, a redução do pagamento de
horas-extras etc. daqueles que permaneceram empregados.
A
política de reestruturação (demissão) da YPF foi marcada pela existência de
duas modalidades: retiros voluntários e licenciamentos. Parte expressiva das
indenizações recebidas pelos demitidos foi utilizada para aquisição de pequenos
empreendimentos comerciais individuais (lojas e remisería – tipo de serviço
parecido com o taxi) ou para a aquisição de bens (automóvel, residência etc.).
Passado alguns anos, boa parte de tais empreendimentos faliram, seus bens foram
vendidos e a lumpemproletarização se expandiu. Um exemplo nítido de como esse
processo ocorreu, pode ser fornecido pela experiência dos ex-trabalhadores da
YPF.
Com
o intuito de levar à cabo a enorme quantidade de demissões na YPF e, ao mesmo
tempo, mascarar a lumpemproletarização e controlar o nível de conflitividade
social que nasceria dela, o estado procurou, juntamente com a empresa
privatizada e com a conivência do principal sindicato do setor petrolífero
(SUPE), impulsionar a criação de pequenas empresas prestadoras de serviços,
formadas pelos seus ex-trabalhadores, e de acordo com a área em que trabalhava,
através do repasse de maquinarias e outros bens como parte das indenizações por
demissão. No primeiro momento, essas pequenas e médias empresas alavancaram com
a assinatura de contratos de serviços de 18 a 24 meses. Passado esse momento,
tais empresas começaram a ter enormes dificuldades para renovar os contratos
visto que a Repsol
continuou
multiplicando suas exigências. Reclamando bonificações, subdividindo os
contratos por zonas; em suma, fixando tarifas a níveis de custo tais que para
muitos se tornou impossível manter os empreendimentos. Em segundo lugar tem que
agregar que a maior parte dos equipamentos vendidos pela YPF era obsoleta. Em
pouco tempo, as dificuldades de renovação tecnológica coincidiram com o aumento
das exigências tecnológicas da empresa. Por último, as contratadas deviam competir
com as outras empresas de serviços de alta performance
e acostumadas às regras do mercado [...] Por conta da ausência de uma
verdadeira política de recursos humanos, muitas das empresas naufragaram muito
cedo, atravessadas por dificuldades ligadas ao reconhecimento da autoridade, a
tomada de decisões, a escassa capacidade negociadora, a impossibilidade de
obter contratos por incumprimento das obrigações impositivas, a carência de
prédio próprio e impossibilidade de acesso a créditos por falta de garantias de
penhor e hipotecárias; por último, a problemas associados ao elevado nível de
endividamento (SVAMPA e PEREYRA, 2009, p. 109).
Somadas
à intensidade da lumpemproletarização, em consequência da privatização da YPF,
outras determinações contribuíram para a emergência de uma forte contestação
social na região. Referimos-nos fundamentalmente às lutas internas no MPN e a
consequente decisão da burocracia provincial de cancelar um contrato realizado
pelo governo anterior, com a empresa canadense Agrium que se instalaria na região. Tal instalação era encarada
pela população local como prováveis condições de desenvolvimento e oferta de
trabalho. Outra determinação foi fornecida pela greve docente que contestava a
lei neoliberal de educação e das consequências da privatização, que “em busca
de solidariedades sociais, encontraram nos habitantes de Cutral-Có e Plaza
Huincul, aliados inesperados” (BONIFACIO, 2011, p. 163). Vejamos essas
determinações.
Em
dezembro de 1995, eleito novamente governador de Neuquén, Sapag assume o poder
com a missão de programar as medidas de regularização neoliberal na província.
Envolto na dinâmica das lutas intestinais da burocracia partidária, Sobisch,
arqui-inimigo histórico de Sapag, foi o ex-governador que iniciara as
negociações com a empresa canadense, decide cancelar as negociações para sua
instalação na região[5]:
na noite de 19 de junho de 1996, Sapag
anunciou a ruptura do contrato com a empresa canadense “Agrium”, para construir
uma planta de fertilizantes. O acordo havia sido firmado pelo anterior
governador Jorge Sobisch (linha branca do MPN). Tratava-se de um contrato
leonino: o estado cedia os terrenos e a provisão de água e energia elétrica,
renunciava aos royalties das reservas de gás “El mangrullo” e, como se isso
fosse pouco, comprometia-se a investir 100 milhões de peso/dólares para a
instalação. Agrium teria um prazo de 24 meses para a construção. Os moradores
das localidades de Cutral-Có e Plaza Huincul não conheciam em detalhe os termos
do acordo; mas a construção da planta supunha emprego temporário por um par de
anos para umas 1.500 pessoas, mas uns duzentos postos permanentes. O
desaparecimento desses postos laborais esperados por longa data incendiou o
pavio da rebelião, em uma das localidades em que o desemprego havia se
convertido em uma verdadeira praga (PETRUCCELLI, 2005, p. 43).
O
oportunismo político de Sobisch e de seus partidários se manifestou na manhã do
dia 20 de junho de 1996 quando a Radio
Victoria, porta-voz histórica de Sobisch na região, transmitiu a notícia do
cancelamento do acordo com a empresa canadense Agrium e disponibilizou seus
microfones para que os ouvintes emitissem suas opiniões a respeito de tal
cancelamento. Sem dúvida alguma, essa rádio e alguns burocratas “blancos”
contribuíram para a convocatória de uma mobilização que, logo em seguida
caminharia no sentido da composição de um robusto movimento de contestação
social radical que lhes escaparia o controle. O enfático anúncio sobre o não
cumprimento do acordo (traição de Sapag),
emitido pelo proprietário da rádio, Mario Fernández, foi decisivo para o início
das convocações mobilizatórias. Ás 09 da manhã ele exclamou: “acaba de consumar
a traição de Felipe Sapag, não teremos a planta de fertilizantes. É a traição
de Felipe a Cutral-Có”.
Tratou-se,
no primeiro momento, de um oportunismo faccioso interno ao MPN, articulado
pelos partidários “blancos” de Sobisch contra o governo de Sapag. Diversas
ações confirmam essa articulação política, dentre elas podemos citar: a) a
convocatória lançada pela Radio Victoria para uma mobilização às 16 horas no
acesso a Plaza Huincul; b) Por volta das 11 horas Leticia García, legisladora
da fração “blancos”, informava a um jornalista do diário Río Negro que em
Cutral-Có haviam bloqueado uma estrada, fato que se concretizaria somente às 16
horas. No dia seguinte, vereadores e deputados “blancos”, junto com alguns de
seus aliados peronistas, estiveram presentes no bloqueio da estrada; c) No dia
20 de junho, partidários “blancos” convocam para um protesto no setor da Torre Uno, meia hora depois um militante
(Opazo) do MPN atravessar seu automóvel sobre a estrada 22 – “Opazo sabia o que
fazia mas ignorava o peso dessa primeira pedra” (Río Negro, 25/06/2006); Adolfo
Grittini, ex-prefeito de Cutral-Có, partidário “blanco”, auxiliou o bloqueio da
estrada fornecendo produtos e gasolina para aqueles que mantiveram a estrada e
as cidades bloqueadas por dois dias[6]
(BONIFACIO, 2011).
Por
volta das 16 horas começaram a concentrar os primeiros manifestantes na Torre
Uno. Os primeiros a se concentrarem ali foram estudantes secundaristas e
professores. Com apoio concedido por partidários “blancos” taxis e remises
(serviço parecido com o de taxi) começavam a levar pessoas para o bloqueio na
estrada 22 e aos poucos a concentração de pessoas tornou-se massiva e pneus
incendiados começaram a ser utilizados para o bloqueio da estrada nacional 22 e
a provincial 17. Diversos comerciantes em apoio ao bloqueio fecharam seus
estabelecimentos, às 22 horas os postos de gasolina suspendem o serviço,
passando a abastecer somente ambulâncias, taxis utilizados para levar pessoas
ao bloqueio, viaturas policiais e bombeiros. Em seguida passaram a bloquear a
entrada dos principais postos de fornecimento de combustível, assim como suas
estradas de acesso alternativas. Às 08 da manhã, do dia 21 de junho, o
município de Cutral-Có concede folga a todos os seus funcionários, logo depois
a Cooperativa de Energia Elétrica, assim como o município de Plaza Huincul, faz
o mesmo. Ao meio dia todas as escolas suspendiam suas atividades, os comércios
fechavam suas portas, os serviços de transporte coletivo paralisavam e o
aeroporto era bloqueado por piquetes, com todos os voos cancelados. Os
bloqueios começavam a preocupar o abastecimento de combustíveis para a região.
Em cidades vizinham começavam a formar filas para o abastecimento de automóveis
e a YPF começava a rearticular seu abastecimento (PETRUCCELLI, 2005; BONIFACIO,
2011).
Os
contestadores sociais que passaram a improvisar com pedras, pneus e todo tipo
de escombro que pudesse auxiliar no bloqueio das estradas, assim como no fogo
para amenizar o implacável frio patagônico, construíam, naquele momento, os
primeiros traços daquilo que entraria para a história com o nome de piquete e
seus mantenedores ficariam conhecidos como piqueteiros. Vejam, portanto, que os
piqueteiros de Cutral-Có e Plaza Huincul não se restringiam ao
lumpemproletariado (desempregados), pois os comerciantes auxiliaram fechando
seus negócios e fornecendo alimentos e outros produtos que ajudavam na
manutenção dos piquetes. Milhares de pessoas foram se concentrando nos
piquetes, no entanto, aqueles que se prontificaram a garantir a segurança e
proteção aos mais de vinte piquetes instalados na estrada, sustentar a queima
de pneus e enfrentar todos aqueles que tentassem ultrapassar o boqueio, eram
compostos basicamente pelos desempregados (lumpemproletários).
Durante a jornada de sábado, 22 de junho de 1996, os
piquetes se multiplicaram e atingiram a quantidade de 21, cercando toda a
cidade. Durante a tarde foi realizada uma assembleia no piquete próximo ao
setor da Torre Uno, com aproximadamente 05 mil contestadores sociais que
decidiram com vigor e força sua ordem: Que venha Sapag! Essa assembleia foi
realizada logo após o descaso da burocracia governamental que insistia em
afirmar, com vistas a descaracterizar a contestação social, que a mesma não
passava de manobra política da oposição composta pelos “blancos”. Por volta das
15 horas, a burocracia estatal provincial modera sua posição e busca iniciar um
diálogo com os contestadores sociais, com o objetivo de propor a formação de
uma comissão de representantes para se reunir com o governador na capital. Na
verdade, trata-se da estratégia da burocracia para fragmentar o movimento e
negociar com as lideranças, algo inexistente nessa mobilização. A proposta é
apresentada por uma radio local e atinge um resultado oposto ao esperado, ao
afirmarem que não sabiam se o governador poderia chegar a Cutral-Có e que isso
não mudaria etc., incendiaram os ânimos dos piqueteiros que nesse momento
levantam o lema “ninguém viaja, ninguém negocia, a menos que o governador venha
falar conosco”. Com o passar das horas tal lema se resumiria no grito: Que
venha Sapag!
Os piqueteiros afirmavam que os piquetes só se
levantariam após a resolução concreta para o problema do desemprego. Aqui se
percebe uma forte manifestação do interesse imediato do lumpemproletariado no
interior dessa mobilização. No dia 23 de junho de 1996, circulava pelos piquetes
um texto, apresentado no Jornal La Mañana
del Sur, que foi lido em diversas rádios da região e expressava as razões e
objetivos do movimento de contestação social, na qual possibilita a preocupação
com algumas questões que remetem aos interesses imediatos do
lumpemproletariado:
Hoje o povo de Cutral Có y Plaza Huincul está de
pé, lutando pela dignidade de sua gente, bloqueamos as estradas de ingresso a
essas duas cidades porque pretendemos fazer escutar nossos direitos em busca de
uma reativação econômica real e concreta. O desemprego, a fome e a
falta de respostas do governo provincial nos levaram a isso. Se hoje bloqueamos
as estradas é porque sentimos indignação, marginalidade
e esquecimento. Nossa gente que hoje ocupa as estradas é a mesma que durante
várias décadas brindou seu trabalho de sol a sol para que esta província e o
país crescera… Então considerando a “falta de respostas oficiais”, o mínimo que
podemos pretender é uma reparação histórica. (…) Já não nos servem as mentiras
de alguns segundões … Hoje queremos a Felipe Sapag sim ou sim (Jornal La mañana
del Sur, 23-06-96 - negritos nossos)
Acostumado com o
jeito caudilho de ser, Sapag tinha pouca habilidade para lidar com a
contestação social. Sua postura conservadora e reacionária já não amedrontava
os contestadores sociais, pelo contrário, servia de lenha para seus piquetes.
Nesses primeiros dias da mobilização social, concederia algumas entrevista para
os jornais locais, na qual sua postura inflexível se destacaria, assim como seu
discurso criminalizador da contestação social:
Jornalista: “A população
quer que você vá a Cutral-Có...”.
Sapag: “Lhes digo que venha eles”.
Jornalista: “Mas eles não
querem vir”, lembrou o periodista.
Sapag: “Eu lamento, mas terão que vir.
Eu poderia, mas primeiro devem conversar comigo. Não posso ir a nenhum lugar que
tenha insubordinação”.
Jornalista: “Tão pouco vai
permitir que alguém do seu gabinete vá”?
Sapag: “Não, porque eles estão
com uma atitude de força que não é legítima, ocupar a rua e impedir que a gente
se mova e trafique é um delito” (Jornal Río Negro, 22/06/1996).
“A gente que continua com essas
drásticas medidas estão cometendo um delito, e nessas condições não posso
dialogar com a investidura de governador, Não posso dialogar com gente que está
cometendo um delito. Se a gente quer que eu vá, terá que voltar para sua casa e
despejar a estrada” (Sapag, governador de Neuquén, Jornal La Mañana del Sur,
24/06/96).
Enquanto por um lado a burocracia estatal acusava a
oposição de controlar o movimento de contestação social e a burocracia
partidária opositora buscava, realmente, formas de controla-lo; por outro lado,
no interior dos piquetes se organizava a contestação social através dos debates
nas assembleias e da participação direta e igualitária nas decisões, crescia
entre os contestadores uma forte desconfiança em relação à burocracia
partidária tradicional e seus interesses em canalizar a contestação social para
seus interesses particulares e oportunistas. Os burocratas, que desde o início
do bloqueio das estradas, estiveram presentes e auxiliaram na sua manutenção,
assim como outros que tentavam se aproximar dos bloqueios, passaram a ser
duramente hostilizados nos piquetes:
o
ex-prefeito Grittini, no momento de chegada ao cenário (local dos bloqueios e
piquetes) foi agredido verbalmente, não obstante persistindo em seu discurso
conseguiu arrancar aplausos dos assembleístas. Não tiveram a mesma sorte os
prefeitos Martinasso e Pérez que não puderam chegar ao cenário e em suas
intervenções foram objetos de constantes vaias e agressões verbais. Pior ainda
foi a situação que tiveram que atravessar o senador nacional pelo Partido
Justicialista Daniel Baum, os deputados provinciais e vereadores; quando
chegaram ao local lhes foram lançados elementos contundentes que os obrigaram a
desistir da ação (Jornal La Mañana del Sur, 03/06/96).
No
jornal Página 12, um representante
piqueteiro declarava que,
na sexta-feira
pela noite o ex-prefeito Adolfo Grittini se pôs a frente do protesto [...] Nos
convocaram a todos os piqueteiros a uma assembleia na torre da YPF, mas não nos
deixaram falar, eles tiveram sempre o microfone [...], então nos retiramos
dali. Nos demos conta de que estavam usando-nos. Fomos até a rádio e convocamos
a nossa própria reunião no outro extremo da cidade, mas pedimos que os
políticos se abstenham de vir. [...] O povo já não queria nada com os
políticos. Diziam-nos que éramos seus representantes [...] Aí nos demos conta
de que o povo tinha seu poder e podíamos ganhar (Jornal Página 12, 30/06/96).
A hostilidade
dos contestadores sociais contra a burocracia estatal e partidária
(tradicional) não era gratuita, mas sim fruto do avanço, mesmo que ainda
limitado, da consciência de classe, no interior da luta de classes. Dessa
maneira, passaram a se organizar nos piquetes e pretenderam canalizar eles
mesmos suas demandas, através de representantes eleitos sob o calor do fogo e
fumaça dos piquetes. Já nos primeiros momentos da contestação social, setores
da classe subalterna[7]
e do lumpemproletariado com tendências mais radicais recuperaram ferramentas de
luta e organização tradicionalmente pertencentes ao movimento operário
revolucionário. Dentre as principais estavam os piquetes, a assembleia
coletiva, a auto-organização, a decisões horizontais e a ação direta. O uso
combinado dessas ferramentas afastaram decididamente as pretensões da
burocracia partidária de exercer o controle sobre o movimento de contestação.
Nascia, assim, um novo sujeito histórico
com consciência política
própria: os piqueteiros. Svampa e Pereyra (2009) indicam, ainda que através de uma linguagem
problemática, que a identidade piqueteira
foi percebida naquele contexto de
forma diversa. Tanto negativamente, apoiando-se em três argumentos centrais: a)
apontando a militância social como um aspecto negativo em um contexto de
precariedade laboral, no qual se introjetava uma autoculpabilização de sua
condição social; b) o segundo fundamenta-se em um dos elementos centrais do ser piqueteiro, presente principalmente
entre os mais jovens, apontando para a experiência de enfrentamentos com os
aparatos repressivos do estado, estruturada originalmente na disputa pelo
controle territorial. “A imagem dos jovens fogoneros de Cutral-Có até os
piqueteiros encapuzados dos grupos autônomos” (SVAMPA e PEREYRA, 2009, p. 171);
c) e o terceiro, marcado por aqueles que rechaçam como indigna a aceitação dos
subsídios estatais, “um certificado da condição de pobre e desempregado”. Por
último, existe uma leitura oposta que apresenta a identidade piqueteira como
sinônimo de dignidade. Ao se definirem como piqueteiros, produz-se mentalmente
um deslocamento muito significativo em relação aos que se intitulam como
desempregados, a percepção de sua condição altera de forma considerável e
radicalmente. Ao contrário do termo desempregado,
que carrega uma carga negativa e estigmatizadora que aponta para a passividade,
o termo piqueteiro se define por sua
condição ativa, ou seja, o trabalho de organização da contestação social e da militância
prática, que vai desde a sustentação (alimentação, água etc.) daqueles que
estão nos piquetes, passando pelas decisões cotidianas, até a questão da
segurança e dos enfrentamentos com as forças repressivas etc.
Dessa maneira, no primeiro momento, a
atividade piqueteira se expressou na própria realização dos bloqueios e
piquetes que deram lugar a toda uma simbologia que caracteriza a dignidade da
luta, a liberdade como o próprio ato de se organizar para lutar e resistir à
regularização neoliberal. A assembleia também se apresentou como símbolo de
outra forma organizativa, marcada pela deliberação horizontal. O controle
territorial exercido pelas classes desprivilegiadas, algo possibilitado pelos
piquetes. “A insurreição como horizonte dos bloqueios” (SVAMPA e PEREYRA,
2009).
O segundo momento da mobilização, entre os
dias 23 e 25 de junho, caracterizou-se por uma expressiva
desinstitucionalização do movimento de contestação. A partir daí começa a
aparecer com maior nitidez uma divisão no interior do bloco reformista, marcada
pela existência de um setor mais radicalizado, constituído pela maioria que
exigia a presença de Sapag em uma assembleia popular, com o objetivo de
apresentar soluções concretas aos problemas sociais da província. Esse setor,
composto majoritariamente pelo lumpemproletariado, detinha maior disposição à
luta, à ação direta e ao enfrentamento com as forças repressivas, e por isso
tornaram um dos principais alvos da estigtamização e criminalização realizada
pelo capital comunicacional, que passava a apresenta-lo como o setor mais duro da contestação social. O
outro setor detinha uma postura moderada, marcada pela crença nos caminhos e
negociações institucionais, encarnadas em um grupo que defendia a viagem do
mesmo até a capital provincial para uma negociação com o governador. Proposta
essa que esbarrava na decisão da assembleia coletiva de não permitir a saída de
ninguém da localidade (KLACHKO, 2007).
A
situação nas localidades começava a ficar tensa. O governador não dava nenhum
sinal de que iria ceder à exigência dos insubordinados
e delinquentes, como vinha
intitulando os contestadores sociais nos jornais locais, a manutenção dos
piquetes começava a se apresentar como uma tarefa árdua, os pneus estavam
acabando e por isso só os mantinham incendiados pela noite, o desabastecimento
de alimentos passava a prejudicar a todos e tornava uma pressão a mais, os
serviços de emergência hospitalar passam a receber alguns jovens intoxicados
pela fumaça dos piquetes, os serviços de saúde começam a recomendar o uso de
máscaras ou que tapem os rostos com suas roupas (imagem que passava a compor a
identidade piqueteira) e começava a circular pelas rádios locais a notícia da
intervenção da juíza e da presença de gendarmes nas regiões próximas,
preparados para desbloquearem as vias. Tal notícia, fez com que os hospitais de
Cutral-Có e Neuquén decretassem estado de emergência pela impossibilidade de
atender a possíveis feridos pela repressão. Todo esse quadro gerava uma tensão
muito grande no interior dos piquetes, porém, ainda assim, os piqueteiros
mantiveram-se firmes e decididos na manutenção dos bloqueios (KLACHKO, 2007;
BONIFÁCIO, 2009; ARTESE, 2009).
Diante
desse quadro de forte tensão, que tendia a ampliar com o ingresso de 300
gendarmes do esquadrão antimotins que pousaram às 12h5min, do dia 24 de junho
de 1996, de 03 aviões hércules, com armamento de guerra, tanque hidrantes e
preparados para uma violenta repressão; o setor mais moderado do movimento de
contestação seguiu buscando a aprovação do envio de um grupo à capital para
negociar com o governador e convocou uma reunião no edifício da Cruz Vermelha
de Plaza Huincul, com vereadores, comerciantes, profissionais técnicos,
comissão de vizinhos etc. Tal convocação, gerou um conflito entre o setor
moderado e o setor radicalizado que tentou invadir a reunião, sem obter êxito.
No entanto, incendiaram uma camionete que estava do lado de fora do edifício,
se armaram com pedaços de pau e se prepararam para impedir a saída de tal
comissão da região.
Após impedirem a saída da comissão, formada
pelo setor moderado, da região, as possibilidades de resolução do problema se
esgotaram e o setor radicalizado se preparou para resistir ao avanço da
gendarmeria, enquanto o moderado utilizou as rádios locais para desaconselhar o
enfrentamento e os pais para que retirassem, preventivamente, seus filhos dos
piquetes (Jornal Mañana del Sur, 26/06/1996).
Nesse momento, todas as pretensões de frações
da burocracia emepenista de
apropriar-se do descontentamento social e canalizá-lo para interesses próprios
“vai por água abaixo” e os desempregados (lumpemproletariado) adotam uma
postura política alternativa ao clientelismo estatal dominante, caracterizada
pela ação coletiva direta e auto-organizada. Como já podemos perceber nesse
contexto histórico, o lumpemproletariado adotou uma postura política bastante
contestadora, soube resgatar ferramentas radicais, forjadas pelo movimento
operário revolucionário, e utilizá-las ao longo do vasto território argentino
para contestar as consequências da acumulação integral. Nesse sentido, a
novidade histórica está na postura política do lumpemproletariado e não nas
ferramentas utilizadas[8] por essa classe social e
outras classes desprivilegiadas.
Ao
longo de toda a madrugada do dia 25 de junho de 1996, parcela significativa da
população aguardava ansiosa e tensa a chegada da gendarmeria. Os piqueteiros se
preparavam para o enfrentamento e reforçavam as barricadas/piquetes. Todo tipo
de automóvel em desuso, alambrados e outros materiais que pudessem dificultar a
travessia de um automóvel foram utilizados e incendiados nos piquetes. De uma
ponta a outra, entre os 21 piquetes existentes, os piqueteiros lotaram as
estradas com pedras e escombros, se dividiram em grupos e mantiveram-se
dispostos ao enfrentamento com a gendarmeria. A maior disposição vinha da
juventude lumpemproletária, residente dos bairros pobres próximos à estrada
nacional 22, e que, no geral, já possuíam um histórico cotidiano de
enfrentamento com a repressão policial preventiva nesses bairros.
Um aspecto fundamental a ser destacado, em um contexto em que a contestação
social atinge uma radicalidade substancial e desafia os poderes institucionais,
seus canais tradicionais de política etc., é o papel que cumpre o capital
comunicacional na preparação de um terreno favorável à repressão estatal. Não
existe repressão efetiva sem um capital comunicacional efetivo. Conforme
poderemos perceber, desde o primeiro momento da organização da contestação
social, iniciou-se também uma batalha discursiva-ideologêmica, orquestrada pelo
bloco dominante e veiculada pela burguesia detentora do capital comunicacional,
com o objetivo de deslegitimar e criminalizar a contestação social, vinculando
os contestadores sociais ao delitivo, à violência (atitude de força), à
insubordinação política etc. (ARTESE, 2009). Os discursos a seguir foram
veiculados pelo capital comunicacional (local e nacional) nos últimos dias que
antecederam o início da repressão:
“Não posso ir a um lugar onde existe insubordinação. Eles estão em uma atitude de força que não é legítima. Ocupar o caminho e
impedir que a gente se mova e trafique é um delito” (Felipe Sapag, governador de Neuquén. Jornal Río Negro,
22/06/96).
“(A investidura do governador) corre perigo de ser
maltratada ou contrariada por um capricho de quem está cometendo um delito
[...] praticamente todo o interior da província tem ficado ilhado. Os que protestam não representam a ninguém ...
talvez no geral a todo o povo, mas o governo está representado pelos que foram
eleitos. O povo não governa nem delibera
senão através de seus representantes.
Os manifestantes que participam da pueblada estão interrompendo o trânsito, o
trabalho, a produção. No fundo eles possuem o direito legítimo de manifestarem,
mas sem retirar dos demais a liberdade de trabalho” (Felipe Sapag, governador
de Neuquén. Jornal Río Negro, 24/06/96).
“Não é com violência
que se pode resolver o problema. A crise
está culminando; a gente que está na estrada 22 deve desalojá-la imediatamente.
Que voltem aos seus lares porque a lei deve
ser cumprida” (Felipe Sapag, governador de Neuquén. Jornal Río Negro,
25/06/96).
“Não se pode entorpecer
uma via de comunicação. Se não acatam a ordem, se desocupará a estrada mediante o uso da força pública”
(Margarita Gudiño Argüelles, juíza federal, Jornal Página 12, 25/06/96).
“Vamos atravessar os piquetes, não pode ser que não
nos deixem sair de nosso povoado. Que venham os gendarmes e entrem descendo o
cacete, já me fuderam quatro dias, não aguento mais. O povo não pode ser manejado
por duas ou três pessoas, vamos
passar” (César Pérez, prefeito de Plaza Huincul, Jornal La Mañana del Sur,
25/06/96).
No
início da manhã do dia 25 de junho/1996, a juíza federal Margarita Gudiño,
acompanhada de 400 gendarmes completamente preparados para o enfrentamento
(armamentos pesados, bala de borracha, canhão de água, gás lacrimogênio, cães
adestrados etc.) avançam sobre os piquetes. Inutilmente a juíza tenta convencer
os contestadores sociais a desocuparem a estrada e esses respondem com insultos
e “Que venha Sapag!”. Um grupo de jovens lumpemproletários, responsáveis pelo
primeiro piquete, lançam pedras sobre os gendarmes que passam a lançar água
gelada e gás lacrimogênio contra os mesmos. No entanto, o ataque gendarme é
inutilizado pelos ventos patagônicos que sopram a água e o gás lacrimogêneo na
direção das tropas. A juventude lumpemproletária foi quem mais demonstrou
disposição e força para enfrentar a repressão. Foram eles quem lançaram uma
chuva de pedras e tijolos, enfrentaram e mataram vários cães das forças
repressivas que os atacavam na estrada. Nesse primeiro enfrentamento saíram 27
contestadores feridos, um detido e 10 gendarmes feridos (BONIFACIO, 2011;
ARTESE, 2009).
Após atravessar o primeiro piquete, as forças repressivas se depararam
com uma multidão de contestadores (aproximadamente 20 mil pessoas) agitados e
dispostos[9]
ao enfrentamento, que impressionaram tanto o comandante do operativo repressivo
quanto a juíza, pois já não se tratava mais de simples jovens
lumpemproletários, mas sim de uma imensa quantidade de indivíduos pertencentes
a diversos grupos (estudantes) e classes sociais (proletários,
lumpemproletários, subalternos etc.). A quantidade e diversidade das classes
sociais envolvidas na contestação inibiram uma maior repressão. O que revela,
inclusive no discurso do comandante do operativo[10] e da juíza, o caráter
axiológico da explicação da burocracia para impedir o avanço da repressão,
assim como o caráter seletivo da mesma:
“Não é sacanagem, não podemos seguir porque é todo o
povo, não são moleques ... “Existe gente bem vestida” (Comandante do
operativo, Jornal Río Negro, 26/06/96).
“Depois de um trecho olhei e vi que ao redor de mim já
não havia encapuzados, senão gente de cara descoberta que começava a
correr e que não atirava pedras. Então disse ao comandante: ‘Me diga você o que
está acontecendo? E ele me disse’: ‘Deixamos para trás o grupo de choque e essa gente que está aqui é gente do povo” (Juíza federal e comandante do operativo, Jornal La
Mañana del Sur, 28/06/96).
Nesses
discursos é possível perceber a existência de alguns signos que selecionam, com
base em estereótipos, aqueles que são merecedores da repressão (jovens
lumpemproletários mal vestidos e encapuzados, grupo de choque) e aqueles que
não são (gente bem vestida, o povo).
Não
acostumada com a auto-organização social, além da mentalidade fetichista
institucional, naquele momento a burocracia (representada pela juíza e pelo
comandante dos gendarmes) não entendeu o que exatamente estava ocorrendo ali e
por isso não soube como lidar com a situação. Ao procurar pelos líderes da
contestação e não encontra-los, pois de fato não existiam - não se tratava,
como muitos defendiam, de um movimento monopolizado por frações da burocracia
do MPN[11] -, a juíza, tremendo de
medo[12], como havia confessado,
se declarou incompetente para resolver a situação, alegando se tratar de um
crime político, isto é, sedição; buscando desqualificar e criminalizar o
movimento de contestação. Nos próximos dias, quase todos os jornais veicularam
essa notícia, buscando insistentemente, como é costume do capital
comunicacional, disseminar essa corrente de opinião que encara a contestação
social como violenta, ilegal e, consequentemente, ilegítima. Percebam que tais
discursos são majoritariamente expressão da burguesia, através do bloco dominante
(burguesia comunicacional, burocracia privada, burocracia governamental,
burocracia estatal, intelectualidade etc.) que está sob o domínio da hegemonia
burguesa, dos seus valores, interesses e perspectivas:
“A atitude de vocês é uma clara demonstração de levantamento contra um governo provincial. É um delito maior que o de sedição e por tal
motivo me declaro incompetente e me retiro do lugar junto com as forças de
segurança que me acompanham” (Juíza federal, Jornal Río Negro, 26/06/96).
“Eu vim para levantar um bloqueio de estradas. Mas
isto é mais que isso. Isto é uma rebelião
popular. Se tem que qualificar penalmente
isso é sedição, e me supera” (Juíza
federal, Jornal La Mañana del Sur, 26/06/96).
“Isso é
um virtual levantamento do povo
contra o governo da província. É mais
que sedição” (Juíza federal, Jornal Clarín, 26/06/96).
“Não possuem representantes, estão atuando através
daqueles que eles auto elegeram, por eles mesmos. Me lembrei da faculdade de
direito, de uma figura penal que
está dentro do título de sedição,
que é o motim, e que fala da
‘assembleia dos povos’, aquele que se constitui em assembleia sem reconhecer a
seus representantes e pede ou atua por ele. E ai foi quando pensei que estava
frente a uma figura penal maior
[...]” (Juíza federal, Jornal La Mañana del Sur, 28/06/96).
“O distrito centro do MPN diante dos acontecimentos
que são de domínio público, manifesta seu incondicional apoio ao senhor
governador da Província, Don Felipe Sapag, uma vez que repudia as ações de violência gestadas por grupos
devidamente individualizados que tem como único objetivo arrebatar concessões
em proveito próprio, fato inadmissível em um governo legitimado pelo voto
popular” (Juan Carlos, Ramón Reynal e Hector Fernández – burocratas do NPM,
Jornal La Mañana del Sur, 27/06/96).
“Nada justifica o avassalamento
das instituições democráticas legitimamente constituídas por decisão popular
[...] A violência não é o método
para encontrar uma solução” (Prefeitos da região, La Mañana del Sur, 26/06/96).
Reforçando
a corrente de opinião que buscava ser predominante, a contestação social e seus
métodos chegaram a ser vinculada, por alguns discursos, com a insanidade[13], mesquinhez e espírito de
destruição dos piqueteiros:
“O que está ocorrendo é uma loucura coletiva com o único
espírito de destruir Felipe
Sapag e com o interesse mesquinho de não
reconhecer uma trajetória (de Sapag) de mais de 30 anos à serviço da
província” (Alberto Fernández, deputado provincial, La Mañana del Sur,
28/06/96).
É
interessante perceber que com o desenvolvimento da contestação social,
principalmente após a retirada das forças repressivas, que recuaram sob uma
chuva de pedras e um coro potente de “Que Venha Sapag!”, o movimento de
contestação social ganhou muita expressividade. A capacidade de
auto-organização da contestação social, utilizando-se de ferramentas eficazes
para pressionar o bloco dominante, juntamente com seu caráter massivo, adquiriu
grande legitimidade perante as classes exploradas e subalternas da sociedade
neuquina[14]
e argentina. Vale lembrar que tudo isso ocorre em um contexto de grande
precarização e intensa lumpemproletarização de milhares de argentinos. Além da
legitimidade, os piqueteiros (termo que designaria os contestadores sociais,
principalmente os setores lumpemproletarizados), forneceria para todo o país
uma demonstração clara e eficaz de como sair da invisibilidade social,
contestando a regularização neoliberal. O próprio capital comunicacional
contribuiria com essa propaganda (não proposital) ao apresentar em seus
jornais, em todo o país, alguns dos principais elementos que comporiam a nova
dinâmica da luta de classes na Argentina contemporânea:
os piqueteiros conseguiram este objetivo, todos os
meios de imprensa nacionais deram cobertura, na primeira página, dos fatos que
estavam acontecendo em Cutral-Có e Plaza Huincul. O que os piqueteiros não
sabiam e os meios de imprensa não buscavam, era que no resto do país essas
imagens eram apreciadas por outros desempregados – que também começavam a se
organizar a partir de recriar as redes sociais preexistentes – como o modelo a
seguir para ganhar visibilidade social. Com sua luta, transmitida a todo o país
pelos meios de comunicação (capital comunicacional), estavam mostrando quais
eram os métodos mais eficazes para fazer ouvir os que detêm o poder político.
Nesses vertiginosos dias se estava criando os marcos para a ação de novos
protagonistas: os piqueteiros. Nos dias do Cutralcazo, os piqueteiros
atropelaram as intenções da facção “blanca” que pretendiam instrumentaliza-los,
logo impediram que os prefeitos canalizassem as negociações segundo as
condições impostas por Sapag, posteriormente fizeram render as forças repressivas
com a força da massividade. Agora só faltava negociar com o governador
(BONIFACIO, 2011, p. 155-156).
A
radicalidade e massividade da contestação social fizeram curvar o intransigente
caudilho Felipe Sapag. Com a notícia do recuo da gendarmería, da indicação de
uma sedição contra seu governo e da forte insistência dos piqueteiros na sua
presença na região, se viu coagido a abandonar a reunião do Encontro dos Governadores Patagônicos,
na Província de La Pampa. Às 14h00min viajaria diretamente para Cutral-Có, onde
chegaria 17h30min, e assim que atravessou o primeiro piquete foi muito bem
recebido com vários insultos: “recebi todo tipo de puteadas (xingamentos acompanhados de gestos) no aeroporto, lhes
sorri porque os compreendo” (Felipe Sapag, La Mañana del Sur, 26/06/96 –
parênteses nossos). Aqui o discurso de Sapag em relação à contestação e os
contestadores começa a “alterar”. Às 21h30min horas, depois de ser coagido,
novamente, agora para comparecer à Torre Uno, onde se encontra com cinco mil piqueteiros
que aos gritos exigiam fonte de trabalho e a renúncia dos prefeitos da região.
Em
seu discurso, o velhaco Sapag, político profissional que era, procura amenizar
as coisas, faz promessas, diz que iniciará as mudanças necessárias e várias
outras mentiras e demagogias, como a de elogiar a contestação social e
“discordar” da acusação da juíza federal do crime de sedição. Uma nítida
demonstração da arte da mentira, da simulação-dissimulação típica da
burocracia, que visava, essencialmente, capitanear a contestação social,
ocultar o antagonismo/tensão social, reforçar o fetichismo da preocupação com a
representatividade política, transferir as responsabilidades para o governo
federal etc. Iniciou parabenizando a população por “ter chamado a atenção do país”,
solicitando confiança para que “comecem a resolver os problemas” (Sapag, Página
12, 27/06/96). Porém, não conseguiu discursar por mais de 10 minutos, pois
recebeu vaias, insultos, empurrões dos piqueteiros e uma pedrada ao se retirar,
enquanto os piqueteiros se mantinham na estrada em assembleia (BONIFACIO,
2011).
Em diversos jornais, nesse mesmo dia, seus
discursos confirmam a simulação-dissimulação de Sapag:
“Não foi uma
sedição, senão que Cutral-Có tem se colocado de pé depois de 06 anos em que
se produziu o esvaziamento da YPF” (Sapag, La Mañana del sur, 26/06/96).
“Fiz vários pedidos ao governo nacional pela situação
dessa região, mas nunca nos escutaram. Espero que agora vejam a gente na rua,
com frio e fome e comecem a nos escutar” (Felipe Sapag, Clarín, 26/06/96).
“(Los piqueteros) é algo que surgiu do povo, da gente
comum. Não sei em virtude de
qual questão ... talvez a pobreza e
a angústia os tem unido. Tem se organizado e estão muito conscientes do que estão fazendo. Tem sido muito razoáveis comigo. Também possuem o mérito de através
dessa comoção terem produzido – não apenas na região mas em todo o país – o
reconhecimento de uma realidade que não se conhecia em profundidade e não se
entendia tampouco desde longe” (Sapag, Río Negro, 29/06/96),
No
dia 26 de junho/1996, conforme combinado, a Comissão de Piqueteiros foi
recebida por Sapag, junto com um conjunto de reivindicações levantadas e
aprovadas em assembleia pelos piqueteiros. Durante a reunião Sapag afirmou que
havia recebido do governo federal auxílio com roupas, alimentos e medicamentos
aos mais necessitados, assim como se comprometeu a religar em 48 horas o
fornecimento de energia e gás aos que se encontravam sem devido à falta de
pagamentos, garantiu a criação de postos de trabalho com a instalação de
indústrias e realização de obras públicas, declarou a região em estado de emergência social e ocupacional, prometeu
a criação de linhas de créditos para comerciantes e industriais no Banco da
Província, bem como a não punição dos contestadores sociais e, por fim, o
retorno da negociação com a fábrica de fertilizantes.
Laura
Padilla, quem fora eleita na assembleia dos piquetes para representa-los,
interferiu no discurso de Sapag e exigiu: “você coloca o que está dizendo por
escrito e assina. Está nevando, tem gente na rua. Faça algo, uma ata” (AUYERO
apud BONIFACIO, 2011, p. 158). Além disso, ela ponderou que levaria a ata,
fundamentada nessas propostas e sistematizada em 12 pontos, até os piquetes
para que fosse aprovada. Nesse momento Sapag se irrita e afirma “isso é uma
piada, acabamos de fazer um acordo”. Laura solicita duas horas para que
consulte a assembleia, demonstrando que a ata possivelmente seria aceita.
Na
fria tarde do dia 26 de junho, os piqueteiros aprovam a ata em assembleia e
encerram o bloqueio das estradas, porém se mantendo em estado de alerta diante dos trâmites para o cumprimento da ata.
Houve comoção coletiva, passeatas e carreatas pela cidades da região. Contudo,
a política assistencialista e paliativa que caracterizava diversos pontos da
ata nunca chegou a ser suficiente em termos qualitativos e quantitativos, pois
não chegava para todos e para os que chegavam não resolvia o problema. Não
tardou para que a situação crítica ressurgisse na região e junto com ela o
retorno da contestação social, porém agora com uma bagagem cultural de
enfrentamento maior que a do ano de 1996, visto que a organização das lutas
passadas gerou maior consciência e aprendizado. Em abril de 1997, o movimento
piqueteiro retornaria com mais força e maior capacidade de contestação.
Com
o objetivo de compreender que tipo de discursos, de quem, com que conteúdo eram
veiculado pelos jornais sobre a contestação social, seus métodos de luta e a
luta cultural expressa no capital comunicacional, nos fundamentamos em um
registro de aproximadamente 100 declarações, extraídas de 05 jornais, relativas
ao período junho/julho/1996. A análise desse conjunto de informações apresenta:
Figura 08 - Discursos veiculados
pelo capital comunicacional (entre os dias 26 de junho e 04 de julho de 1996,
em Cutral-Có e Plaza Huincul).
Sujeitos
|
Antes do Enfrentamento
|
Depois do Enfrentamento
|
Total
|
Contestadores sociais
|
15
30,6%
|
12
26,1%
|
27
28,4%
|
Outros sujeitos[15]
|
7
14,3%
|
7
15,2%
|
14
14,7%
|
Burocratas
(estatais, governamentais, partidários)
|
27
55,1%
|
27
58,7%
|
54
56,8%
|
Total
|
49
100%
|
46
100%
|
95
100%
|
Fonte: Elaboração própria sobre a base de dados extraídas
dos jornais Clarín, La Nación, Página 12, Río Negro, La Mañana del Sur.
A primeira constatação que extraímos desses
registros é que os discursos emitidos pelos contestadores sociais ocupam um
espaço infinitamente menor (28,4%) que o espaço ocupado pelos discursos da
burocracia (56,8%). A maioria absoluta dos discursos dos contestadores sociais
demonstra, tanto antes quanto depois dos enfrentamentos, um elevado grau de
descontentamento e impaciência com a burocracia (apontada como a responsável
pela situação social) e exigências de soluções imediatas da parte da burocracia
(estatal e governamental) provincial. Mesmo nos discursos dos contestadores
sociais, que também é produzido pelo capital comunicacional que seleciona,
recorta, fragmenta o discurso etc., existe uma mensagem implícita que os
apresenta de forma negativa (ameaçador, duro, violento, radicais, impacientes),
parecendo confirmar a corrente de opinião do capital comunicacional[16].
Em segundo lugar, as declarações que buscaram
caracterizar os contestadores sociais e seus métodos compõe um total de 56
discursos dos quais 34% vinculam a contestação social com o delitivo, com a
violência e como prejudiciais para as instituições burguesas. Tais
caracterizações foram emitidas majoritariamente pela burocracia
estatal/governamental (aproximadamente 80%), o que revela um monopólio
discursivo por parte dessa classe social. Mais de 20% dos discursos analisados
nesse período apontaram para denúncias contra os bloqueios das estradas e da
exigência de encerramento da contestação social com o uso da repressão
institucional; mais de 40% dos demais discursos tem no seu conteúdo acusações
entre frações da burocracia partidária/estatal/governamental buscando
mutuamente na oposição os verdadeiros responsáveis pela contestação social
(ARTESE, 2013).
Podemos observar que o bloco dominante, desde o
início dos enfrentamentos sociais, veio construindo uma corrente de opinião
hegemônica que apontava para a criminalização da contestação social,
apresentando-a negativamente e de forma estereotipada como delitiva, violenta,
perigosa para o estado de direito e suas instituições e, portanto, ilegítima.
Coube ao capital comunicacional produzir e reproduzir essa corrente de opinião
diariamente, em diversos jornais provinciais e nacionais, ao longo dos dias que
antecederam e precederam a repressão institucional. Porém, é importante
ressaltar que para os milhares de contestadores sociais essa corrente de
opinião era falaciosa, pois em seus discursos o significado de delito era
interpretado de forma muito distinta, como exemplifica o discurso de um jovem
lumpemproletário que esteve presente nos piquetes e enfrentou o avanço da
gendarmeria:
delito
é deles. Delito é não trazer pão às crianças, não comprar os materiais da
escola, isso é delito. De que delito estão nos acusando quando o que você quer
é trabalho e algo para suas crianças? E te vem atacar com a gendarmeria ...
isso diretamente é matança, não delito, uma agressão moral. Aqui tem
criancinhas que estão anêmicas, que tem desnutrição, gente que não tem nem o
que comer. Delito é ter que levar meus filhos a um refeitório comunitário, e
que não haja fonte de trabalho para que comamos todos os dias na mesa juntos.
Não sei de que delito a juíza vem me acusar (ARTESE, 2013, p. 43).
A primeira Pueblada
de Cutral-Có, como ficou conhecido esse episódio, apresentaria de forma
mais transparente os elementos que combinariam a nova dinâmica da luta de
classes (a ação direta com fortes tendências à autonomização, decisões
horizontais em assembleia, auto-organização da luta etc.), seu principal
protagonista social (os piqueteiros que inicialmente formavam uma diversidade
de grupos e classes sociais e, posteriormente, passou a ser composto
majoritariamente pelo lumpemproletariado – desempregados, subempregados etc.),
seus principais métodos de luta (os piquetes bloqueando estradas, ruas e pontes
de acesso), sua eficácia contra a invisibilidade social (a radicalidade dos
piquetes garantiram a atenção do capital comunicacional e sua propaganda) e sua
principal exigência (trabalho).
Nessa pueblada, conheceríamos mais nitidamente
também a postura dos seus principais inimigos (burguesia e burocracia) diante
da contestação social. Para esses não haveria espaços para canais políticos
alternativos, ou está dentro da normalidade institucional, seguindo suas regras
e aceitando a regularização neoliberal ou será considerado um
delinquente/criminoso/inimigo imaginário e, portanto, passivo de repressão,
criminalização e eliminação (fuzilamentos). Para isso, a burguesia contaria com
o capital comunicacional e, fundamentalmente, com a burocracia para produzirem
e reproduzirem um discurso ideologêmico que criminaliza, apontando a
contestação social como delitiva, violenta; criando inimigos imaginários
(franco-atiradores, infiltrados, guerrilheiros, terroristas, comunistas etc.);
e construindo, a partir desses discursos, uma corrente de opinião hegemônica,
contrária à contestação social e seus métodos, temerosa do “perigo”
representado pelos piqueteiros e, por conseguinte, favoráveis à repressão
institucional. Nesse sentido,
se
trata de um produto de noções próprias de um paradigma ideológico no qual se
considera a autogestão como uma instância de periculosidade que deve ser
remediada, se necessário mediante castigo. A elaboração desse paradigma
conforma o germe, semente do processo de criminalização e penalização simbólica
do protesto que seria aplicado a outros episódios nos sucessivos governos
(ARTESE, 2013, p. 43).
Nessa pueblada podemos encontrar com maior nitidez
as principais características da nova dinâmica da luta de classes no
capitalismo contemporâneo (não só argentino), isto é a emergência de uma
postura política do lumpemproletariado com maior potencialidade para contestar
as formas sociais neoliberais, a recuperação de antigas, porém poderosas,
ferramentas de enfrentamento, com destaque para o bloqueio de estradas, ruas,
pontes e outras vias importantes para a reprodução da sociabilidade burguesa, a
auto-organização assembleiaria e horizontal como alternativa às moribundas
instituições tradicionais (partidos e sindicatos), a ação direta e o
enfrentamento declarado ao poder estatal burguês etc. Está claro que em resposta
a essas ferramentas e a radicalidade que as lutas contemporâneas tendem a
adquirir, o bloco dominante vem engendrando diversas maneiras de evitar o
avanço da contestação social que, no entanto, não possui grandes novidades. Na
verdade, o receituário repressivo burguês se apresenta como sendo mais do
mesmo, isto é, discurso criminalizador via capital comunicacional, construção
de uma corrente de opinião dominante que aponte para a deslegitimação da
contestação, invenção de inimigos imaginários em torno dos contestadores
sociais, criminalização de toda e qualquer luta social que apresente
dificuldades e barreiras para o avanço da insaciável acumulação capitalista e,
por fim, uma brutal repressão política, travestida de luta contra inimigos
sociais (imaginários) perigosos. É contra esse receituário que os contestadores
sociais contemporâneos precisam aprender a lidar para poder superá-lo e promover
o avanço da luta pela total transformação social.
Referências:
ARTESE, Matías. La
construcción de representaciones sociales en torno protesta social y a la
represión institucional. Seis estudios de caso entre los años 1996 y 2002. 2009. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) –
Universidade de Buenos Aires, Buenos Aires, 2009. 355 p.
ARTESE, Matías. Cortes
de ruta y represión – la justificación ideológica de la violencia política
entre 1996-2002. Buenos Aires:
Eudeba, 2013.
BONIFACIO, José Luis. Protesta y organización –
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Editorial El Colectivo, 2011.
BRAGA, Lisandro. Classe
em farrapos – acumulação integral e expansão do lumpemproletariado. São
Carlos, SP: Pedro e João editores, 2013.
BRAGA, Lisandro. Repressão
estatal e capital comunicacional – O bloco dominante e a criminalização do
movimento piqueteiro na Argentina. Tese (doutorado em Sociologia) –
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2016, 310 p.
BUCCIARELLI, Mario. El estado neuquino –
Fortalezas y debilidades de una modalidade de intervención. Em: FAVARO,
Orieta (org.). Neuquén – la construcción de un orden estatal. Neuquén:
Universidad Nacional de Comahue, 1999.
KLACHKO, Paula. Las
formas de organización emergentes del ciclo de rebelión de los ’90 en la
Argentina. Publicación del
Programa de Investigación sobre el Movimiento de la Sociedad Argentina – PIMSA,
número 67, 2007.
PETRUCCELLI, Ariel. Docentes e piqueteros – de la huelga de ATEN a la pueblada de Cutral Có.
Buenos Aires: El cielo por assalto, 2005.
SVAMPA, Maristella e PEREYRA, Sebastián. Entre La
ruta y el barrio – la experiência de las organizaciones piqueteras. Buenos
Aires: Biblos, 2009.
VIANA, Nildo. A
consciência da história – ensaios sobre o materialismo histórico-dialético.
Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.
VIANA, Nildo. O
capitalismo na era da acumulação integral. Aparecida, SP: Ideias e letras,
2009.
* Doutor em
Sociologia/Universidade Federal de Goiás, professor de Teoria Política e
Argentina Contemporânea/Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e
Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas América Latina em
Movimento/NEPALM.
[1] As formas sociais são formas de regularização das
relações sociais que regularizam
desde as relações de produção até todo o conjunto das relações sociais
derivadas do modo de produção. Nessas sociedades, o estado é a principal forma
de regularização das relações sociais, pois ele deve e busca controlar todas as
formas privadas de regularização das relações sociais, visando influenciar no
seu funcionamento e no conjunto das relações de produção. Tudo isso com o
propósito fundamental de garantir a reprodução das relações sociais
capitalistas. Enfim, ele
procura regularizar a produção de capital e todas as demais formas de
regularização das relações sociais.
[2] O Programa de
Investigação sobre o Movimento da Sociedade Argentina/PIMSA “é levado adiante, desde 1993, por um conjunto de investigadores
formados em distintas disciplinas, articulados em equipes de investigação que
pretendem integrar as distintas aproximações ao conhecimento da realidade
social de historiadores, sociólogos, antropólogos e economistas. Estas equipes
de investigação foram se constituindo em distintos momentos ao longo dos
últimos 24 anos, e com a realização desse programa tentamos dar continuidade e
às vezes superar essa acumulação realizada no campo do pensamento científico,
dando conta das profundas mudanças que tem produzido na Argentina atual como
manifestação local do sistema capitalista mundial e atendendo as
especificidades que se apresentam, como país dependente onde as relações
capitalistas tem alcançado um alto grau de desenvolvimento. Para isso abarcamos
o período ao redor dos 130 anos nos quais tem ocorrido a gênese, formação e
desenvolvimento do capitalismo na Argentina” (PIMSA). Cf. http://www.pimsa.secyt.gov.ar/
[3] A regularização
interventora equivale à forma estatal própria do regime de acumulação
antecessor do regime de acumulação integral. No entanto, ainda nos falta a
realização de um estudo aprofundado sobre tal regime de acumulação na
Argentina, trabalho que pretendemos realizar em estudos posteriores.
[4] Entendemos por isso o
processo de marginalização da força de trabalho da divisão social do trabalho,
constituindo, a partir daí, uma classe social que vivem à margem de tal divisão
social: o lumpemproletariado (VIANA, 2009; BRAGA, 2013, 2016).
[5] Achamos muito pouco
provável que o próprio Sobisch tivesse o interesse em consolidar tal contrato
com a empresa Agrium. Para nós trata-se da estratégia clássica da burocracia,
que vive de disputas partidárias, para desgastar o inimigo partidário com
práticas maquiavélicas nas quais os fins justificam os meios, tal como a de
iniciar um acordo que, a priori, sabe-se que não será concluído em seu mandato
e que cairá como uma “batata quente” na mão do seu sucessor. E, como de fato
ocorreu, o não cumprimento do acordo estimulará a contestação social. O
contexto social da província não possibilitaria um investimento como o exigido
para a instalação da planta canadense de fertilizantes.
[6] “Na investigação de Auyero (2004a) menciona-se a
quantidade e qualidade de recursos que o ex-prefeito havia mobilizado para a
realização do protesto. Muitos dos entrevistados pelo autor falam do suporte de
caminhões carregados de cobertas para alimentar o fogo das barricadas, a
provisão de combustíveis gratuito aos veículos que se dirigiam aos postos de
bloqueio nas estações de serviço de sua propriedade, como demais insumos para sustentar
a presença dos manifestantes: alimentos, cobertas, combustível para aquecer-se
etc. Inclusive desde o oficialismo acusou-se a radio “FM Victoria” –que
difundiu pela primeira vez o fracasso das negociações entre a empresa de
fertilizantes e o governo de estar vinculada com o ex-prefeito e de cumprir um
papel de “alcoviteiro” ao incentivar a população a bloquear a estrada. O
prefeito de Cutral Có, Daniel Martinasso declarava que “tem gente do meu
próprio partido que segue manejando interesses pessoais e setoriais” (Río
Negro, 24-06-96, p. 1) [...] (ARTESE, 2009, p. 101-102).
[7] “A classe subalterna é
composta pelos trabalhadores assalariados improdutivos que exercem, na divisão
social do trabalho, a atividade de serviços em geral, desde os comerciais aos
domésticos (VIANA, 2012). Marx já havia percebido a emergência de subalternos
domésticos, que ele denominou ‘classe dos serviçais’ (MARX, 1988). Nesse
sentido, um ‘datilógrafo’ (hoje seria um ‘digitador’) não é um membro da ‘nova
classe média’ (que englobaria a burocracia), como alguns erroneamente pensam
(DAHRENDORF, 1982; CAMPOS, 1976), muito menos outros funcionários (como
funcionário de limpeza ou faxineiro) seria parte da burocracia ou mesmo do
termo equivocado e genérico de ‘nova classe média’. Eles pertencem, na verdade,
à classe subalterna, pois não tem poder de decisão dentro da organização”
(VIANA, 2015a). Também Cf. (VIANA, 2012).
[8] Em Benclowicz, por
exemplo, pode-se ler: “em junho de 1935, os leiteiros (de Salta) atravessaram
os carros de distribuição no centro da cidade, bloquearam o trânsito e
protagonizaram um ‘piquete’ urbano, quer dizer, um bloqueio de ruas [...] esse
tipo de ações demonstram que as ‘novas’ formas de protesto não são tais, ou
pelo menos possuem uma genealogia” (2013, p. 109 – parênteses nossos).
[9] “Éramos
mais de 10 mil na estrada. Era tamanha a organização que aí estava um grupo
colocando arames que ficava das cobertas queimadas, para que se enrosquem
debaixo dos canhões de água e não os deixem passar. Vinham e nos avisavam que
estariam fazendo esse trabalho e que iam tardar o quanto pudesse [...] Esse dia
às sete da manhã também soou a sirene e nós vivíamos nas quinhentas
residências, no último bairro. E você se levanta, sai para a estrada, um
dedinho e todo mundo se levanta porque todo o bairro irá se levantar e ir até a
estrada. Era uma confraternidade impressionante (fala de um contestador social)
[...] (ARTESE, 2009, p. 109 – parênteses nossos).
[10] De acordo com Horacio
Verbitsky tal comandante compõe a gendarmería desde os anos 1970 e foi
responsável pelo principal centro de extermínios da província de Tucumán, tendo
assistido pessoalmente ao general Domingo Antonio Bussi executar, com tiros na
cabeça, diversos presos políticos que posteriormente eram lançados em pneus
incendiados com gasolina e óleo (Página 12, 18/12/99). A presença desses e
outros militares genocidas nos aparatos repressivos do estado desde a ditadura
militar burguesa apenas demostra que as mudanças ocorridas em tal aparato
repressivo após o reinício da ditadura, assim como essa, demonstra apenas
mudanças em suas formas, mas não em sua essência, pois essa sempre foi fundada
no uso da violência da classe dominante contra as classes dominadas.
[11] No fundo, para a consciência fetichizada toda
prática que se afasta do comumente instituído é encarada como deturpadora; e o
capital comunicacional trabalhava para reforçar essa corrente de opinião
predominante na sociedade: “recorremos todos os piquetes e podemos observar que
não é Grittini (ex-prefeito de Cutral-có) quem está encorajando a mobilização.
Todos respondem a todos e ninguém responde a ninguém” (Jorge Muñóz, membro do
clero, La Mañana del Sur, 26/06/96).
[12] A juíza se encontrava
diante de milhares de manifestantes (muitos encapuzados) com altíssimo grau de
descontentamento e disposição para o enfrentamento direto com as forças
repressivas, que estavam em um número quatro vezes menor. Ao tentar falar com
os contestadores foi ajudada por um encapuzado que a ergueu em cima de uma
camionete. Os diversos vídeos sobre esse momento demonstram claramente a
situação de medo na qual se encontrava a juíza, tremendo e gaguejando.
[13] “Não era a primeira
vez – nem seguramente será a última – que se definia com uma patologia mental
as manifestações populares de um conflito. As Mães da Praça de Maio foram
rotuladas como ‘as loucas da praça’ durante anos” (ARTESE, 2013, p. 41).
[14] “No mesmo dia dos enfrentamentos, a multisetorial de Neuquén -que
aglutinava os grêmios docentes da ATEN, legislativo (ANEL), judicial (SEJUN),
estatal (ATE) junto a partidos políticos, la APDH local e outras organizações
de Direitos Humanos convocou a uma paralização geral –que obteve um elevado
acatamento nas escolas- e a movilização em apoio aos moradores das regiões em
conflito. Segundo os diários locaiss, mais de 2.500 pessoas se mobilizaram
desde o centro da cidade até a ponte que une as cidades de Cipolletti com
Neuquén – que seria umo dos epicentros do protesto de março e abril de 1997-,
interrompendo-o das 13hs00min. até as 17hs00min. O mesmo ocorreria na ponte que
une a localidade neuquina de Centenario (ao norte da capital) com a região
rionegrinha de Cinco Saltos. Estes atos de solidariedade realizados pelos
grêmios se produziram, contudo, quando o conflito encerrava. Apesar dos já sabidos
transtornos produzidos pelo bloqueio desses importantes caminhos, a população
neuquina aderiu e saudou a medida” (La Mañana del Sur, 27-06-96 apud
ARTESE, 2009, p. 112).)
[15] Aqui se encontra
membros da intelectualidade (padres, pastores, jornalistas etc.), leitores e
vizinhos que não sabemos sua pertença de classe, comerciantes, empresários etc.
[16]
Alguns discursos dos
piqueteiros parecem reforçar implicitamente a corrente de opinião que o capital
comunicacional visava produzir e tornar predominante, isto é, os contestadores
como violentos e delinquentes, contudo não passa de aparência. Por exemplo, no
trecho a seguir: “Estamos
cansados de viver de esmolas e de sermos mantidos por nossas mulheres. Não
queremos mais discursos, se isso não for corrigido vamos fechar as válvulas de gás e depois vemos o que fazem”
(Piqueteiro, La Mañana del Sur, 22/06/1996). Levando em consideração que
estamos falando da Patagônia nos meses de inverno rigorosíssimo, em que toda a
população necessita do acesso ao gás para manter aquecida suas residências, o
trecho grifado soa como bastante ameaçador e violento, podendo reforçar a
corrente de opinião desejada pelo capital comunicacional, isto é, a de que os piqueteiros são violentos. Porém,
vale ressaltar que a violência não é uma essência dos indivíduos que
contestavam bloqueando as estradas, cercando as cidades e deixando-as
desabastecidas, enfrentando as forças repressivas, ameaçando interromper o
fornecimento de gás etc. No fundo, tais ações devem ser encaradas como realmente
foram: a resistência das classes exploradas, precarizadas e marginalizadas da
divisão social do trabalho; lançadas pela regularização neoliberal no
esquecimento social, na miséria, na fome, na desnutrição, na imensa mortalidade
infantil etc; tratou-se de uma reação, infinitamente mais fraca, à brutal
violência burguesa e, fundamentalmente, orquestrada pela burocracia. Quer
dizer, contextualizando, percebe-se que se tratou de uma contraviolência à violência burguesa.
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