Breve introdução à teoria marxista das classes sociais
e do estado
Originalmente publicado na Revista Enfrentamento, 19.
De imediato
a principal questão que nos apresenta é: existe uma concepção de classes
sociais na gigantesca produção teórica de Karl Marx? Sabemos que não há em toda
a sua obra uma sistematização teórica pronta e acabada das classes sociais, nem
nas sociedades pré-capitalistas, nem no capitalismo. O que há é um esboço
teórico dessas e no caso do capitalismo uma teoria incompleta e com lacunas
(VIANA, 2012). Então, de que maneira proceder para buscar uma concepção teórica
das classes sociais na obra de Karl Marx?
Nessa busca
trilharemos os árduos, porém necessários, caminhos apontados pela elucidativa
análise de Nildo Viana, presente na obra A
teoria das classes sociais em Karl Marx (2012),
ou seja, juntando as peças do quebra-cabeça e
reconstruindo um esboço da teoria das classes sociais em Karl Marx[1] em todas as sociedades
classistas analisadas por esse intelectual engajado. Isso significa dizer que:
É
necessário realizar uma leitura rigorosa das obras de Marx, focalizando aquelas
em que desenvolveu mais a sua abordagem das classes e estando atento para as
análises e complementos em outras obras, não perdendo de vista o processo de
desenvolvimento das teses do autor, que não são estáticas, embora também não
sejam a cada período radicalmente diferente umas das outras. Também é preciso
estar atento ao período em que Marx viveu, os autores que o inspiraram, as
problemáticas da época, as ideologias e concepções existentes, a coerência
interna de seu discurso, a sociedade de sua época, entre outros elementos,
visando entender o que ele quis dizer ao invés de atribuir a ele o que
pensamos, como os maus intérpretes fazem. Assim, observar o contexto histórico,
cultural e discursivo da obra é fundamental para evitar as deformações e
interpretações equivocadas (VIANA, 2012, p. 08).
Sendo
assim, será de extrema necessidade metodológica, como o próprio Marx apontava,
e também o faz Viana, encontrar um fio condutor coerente e bem fundamentado que
perceba as questões fundamentais expostas por Karl Marx em suas obras e que
permita uma análise e interpretação/consciência correta da realidade, isto é,
de sua teoria das classes sociais. Nesse sentido, faremos aquilo que Karl
Korsch (2008) alertava para melhor compreender o pensamento de Marx e o próprio
marxismo: aplica-lo a si mesmo.
A primeira
abordagem teórica de Marx sobre as classes sociais foi realizada na obra A Ideologia Alemã (1984) e, por
conseguinte, é com essa obra que iniciaremos nosso percurso. Nessa obra, outros
conceitos se apresentam como sendo de suma importância para responder à
pergunta: o que é uma classe social? Trata-se dos conceitos de divisão (social)
do trabalho e modo de produção da vida. Segundo Marx:
as diferentes fases de desenvolvimento da divisão do trabalho são
outras tantas formas diferentes de propriedade; ou seja, cada uma das fases da
divisão do trabalho determina também as relações dos indivíduos entre si no que
respeita ao material, ao instrumento e ao produto do trabalho (1984, p. 17).
Aqui é
possível perceber a importância fundamental do conceito de divisão social do
trabalho visto que este equivale a diferentes formas de propriedade,
determinando as relações entre os indivíduos no processo de produção. Seguindo
o raciocínio de Marx, percebe-se que o conceito de modo de produção da vida,
também, é essencial (primeiro ato histórico), pois amplia a compreensão da
relação existente entre divisão social do trabalho e classes sociais. Vejamos
como ele coloca essa questão:
a produção da vida, tanto da própria, no trabalho, como da alheia,
na procriação, surge agora imediatamente como dupla relação: por um lado como
relação natural, por outro como relação social – social no sentido em que aqui
se entende a cooperação de vários indivíduos seja em que circunstância for e
não importa de que modo e com que fim. Daqui resulta que um determinado modo de
produção, ou fase industrial, está sempre ligado a um determinado modo da
cooperação, ou fase social, e este modo da cooperação é ele próprio uma força produtiva; e que a quantidade das
forças acessíveis aos homens condiciona o estado da sociedade, e, portanto a história da humanidade tem de ser sempre
estudada e tratada em conexão com a história da indústria e da troca (MARX e
ENGELS, 1984, p. 32-33).
Apesar do
conceito modo de produção ainda não
se encontrar completamente desenvolvido nessa obra, já é possível visualizar a
importância do mesmo na compreensão de toda essa discussão, pois este possui no
seu interior um determinado modo de cooperação equivalente à determinada
configuração da divisão social do trabalho, uma força produtiva. A análise de
Marx demonstrará que divisão social do trabalho e propriedade são expressões
idênticas, já que “[...] numa enuncia-se em relação à atividade o mesmo que na
outra se enuncia relativamente ao produto da atividade [...]” (1984, p. 37).
Precedendo essa citação encontra-se “uma
das passagens mais importantes de toda a obra de Marx, que, curiosamente, caiu
no esquecimento ou não foi devidamente considerada em sua importância” (VIANA,
2012, p. 26), pois ela aponta elementos importantíssimos na compreensão segundo
a qual a divisão social do trabalho é essencial (a chave) para a compreensão do
processo de exploração (de uma classe sobre outra):
Com a divisão do
trabalho, na qual estão dadas todas estas contradições, e a qual por sua vez
assenta na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade
em famílias individuais e opostas umas às outras, está ao mesmo tempo dada
também a repartição, e precisamente a repartição desigual tanto quantitativa
como qualitativa, do trabalho e dos seus produtos, e, portanto a propriedade, a
qual já tem o seu embrião, a sua primeira forma, na família, onde a mulher e os
filhos são os escravos do homem. A escravatura latente na família, se bem que
ainda muito rudimentar, é a primeira propriedade, que de resto já aqui
corresponde perfeitamente à definição dos modernos economistas, segundo a qual
ela é o dispor de força de trabalho alheia” (MARX e ENGELS, 1984, p. 36 e 37).
Com a
divisão social do trabalho está dada a contradição entre o interesse particular
e o interesse coletivo, em outras palavras, a contradição entre o interesse do
proprietário e o interesse do não proprietário. É exatamente por conta dessa
contradição que o interesse comum “assume uma forma autônoma como estado,
separado dos interesses reais dos indivíduos e do todo, e ao mesmo tempo como
comunidade ilusória [...]” (MARX e ENGELS, 1984, p. 37). Aqui, uma vez mais,
Marx apresenta elementos que apontam para a conclusão segundo a qual é a
divisão social do trabalho quem gera o antagonismo entre interesses sociais
diversos, que coage a classe proprietária a se apropriar do poder político da
sociedade através da regularização das relações sociais pelo estado e esse,
como não poderia deixar de ser, é composto, também por indivíduos interessados
e que comporão outra classe social engendrada pela divisão social do trabalho.
No capitalismo, trata-se da burocracia estatal. Mais adiante realizaremos uma
discussão sobre essa classe social.
A divisão
social do trabalho constrange os indivíduos a exercerem atividades que não
foram escolhidas por eles mesmos e, portanto, se apresenta como uma força
estranha, opositora e sobrepujante que escapa ao próprio domínio do indivíduo. Dessa
maneira,
assim que o trabalho começa a ser distribuído, cada homem tem um
círculo de atividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e do qual não
pode sair; será caçador, pescador ou pastor ou crítico crítico, e terá de
continuar a sê-lo se não quiser perder os meios de subsistência [...] Esta
fixação da atividade social, esta consolidação de nosso próprio produto como
força objetiva acima de nós, que escapa ao nosso controle, contraria as nossas
expectativas e aniquila os nossos cálculos, é um dos fatores principais no
desenvolvimento histórico até os nossos dias (MARX e ENGELS, 1984, p. 39).
A partir
dessa passagem nossa compreensão começa a se ampliar, pois nela, mais do que
nunca, está claro que é a divisão social do trabalho, a fixação do indivíduo em
uma atividade que suscita o pertencimento de classe e esse ocasiona o conflito
de interesses, inclusive, de interesses de classes antagônicas (VIANA, 2012). A
expansão da divisão social do trabalho promove o surgimento das classes sociais
e assim tende a continuar ocorrendo. No entanto, ainda nos resta responder o
que Marx compreende como sendo uma classe social? O que é uma classe social na
teoria marxista?
Segundo
Marx (1984), a primeira e grande divisão social do trabalho (separação entre
trabalho material e trabalho intelectual) foi promovida pela separação entre
cidade e campo. Na primeira emerge a necessidade da administração, controle,
repressão, cobrança de tributos, da organização municipal, em suma da política
em geral.
Aqui se revelou primeiro a divisão da população em duas grandes
classes, a qual assenta diretamente na divisão do trabalho e nos instrumentos
de produção. A cidade é já a realidade da concentração da população, dos
instrumentos de produção, do capital, dos prazeres, das necessidades, ao passo
que o campo torna patente precisamente a realidade oposta, o isolamento e a
solidão. O antagonismo entre cidade e campo só pode existir no quadro da
propriedade privada (MARX e ENGELS, 1984, p. 64).
Nessa obra
Marx já apresenta três condições para a constituição do pertencimento de classe
e que nos permite sacar sua concepção de classe social: possuir um modo de vida
comum (modo de vida da classe),
interesses comuns (interesses de classe),
e o estabelecimento de enfrentamento/aliança (enfrentamento/aliança entre classes) com outras classes sociais.
Aplicando
estes elementos na compreensão da nascente burguesia como classe social, Marx
apresenta de forma extremamente elucidativa sua concepção:
os burgueses de todas as cidades eram obrigados, na Idade Média, a
unir-se contra a nobreza rural para salvarem a pele; a expansão do comércio, o
estabelecimento de comunicações, levou as diferentes cidades a conhecer outras
cidades, as quais tinham afirmado os mesmos
interesses na luta contra o mesmo
contrário. Das muitas corporações locais de burgueses tornaram-se, ao mesmo
tempo, pelo antagonismo contra as relações vigentes, e pelo tipo de trabalho
por aquelas condicionado, condições que a todos eles eram comuns e independentes de cada um deles. Os burgueses tinham criado
estas condições na medida em que haviam cortado com o vínculo feudal, e foram
por elas criados na medida em que foram condicionados pelo seu antagonismo
contra a feudalidade que já encontravam vigente. Com o estabelecimento da
ligação entre as diferentes cidades, estas condições
comuns desenvolveram-se e tornaram-se condições
de classe. As mesmas condições, o
mesmo contrário, os mesmos interesses, tinham também de dar
origem, por toda a parte e dum modo geral, a costumes iguais [...] Os indivíduos isolados só formam uma classe
na medida em que têm de travar uma luta
comum contra uma outra classe; de resto, contrapõem-se de novo hostilmente
uns aos outros, em concorrência. Por outro lado, a classe autonomiza-se, por
seu turno, face aos indivíduos, pelo que estes encontram já predestinadas as
suas condições de vida, é-lhes indicada pela classe a sua posição na vida – e,
com esta, o seu desenvolvimento pessoal -, estão subsumidos na classe (MARX e
ENGELS, 1984, p. 82-83).
Dessa
forma, a concepção de classe social esboçada por Marx nessa obra aponta para a
conclusão segundo a qual é a divisão social do trabalho, derivada do modo de
produção dominante, a responsável por gerar as classes sociais que passam a ser
compostas por indivíduos que possuem modo de vida comum, determinadas por um
conjunto de atividades fixadas socialmente, e que começam a deter interesses
comuns e enfrentamentos a outras classes sociais (VIANA, 2012; MAIA, 2013).
Juntamente com essa conclusão, constata-se, também, que
uma classe social significa que
os indivíduos que a compõem possuem o mesmo modo de vida, já que suas condições
de vida, oposição a outras classes, interesses, costumes e representações são
compartilhados por todos os seus componentes. Daí se percebe que as classes
sociais não são “construções arbitrárias” da mente humana e sim uma determinada
relação social que é manifestação da vida de indivíduos reais. Também se
percebe que o conceito de classes em Marx é relacional, uma classe só existe em
relação com outras classes sociais, através da oposição e da luta. Esse modo de
vida comum gera também costumes e representações semelhantes (VIANA, 2012, p.
30).
Vale ressaltar um
aspecto de extrema importância na compreensão de Karl Marx sobre as classes
sociais e seu papel na conservação ou transformação radical de um modo de
produção. Trata-se do papel de destaque no qual o proletariado assume no modo
de produção capitalista. Nessa obra, ele resgata alguns elementos que já
estavam presentes na Introdução à Crítica
da filosofia do direito de Hegel, isto é, a de que o proletariado é o
agente da transformação social e emancipação humana geral:
para alcançar esta posição
libertadora e a direção política de todas as esferas da sociedade, não bastam a
energia e a consciência revolucionárias. Para que a revolução de um povo e a
emancipação de uma classe particular da sociedade civil coincidam, para que uma
classe represente o todo da sociedade, outra classe tem de concentrar em si todos
os males da sociedade, uma classe particular deve encarnar e representar um
obstáculo e uma limitação geral. Uma esfera social particular terá de surgir
como o crime notório de toda a sociedade, a fim de que a emancipação de
semelhante esfera surja como uma emancipação geral. Para que uma classe seja
classe libertadora par excellence, é necessário que outra classe se revele
abertamente como a classe opressora (MARX, 2008, p. 18).
Em
que classe social e porque razões se encontraria então a potencialidade da
emancipação? Marx responde:
Na formação de uma classe que
tenha cadeias radicais, de uma classe na sociedade civil que não seja uma
classe da sociedade civil, de uma classe que seja a dissolução de todas as
classes, de uma esfera que possua carácter universal porque os seus sofrimentos
são universais, e que não exige uma reparação particular porque o mal que lhe é
feito não é um mal particular, mas o mal em geral, que já não possa exigir um
título histórico, mas apenas o título humano; de uma esfera que não se oponha a
consequências particulares, mas que se oponha totalmente aos pressupostos do
sistema político alemão; por fim, de uma esfera que não se pode emancipar a si
mesma nem emancipar-se de todas as outras esferas da sociedade sem as emancipar
a todas – o que é, em suma, a perda total do homem, portanto, só pode
redimir-se a si mesma mediante uma redenção total do homem. A dissolução da
sociedade, como classe particular, é o proletariado (MARX, 2008, p. 20).
A tese
segundo a qual a emancipação do proletariado representa a emancipação de toda a
humanidade foi inicialmente esboçada na introdução dessa obra, mas também
aparece em diversas outras como, por exemplo, nos Manuscritos econômico-filosóficos (1844) que assim a expressava:
da relação do trabalho estranhado com a propriedade privada
depreende-se, além do mais, que a emancipação da sociedade da propriedade
privada etc., da servidão, se manifesta na forma política da emancipação dos trabalhadores, não como se dissesse
respeito somente à emancipação deles, mas porque na sua emancipação está
encerrada a [emancipação] humana universal. Mas esta [última] está aí encerrada
porque a opressão humana inteira está envolvida na relação do trabalhador com a
produção, e todas as relações de servidão são apenas modificações e
consequências dessa relação (MARX, 2004, p. 88-89).
É comum nos depararmos com a absurda afirmação segundo a qual Marx
só visualizava a existência de duas classes sociais na sociedade capitalista.
Tal absurdo se deve à existência de milhares de mal-leitores e até mesmo
não-leitores de Marx, dispostos a se posicionarem como aqueles que sabem
realmente o que ele “disse ou não disse” e não, pelo contrário, interpretar e
analisar de forma aprofundada a imensa análise realizada por esse autor. Nesse
verdadeiro processo de simplificação e cristalização ideológica se “passa por cima de inúmeros textos, inúmeras
afirmações, passa por cima da complexidade e até sobre a autoridade do próprio
autor (onde os textos deixam de ter validade para fundamentar a interpretação)
[...]” (VIANA, 2012, p. 38). Em diversas obras, Marx apresenta uma grande
quantidade de distintas classes sociais tanto no período pré-capitalista,
quanto no próprio capitalismo, porém, para mal-leitores e não-leitores,
identificar isso é um trabalho quase impossível, quando não evitado
propositalmente. Uma simplificação que, no mundo de inversões, se torna uma
arma (de plástico) contra uma suposta análise simplificadora.
A
título de exemplificação que contraria tais análises, nos contentaremos em
apresentar brevemente diversas outras classes sociais, além das classes
fundamentais, tão-somente na obra O
capital de 1867[2].
Conforme já havia constatado Marx, a história da humanidade é a história da
luta de classes, tal constatação foi mencionada em obras anteriores a O capital, contudo, é nessa obra que ele
dedica uma análise pormenorizada sobre o processo de exploração de uma classe
social sobre outra no capitalismo, sobre a luta de classes entre suas classes
fundamentais (burguesia e proletariado), suas implicações na formação de outras
classes (por exemplo, o lumpemproletariado), suas tendências e contra
tendências, suas possibilidades, tal como a da construção concreta do comunismo
etc. Em linhas gerais, é a partir dessa obra que se torna possível a
visualização do seu esboço de uma teoria das classes sociais no capitalismo.
No
primeiro prefácio de O capital,
escrito por Marx em Londres, no dia 25 de julho de 1867, e equivalente à
primeira edição dessa obra, é possível extrairmos alguns elementos
importantíssimos, todavia não suficiente, para seguirmos juntando as peças do
quebra-cabeça. Nesse, Marx assim se expressava:
para evitar
possíveis erros de entendimento, ainda uma palavra. Não pinto, de modo algum,
as figuras do capitalista e do proprietário fundiário com cores róseas. Mas
aqui só se trata de pessoas à medida que são personificações de categorias
econômicas, portadoras de determinadas relações de classe e interesses. Menos
do que qualquer outro, o meu ponto de vista, que enfoca o desenvolvimento da
formação econômica da sociedade como um processo histórico-natural, pode tornar
o indivíduo responsável por relações das quais ele é, socialmente, uma
criatura, por mais que ele queira colocar-se subjetivamente acima delas (1985,
p. 13).
Aqui,
conforme já nos alerta Maia em sua obra As
classes sociais em O capital (2011), é possível apreendermos algumas
questões importantíssimas, quais sejam: toda pessoa/indivíduo anuncia
determinadas categorias econômicas, expressam relações de classe específicas
logo, portam determinados interesses. E mais, tal pessoa se encontra envolvida
em relações de classe, quer queira quer não, sendo condicionada socialmente
pelas mesmas, quer tenha ou não consciência disso, e não pode ser compreendida
fora da totalidade dessas relações sociais. Buscaremos, a partir dessas
constatações, apreender algumas das classes sociais apresentadas em O capital (1985).
Sendo
leal à própria tese segundo a qual é na produção material da vida (determinação
fundamental) que devem ser buscadas as múltiplas determinações das diversas
relações sociais existentes em uma dada sociedade é que Marx terá como ponto de
partida nessa obra a análise da produção capitalista de mercadorias, ou seja,
das relações sociais envolvidas no processo de produção de mais-valor. Aquela
força estranha impetuosa que escapa ao controle dos produtores e que é
utilizada objetivamente pela classe proprietária dos meios de produção. Por
conseguinte, é sobre a relação-capital
que iniciaremos nossa análise sobre as classes no capitalismo. Porém, não
realizaremos aqui uma análise detalhada sobre as classes fundamentais[3] no capitalismo, pois esta
tarefa já foi laborada em outro momento (BRAGA, 2013), mas apenas
apresentaremos seus traços gerais.
Toda
e qualquer sociedade deve, para continuar existindo, produzir suas condições
materiais de existência e, no caso da sociedade capitalista, essa é garantida
através da produção de mercadorias que possuem valor de uso e de troca. Essa
atividade produtiva equivale ao fundamento (base, alicerce) da divisão social
do trabalho dessa sociedade. Portanto, a produção de mercadorias é realizada
através das relações sociais de produção estabelecidas entre as classes sociais
diretamente envolvidas nessa atividade fundamental, isto é, entre a classe
produtora e a classe não produtora e expropriadora. Em outras palavras, entre o
proletariado e a burguesia.
Sendo
assim, compreender o processo de produção de mercadorias equivale a buscar
compreender quem são e como se relacionam as classes sociais fundamentais dessa
divisão social do trabalho capitalista. Para isso, precisamos esclarecer a
singularidade da produção de mercadorias no capitalismo, isto é, ser produtora
de mais-valor. Mas, antes mesmo de compreendermos o que é o mais-valor,
precisamos, primeiramente, questionar: O que determina o valor de uma
mercadoria? Responder a essa questão foi um dos propósitos fundamentais do
desenvolvimento da obra O Capital (1867)
de Karl Marx. Para esse autor, a resposta a essa questão passa necessariamente
pela constatação segundo a qual toda mercadoria é produto do trabalho humano e
que o tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção possui relação
direta com a determinação do seu valor.
A
mercadoria possui valor de uso e valor de troca. Como valor de uso ela se
caracteriza por ter utilidade, por servir para determinadas finalidades e como
valor de troca ela equivale a produto destinado a ser comercializado no
mercado, trocado por dinheiro. Toda mercadoria ao expressar seu valor de uso
mostra o que a distingue de outras mercadorias. Portanto,
No processo de troca, uma mercadoria possui um valor
equivalente ao de outras mercadorias. Uma casa pode valer 03 carros, 50
bicicletas, e assim por diante. Isto quer dizer que 50 bicicletas vale o mesmo
que 01 casa e 03 carros e 03 carros valem 50 bicicletas e 01 casa. O que se
deduz daí é que essas três mercadorias diferentes expressam algo que é igual.
Há algo comum e da mesma grandeza entre as três mercadorias e não é o valor de
uso, pois são mercadorias bem diferentes uma da outra, com utilidades
distintas. O que existe em comum entre estas três coisas é uma terceira coisa,
que não é o valor de uso e nem o valor de troca. Como valores de uso, são
objetos diferentes, com diferentes utilidades, o que significa que são
diferenças qualitativas. Como valores de troca, possuem – enquanto unidade –
valores diferentes, que é uma diferença quantitativa. Essa terceira coisa é o
trabalho humano. As mercadorias são produtos do trabalho humano e essa é sua
“propriedade comum” (Marx, 1988c) [...] (VIANA,
2012, p. 98-99).
Nessa
trajetória verifica-se que o que existe em
comum em todas as mercadorias é serem produtos do trabalho humano e, portanto contêm
determinada quantia de trabalho humano materializado, calculado em tempo de
trabalho gasto na sua produção e que define seu valor de troca. Contudo, não se
trata aqui de tempo de “trabalho concreto” despendido por trabalhadores
individualmente, mas sim tempo de “trabalho abstrato”, isto é, trabalho social
médio, pois,
o
trabalho que é medido dessa maneira, isto é, pelo tempo, aparece não como o
trabalho de diferentes sujeitos, mas, ao contrário, os indivíduos diversos que
trabalham aparecem como meros órgãos do trabalho. Ou seja, o trabalho, tal como
se apresenta em valores de troca, poderia expressar-se como trabalho humano
geral. Essa abstração do trabalho humano geral existe no trabalho médio, que
qualquer indivíduo médio de uma sociedade pode executar; um gasto produtivo
determinado de músculos, nervos, cérebro etc. É trabalho simples, ao qual
qualquer indivíduo médio pode ser adestrado, e que deve executar de uma ou de
outra forma. O caráter desse trabalho médio é, ele próprio, diferente em
diferentes países e épocas culturais, contudo aparece como dado em uma
determinada sociedade (MARX, 1982, p. 33).
Dessa maneira, no capitalismo todas as mercadorias possuem em
comum o fato de conterem em seu valor acréscimo de mais-valor materializado e
que pode ser medido pelo tempo de trabalho dispendido na sua produção. No
entanto, tal acréscimo de valor não é perceptível na aparência da mercadoria,
mas sim na sua essência que consiste em ser expressão de trabalho social e que
só se realiza e se revela na relação social entre mercadorias. O valor de uma
mercadoria consequentemente é determinado pela quantidade de tempo de trabalho
socialmente necessário para produzi-la (MARX, 1985; VIANA, 2012). Resta agora
sabermos de que jeito o trabalho acrescenta mais-valor à mercadoria. Na
tentativa de respondermos a essa questão é que nos deparamos com a forma como
as classes fundamentais do capitalismo se relacionam. Vejamos.
Ao longo do processo produtivo de mercadorias os custos gerados
pela aquisição de matérias-primas, ferramentas, maquinaria etc. (trabalho
morto) devem ser repassados, visto que o propósito essencial dessa produção é o
lucro. No entanto, tais elementos constituintes do trabalho morto não geram
valor, pois somente o trabalho vivo, a força de trabalho (mercadoria) é que, no
ato do seu consumo materializa o mais-valor, isto é acrescenta mais-valor no
processo produtivo. Aqui consiste a singularidade do modo de produção capitalista
de mercadorias. Nesse, o valor da força de trabalho também é determinado pelo
tempo de trabalho necessário para sua (re) produção e manutenção, ou seja, na
garantia dos meios de sobrevivência necessários para a reprodução do indivíduo
e da sua força de trabalho. Todavia, a burguesia não está interessada em uma
produção que apenas repasse os custos do trabalho morto e gere o necessário
para o pagamento de salários, pois dessa forma não há produção de capital, seu
desígnio fundamental. A classe burguesa só se interessa nessa reprodução da
força de trabalho porque nessa contêm o segredo da produção capitalista: ser
mercadoria que ao se consumir acrescenta mais-valor na produção. Logo, o
processo de produção capitalista de mercadorias equivale a um processo de
expropriação de horas de trabalho não remunerada, pois o montante do tempo de
trabalho que não o utilizado para tais repasses consiste em tempo para a
produção de mais-valor (exploração do trabalho).
Por ser marcado necessariamente pela exploração do trabalho e por
conta das contradições derivadas da própria acumulação
(concentração/centralização de capital, concorrência entre capitais, ampliação
do trabalho morto em detrimento do trabalho vivo, tendência decrescente da taxa
de lucro, maior disputa em torno do tempo de trabalho entre burguesia e
proletariado etc.)[4]
é que a produção capitalista é marcada pela luta de classes entre suas classes
fundamentais. Das necessidades derivadas de todo esse processo (maior controle
do proletariado, gerência e administração burocrática da fábrica, legislações
favoráveis à acumulação, repressão das lutas operárias etc.) e da própria dinâmica
da luta de classes (a questão do desemprego e do lumpemproletariado, por
exemplo) surge a crescente tendência de formação de novas classes sociais.
A
burocracia, por exemplo, é uma classe social que surge com o capitalismo, mas que no
primeiro regime de acumulação (o regime de acumulação extensivo) ela ainda se
apresentava de forma incipiente, numericamente reduzida e com papel político
pouco influente. Em algumas passagens da obra O 18 Brumário (1997) já é possível notar que Marx estava atento a
isso e percebia a expansão da burocracia estatal francesa, “esse poder executivo, com sua imensa organização
burocrática e militar, com sua engenhosa máquina do estado, abrangendo amplas
camadas com um exército de funcionários
totalizando meio milhão” (1997, p. 125. Itálicos meus). No entanto, essa percepção
ainda se apresentava de forma incipiente como não poderia deixar de ser.
Todavia, analisando a história do capitalismo a partir da sucessão dos regimes
de acumulação[5] nota-se um avanço numérico
dessa classe social, o surgimento de suas frações de classe (burocracia
partidária, sindical etc.), da sua força política, assim como de suas
ideologias (VIANA, 2012).
Sendo uma classe social a burocracia possui um modo de vida comum,
interesses derivados desse modo de vida que ora entram em aliança, ora entram
em conflito com interesses de outras classes sociais. Mas a que se vincula o
modo de vida de um burocrata?
O
modo de vida de um burocrata está intimamente ligado ao processo de controle,
gestão, domínio, direção e este é realizado diretamente ou via mediação de
regulamentos, regimentos, ofícios, formulários, tecnicismo, especialização,
culto à autoridade, conformismo, planificação, identificação com a
organização/empresa/instituição, reuniões, hierarquias, formalismo, sigilo
burocrático etc. Este é o seu papel na divisão social do trabalho da sociedade
capitalista (VIANA, 2012, p. 246).
No
caso da burocracia estatal seu modo de vida tem a especificidade de estar
vinculado com a função que exerce o estado na sociedade capitalista, assim como
seus interesses e enfrentamentos com outras classes derivam dessa função.
Portanto, para seguirmos é essencial uma discussão sobre o papel do Estado na
sociedade capitalista e para isso é importante não nos iludirmos com toda uma tradição
interpretativa no campo do “marxismo” que acabou por transformar o
par-conceitual “infra-estrutura e superestrutura” em uma espécie de “esquema
básico” do suposto materialismo histórico que, ao invés de contribuir para a
compreensão totalizante da sociedade, acaba por impedir tal compreensão(KORSCH,
2008; VIANA, 2007).
Pouquíssimas
vezes Marx recorreu a esse par conceitual e quando o fez no prefácio à Contribuição para a crítica
da economia política (1977) tratou de explicitar que suas observações não
passavam de uma “conclusão geral resumida” e que servia apenas como “fio
condutor”. Ao que tudo indica e aponta Althusser (1983), Marx utilizou esse
par-conceitual apenas para fins de “interesse teórico-pedagógico”.
O
capítulo intitulado Para uma teoria das
formas de regularização das relações sociais, presente na obra A consciência da história – ensaios sobre o
materialismo histórico dialético (2007), de Nildo Viana, apresenta uma
discussão importantíssima sobre toda essa problemática e que ilustra de forma
suficiente “a construção do texto de Marx” e a presença das “relações
existentes entre” “infra-estrutura e super-estrutura”:
[...]
elevação, constituição, correspondência, condicionamento, determinação,
contradição, alteração etc., e outras no interior delas: correspondência,
desenvolvimento, contradição, transformação etc. Isto comprova a existência de
uma relação concreta entre as duas noções, mas estas não são conceitos e sim
noções ou construtos que não manifestam nenhuma realidade, apenas ilustram uma
relação entre elementos desta (VIANA, 2007, p. 71).
A proposta de Viana
nesse capítulo vem preencher essa lacuna existente na teoria marxista da
sociedade, na qual o estado é parte integrante, dando conta de toda a
totalidade pretendida e expressa por Marx nas relações entre esse
par-conceitual. Tal proposta se realiza no desenvolvimento do conceito Formas de Regularização das Relações Sociais.
Assim como em Marx, tais formas englobam desde o estado (a forma de
regularização das relações sociais fundamental de toda sociedade classista) e
suas instituições estatais, passando pelas instituições privadas (escolas,
igrejas, partidos, sindicatos etc.), pelos regulamentos legais e o direito, até
a sociabilidade, as ideologias e a cultura em geral. No fundo não existe
nenhuma esfera social na qual o estado não exerça seu domínio. Ele é a
expressão máxima de toda alienação/heterogestão social. Assim, as formas de
regularização das relações sociais regularizam desde as relações de produção
até todo o conjunto das relações sociais derivadas do modo de produção (VIANA,
2007). Nessas sociedades, o estado é a principal forma de regularização das
relações sociais, pois ele deve e busca controlar todas as formas privadas de
regularização das relações sociais, visando influenciar no seu funcionamento e
no conjunto das relações de produção. Tudo isso com o propósito fundamental de
garantir a reprodução das relações sociais capitalistas, ele procura
regularizar a produção de capital e todas as demais formas de regularização das
relações sociais.
O Estado realiza toda
essa complexa e totalizante tarefa a partir de seres humanos reais: os
funcionários das formas de regularização das relações sociais (VIANA, 2007). Essas
também sofrem uma divisão social do trabalho improdutivo (que não produz
mais-valor) e assim gera um conjunto diverso de funcionários que darão
sustentação real a tais formas, ocupando e desenvolvendo da melhor forma
possível as instituições burguesas. Portanto, esses compõem novas classes
sociais, nas quais a burocracia (estatal, partidária, sindical, universitária
etc.) cumpre o papel de dirigente nessas instituições.
Resumindo,
as formas de regularização são determinadas relações sociais reais realizadas
por indivíduos reais que utilizam determinados meios materiais com o objetivo
de reproduzir as relações de produção dominantes e que são engendradas pelo
modo de produção dominante. Acontece que as contradições de classe do modo de
produção se reproduzem nestas formas de regularização. Estas também são
responsáveis pela formação de novas classes sociais que se envolvem na luta das
classes fundamentais e assim torna mais complexa a luta de classes (VIANA, 2007,
p. 76).
O conceito de formas de
regularização das relações sociais promove uma maior elucidação das relações
sociais que se estabelecem entre o modo de produção capitalista e as demais
formas de regularização das relações sociais capitalistas. Ao nos referirmos ao
estado capitalista estamos, portanto nos referindo a essa principal forma de
regularização das relações sociais que se concretiza no trabalho dirigente da
burocracia estatal. Vejamos, portanto qual a finalidade fundamental desse
trabalho dirigente.
O estado capitalista
deve ser compreendido como um instrumento complexo no qual contêm desde sua
origem um propósito fundamental, uma finalidade determinada. Tal finalidade foi
apresentada diversas vezes na teoria marxista do estado, a partir da
constatação segundo a qual o estado é um estado de classe, expressão dos
interesses da classe dominante e consequentemente não poderá servir aos
interesses do proletariado, classe antagônica à burguesia e a essa forma de
regularização das relações sociais (VIANA, 2003; POGREBINSCHI, 2009). O estado
sempre foi, pois é da sua essência, uma instituição que nasceu para tornar
regular a exploração e opressão de uma minoria proprietária sobre uma imensa
maioria desprovida de propriedade e, exatamente por isso, não se pode pensar na
possibilidade de sua utilização para garantir os interesses das classes
exploradas e desprivilegiadas conforme pretendem sociais democratas e
bolcheviques, pois sua finalidade exclusiva é tornar regular a acumulação
capitalista. Segundo Marx,
a
burguesia, afinal, com o estabelecimento da indústria moderna e do mercado
mundial, conquistou, para si própria, no estado representativo moderno,
autoridade política exclusiva. O poder executivo do estado moderno não passa de
um comitê para gerir os assuntos comuns de toda a burguesia (MARX e ENGELS,
1997, p. 12).
O caráter de classe de
um Estado se define pela sua determinação fundamental, isto é pelo modo de
produção de determinada sociedade. Portanto, no caso do modo de produção
capitalista o estado só pode ser um estado capitalista. As relações de produção
dominantes que são relações de classe é que formam o estado e “é a dominação de
classe na esfera da produção que constitui o estado e lhe determina [...] as
relações de produção capitalistas envolvem e subordinam o estado” (VIANA, 2003,
p. 28-29).
Nesse sentido é que
devemos entender o estado capitalista, ou conforme definiu Engels “o
capitalista coletivo ideal”, pois desde sua constituição em estado absolutista
ele interfere nas relações de produção e distribuição buscando garantir as condições
de reprodução das relações de produção capitalistas. É o estado o responsável
por garantir infraestrutura (estradas, ferrovias, hidrelétricas, parques
industriais etc.), por garantir empréstimos aos empresários, por adotar uma
política tributária favorável aos capitalistas e seus negócios, por salvar os
banqueiros transnacionais em períodos de recessão econômica, por “perdoar”
dívidas milionárias da burguesia (nacional e internacional) tornando-as públicas,
é ele o responsável por transferir na contemporaneidade boa parte das empresas
estatais altamente lucrativas para a iniciativa capitalista privada, assim como
é ele quem garante a manutenção da propriedade privada e da sociabilidade
capitalista, evitando o avanço e radicalização das lutas sociais, a partir do
controle e ordenação dos aparatos repressivos do estado e sua ferocidade, que
costuma bloquear qualquer tentativa de luta auto-organizada e,
fundamentalmente, as lutas com tendências anticapitalistas.
A questão da repressão
estatal também foi um dos temas frequentes em diversas passagens da obra de
Marx e que reforça o caráter burguês do estado capitalista. Sobre essa questão,
realmente, Marx, em
A luta de classes na França, referiu-se
à república burguesa de 1848 como: “ela não pode ser mais do que o domínio
aperfeiçoado e mais puramente desenvolvido de toda a classe burguesa... a
síntese da Restauração e da monarquia de julho. Tema também frequente nos
escritos de Marx sobre o assunto é o ponto em que essa forma de Estado chega a
ser repressiva e brutal tão logo seus sustentadores e beneficiários se sentem
ameaçados pelo proletariado. Com os dias de junho em Paris, a República,
escreveu Marx no mesmo texto, “surgia em sua forma pura, como o Estado cujo
propósito confesso é perpetuar o domínio do
capital e a escravidão do trabalho”; e “domínio burguês, isento de todas
as amarras, era transformado, ao mesmo tempo, inevitavelmente, em terrorismo
burguês”. No mesmo tom, Marx escreveu em A
guerra civil na França, 20 anos depois, que o tratamento dispensado aos communards pelo governo de Thiers
mostrava o que queria dizer “a vitória da ordem, justiça e civilização”: “A
civilização e a justiça da ordem burguesa surgem à luz do dia sempre que os
escravos e trabalhadores dessa ordem se levantam contra seus senhores. É então
que essa civilização e justiça revelam-se como indisfarçável selvageria e
implacável vingança” (MILIBAND, 1979, p. 74).
A
repressão é uma das principais formas de ação do Estado visando conter a luta
das classes exploradas para impedir a ruína das relações sociais burguesas.
Nesse sentido, o Estado é em si mesmo expressão da luta de classes,
demonstrando seu caráter burguês, bem como o papel da burocracia como classe
auxiliar da burguesia no processo de dominação. É no estado capitalista que se
revela o poder de classe da burguesia mediado pela burocracia estatal.
No
regime de acumulação integral, essa classe se apresenta como uma das classes
mais poderosas e perigosas para o proletariado, o lumpemproletariado e suas
lutas mais radicalizadas, visto que ela tem a “possibilidade de
usurpar revoluções proletárias ou proporcionar novo fôlego para o capitalismo,
ou, ainda, instituir uma nova forma de dominação de classe” (VIANA, 2012, p.
256). O crescimento da repressão estatal é uma tendência crescente desde a
crise do regime de acumulação conjugado e já prevista como condição essencial
para a manutenção da sociabilidade burguesa no regime de acumulação integral,
revelando o principal poder da burocracia estatal na contemporaneidade: sua
capacidade de impedir, com níveis elevadíssimos de repressão brutal, a
emergência e avanço da luta de classes e da contestação social[6]
que ameace a manutenção da sociabilidade burguesa. Em outras palavras, garantir
aquilo que lhe cabe enquanto classe social, isto é, as condições mais
apropriadas para a reprodução capitalista. Somente assim poderemos compreender
o estado capitalista, a que classes sociais ele essencialmente serve e porque
toda e qualquer luta anticapitalista deve necessariamente lutar pela destruição
completa do estado capitalista e de todas as demais instituições burguesas
(partidos, sindicatos etc.) que servem, assim como o estado, tão somente para
tornar regular a sociedade capitalista. Exemplo concreto disso é a inexistência
de nenhuma demonstração histórica que comprove o contrário do que aqui
afirmamos, isto é, que tais instituições contribuíram alguma vez com o combate
efetivo ao capitalismo.
Referências
bibliográficas:
ALTHUSSER,
Louis. Aparelhos ideológicos do Estado.
Rio de Janeiro: Graal, 1983.
BRAGA,
Lisandro. Classe em farrapos – acumulação
integral e expansão do lumpemproletariado. São Carlos, SP: Pedro e João
editores, 2013.
KORSCH, Karl. Marxismo
e filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
MAIA, Lucas. As
classes sociais em O Capital. Pará de Minas, MG: Virtual Books, 2011.
MARX, Karl
e ENGELS, Friedrich. A
ideologia alemã. São Paulo: Editora centauro, 1984.
____. O manifesto comunista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988.
____. O manifesto comunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
MARX,
Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes,
1977.
____. Para a crítica da economia política – salário, preço e Lucro; o
rendimento e suas fontes. São Paulo: Abril cultural, 1982.
____. O capital, Vol. 01. São Paulo: Nova cultural, 1985.
____. O 18 brumário. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
____. Os manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
____. Miséria da filosofia. São Paulo: Martin Claret, 2007.
____. A guerra civil na França. São Paulo: Expressão popular, 2008.
MILIBAND,
Ralf. Marxismo e política. Rio de
Janeiro: Zahar editores, 1979.
POGREBINSCHI,
Thamy. O enigma do político – Marx contra
a política moderna. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2009.
VIANA,
Nildo. Estado, democracia e cidadania – a
dinâmica da política institucional no capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé,
2003.
____.
A consciência da história – ensaios sobre
o materialismo histórico-dialético. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007b.
____.
A teoria das classes sociais em Karl
Marx. Florianópolis: Bookess, 2012.
* Cientista político e
sociólogo, professor de Teoria Política/UFMS e militante do Movimento Autogestionário/MovAut.
[1] Para isso utilizaremos de diversas citações das obras de tais
autores (Marx e Engels).
[2] Para constatar a existência de diversas classes sociais na obra de
Karl Marx Cf. (MARX, 1985; MARX, 2007; MARX, 1997; MARX, 2008; MARX & ENGELS, 1998; MARX
& ENGELS, 1984; VIANA, 2012).
[3]Nossa compreensão do que vem
a serem as classes fundamentais de um modo de produção (feudal, capitalista
etc.) se fundamenta na definição segundo a qual “as classes sociais
fundamentais são aquelas que são constituídas pelo modo de produção dominante,
tal como Marx deixou claro em várias passagens. Outras classes sociais são
aquelas ligadas às demais relações de produção ou às relações de produção
anteriores. Estes casos manifestam determinada divisão social do trabalho, na
qual as atividades produtivas e de apropriação estão presentes e distinguem as
classes sociais. Porém, isto não esgota a divisão social do trabalho. Esta se
estende para outras relações sociais, promovendo atividades específicas
voltadas para a reprodução das relações de produção. Sendo assim, as demais
classes são derivadas das relações de produção e se incluem no que Marx
denominou “superestrutura”, tal como o Estado, as formas “ideológicas”, etc.
formando as classes sociais improdutivas. Marx desenvolve isso de forma mais
profunda no caso do capitalismo, mas faz algumas breves referências a outros
modos de produção onde existiriam tais classes. No caso do capitalismo, as
referências são mais abundantes. Porém, resta saber o que determina a
existência dessas classes, já que não formam uma única classe social. Isto vai
depender de sua relação com o modo de produção dominante” (VIANA 2012, p.
67-68).
[4] Para uma melhor compreensão
da dinâmica da produção capitalista de mercadorias, suas tendências e contra
tendências, contradições, possibilidades etc. conferir a totalidade da obra O capital de Karl Marx.
[6] Nossa compreensão
sobre o conceito de contestação social, e que será utilizado ao longo desse
trabalho, acompanha a definição de Viana (2015), que deixa claro: “o conceito
de contestação social nos leva a pensar em relações sociais que produzem
contestação, em indivíduos e grupos contestadores, e nos próprios atos e formas
de contestação. Desta forma, podemos definir contestação social como uma
relação social marcada pela recusa por parte de alguns indivíduos ou grupos das
relações sociais estabelecidas. Assim, contestação pressupõe descontentamento
com determinadas relações sociais e motivos para isso, tal como exploração,
dominação, opressão, marginalização, violência etc. A contestação pressupõe o
que é contestado, que é o que é dominante, estabelecido, hegemônico etc.”
(VIANA, 2015, p. 98).
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