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sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Maio de 1968: Movimento Estudantil e Luta de Classes

MAIO DE 1968: MOVIMENTO ESTUDANTIL E LUTA DE CLASSES
MAY 1968: STUDENT MOVEMENT AND CLASS STRUGLE
Lisandro Braga[1]

Resumo: O presente texto discute o enfrentamento radical proporcionado por setores do movimento estudantil, em aliança com setores revolucionários do proletariado, à burocracia estatal, partidária e sindical que, auxiliando a burguesia, buscavam tornar regular uma nova ofensiva capitalista, na França em fins da década de 1960. Para isso buscaremos compreender a dinâmica da luta de classes, naquele episódio que ficou conhecido como o Maio de 1968, à luz de uma teoria marxista das classes sociais, quer dizer, levando em consideração o modo de vida das classes envolvidas nas lutas, os interesses derivados desse modo de vida e as alianças e oposições que as classes e grupos sociais estabeleceram com outras classes sociais. Dessa forma, pretendemos demonstrar que a burocracia (estatal, sindical e partidária) é uma classe social que auxiliou a dominação burguesa e, portanto, não contribuiu com a revolução proletária, estimulada pela luta cultural de setores radicais do movimento estudantil francês, pelo contrário, fez de tudo para impedir seu avanço na direção autogestionária.
Palavras-chave: Regime de acumulação. Luta de classes. Movimento estudantil radical. Contrarrevolução burocrática.

Abstract: This paper discusses the radical confrontation provided by the student movement sectors, in alliance with revolutionary proletarian sectors, the state, party and union bureaucracy, helping the bourgeoisie sought to make regular new capitalist offensive in France in the late of 1960. For this we will seek to understand the dynamics of the class struggle, that episode that became known as the May 1968, the light of a Marxist theory of social classes, that is, taking into account the way of life of the classes involved in fights the interests derived from this way of life and alliances and oppositions that classes and social groups have established with other social classes. Thus, we intend to demonstrate that the bureaucracy (government, trade union and party) is a social class that helped bourgeois rule and therefore did not contribute to the proletarian revolution, stimulated by cultural struggle of radical sectors of the French student movement, on the contrary, He did everything to prevent their advance in self-managed way.
Key words: Accumulation regime. Class struggle. Radical student movement. Against bureaucratic revolution.

Acumulação Conjugada e Luta de Classes
A luta de classes perpassa todas as relações sociais da sociedade capitalista, ela está presente tanto no modo de produção, quanto na sociedade civil[2], nas relações de exploração internacionais e no estado, isto é, nas formas estatais de regularização das relações sociais capitalistas. No entanto, as formas fundamentais da luta de classes no capitalismo são encadeadas no modo de produção e na sociedade civil. No caso da primeira, trata-se da luta travada no processo produtivo, que no capitalismo equivale à produção capitalista de mercadorias, produção de mais-valor. Nessa luta, o que está em jogo é o controle sobre o tempo de trabalho, pois à burguesia interessa ampliar o tempo de trabalho destinado à produção de mais-valor, enquanto para o proletariado interessa a diminuição desse tempo, que é o mesmo que ampliar o tempo de trabalho destinado ao seu salário, à melhoria do seu consumo, à sua qualidade de vida etc.
No fundo, trata-se de interesses inconciliáveis, pois se de imediato interessa ao proletariado apenas melhorar sua condição de existência, diminuindo a quantidade de sangue sugada pelo vampiro capitalista, em outros diversos momentos dessa história seu interesse apontou para a superação dessas relações sociais (a destruição completa do vampiro), visto que essas classes se enfrentaram violentamente em distintas ocasiões, e tal enfrentamento gerou e gera alterações, tanto no âmbito da produção, quanto no das formas de regularização das relações sociais. Em momentos de radicalidade, esse enfrentamento ameaçou concretamente a sociabilidade burguesa que se viu suplantada em alguns espaços sociais (fábricas, universidades, bairros, cidades etc.) por novas formas de regularização social, típicas de uma nova sociabilidade, nascida da luta de classes: os conselhos operários e sua prática autogestionária. Essa é uma tendência histórica revolucionária, presente em todos os regimes de acumulação.
Na sociedade civil a luta de classes se expressa nas lutas culturais no interior das instituições burguesas, tais como na universidade, nos movimentos estudantis em geral, nos bairros, na vida cotidiana das cidades e do campo, nos movimentos sociais, nos coletivos políticos revolucionários etc. Tais lutas não se restringem às lutas políticas institucionais, majoritariamente não se direcionam a conquista do poder do estado e nem por isso deixam de expressar a luta de classes na sociedade civil. A insistência da esquerda tradicional em dirigir, a partir das instituições burguesas, tais como os partidos políticos, essas lutas culturais na direção do estado revela que a mesma é “expressão dos interesses de classes que a anima. Daí sua concepção de partido e consciência exterior (leninismo, social-democracia), revelando sua vocação dirigista e burocrática, expressão dos interesses de classe da burocracia” (VIANA, 2003, p. 66). A totalidade da luta de classes na produção e na sociedade civil são as fontes de alterações nos regimes de acumulação.
O regime de acumulação conjugado insurge no período pós-guerra e se sustenta até a década de 1980. Foi composto pelo fordismo (processo de valorização), pelo estado integracionista (forma estatal) e pelo imperialismo transnacional (forma de exploração internacional). Enquanto o taylorismo expressou uma reação burguesa à tendência declinante da taxa de lucro através da racionalização científica (maior controle) do processo de trabalho, o fordismo foi expressão do aprimoramento de algumas tendências tecnológicas e organizacionais, assim como um aprofundamento do processo de racionalização do trabalho inaugurado por Taylor, e uma busca de extração de mais-valor relativo via uso de tecnologia. Deste modo,
enquanto Taylor buscava aumentar a produtividade via organização (controle e gerência) do processo de trabalho, Ford ia além e buscava aumentar a produtividade com o uso de novas tecnologias que determinam o ritmo e a intensidade do trabalho. Isto, sem dúvida, não só proporcionava e incentivava a produção em massa, como exigia ela e não tinha aplicabilidade fora dela, pois aumentava os custos de produção (derivado do uso de novas tecnologias) e a tecnologia aplicada proporcionava a produção em massa, o que inviabilizava seu uso em produção de pequena escala. A ampliação das empresas oligopolistas era pré-condição para generalização do fordismo (VIANA, 2003, p. 71).
Concretamente, não existem diferenças fundamentais entre o taylorismo e as demais formas de organização do trabalho (fordismo, toyotismo e similiares), pois o que ocorre é que essa foi a primeira estratégia do capital na batalha em torno do tempo de trabalho produtor de mais-valor relativo e que serviu de fundamento para todas as demais formas de organização do trabalho posteriores. Portanto, de acordo com Neto
o fordismo caracteriza o que poderíamos chamar de socialização da proposta de Taylor, pois enquanto este procurava administrar a forma de execução de cada trabalho individual, o fordismo realiza isto de forma coletiva, ou seja, a administração pelo capital da forma de execução das tarefas individuais se dá de uma forma coletiva, pela via da esteira (1989, p. 36).
Essa forma organizacional do trabalho intensificava os ritmos da produção e, por conseguinte, da exploração do proletariado, abrindo brechas para uma maior mobilização, contestação e resistência dessa classe social, e é por isso que ela precisou vir acompanhada de artimanhas para impedir esses riscos no ambiente de trabalho. Para cumprir esse propósito foi criado um sistema compensatório, com aumento salarial por aumento de produtividade, que garantia a estabilidade na fábrica e servia de “incentivo material” aos demais operários.  A ampliação dos gastos com salários e tecnologia era uma necessidade do fordismo que exigia alterações nas relações de exploração internacional. Tais alterações foram fornecidas pelos resultados da 2ª guerra mundial: o imperialismo transnacional estadunidense (VIANA, 2003). A partir daí, os EUA passaram a se comportar
como banqueiro do mundo em troca de abertura dos mercados de capital e de mercadorias ao poder das grandes corporações. Sob essa proteção, o fordismo se disseminou desigualmente, à medida que cada Estado procurava seu próprio modo de administração das relações de trabalho, da política monetária e fiscal, das estratégias de bem-estar e de investimento público, limitados internamente apenas pela situação das relações de classe e, externamente, somente pela posição hierárquica na economia mundial e pela taxa de câmbio fixada com base no dólar. Assim, a expansão internacional do fordismo ocorreu numa conjuntura particular de regulamentação político-econômica mundial e uma configuração geopolítica em que os Estados Unidos dominavam por meio de um sistema bem distinto de alianças militares e relações de poder (HARVEY, 2008a, 131-132).
De acordo com as conclusões de Viana,                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                
aqui temos a razão de ser da expansão do fordismo: a produção capitalista após 1945 visa conter suas contradições, buscando integrar a classe operária no capitalismo e aumentando a produção dos meios de consumo. A partir dessa época, os investimentos são crescentemente investidos na produção de meios de consumo em detrimento da produção de meios de produção (o que não significa, de forma alguma, que tenha diminuído os investimentos na produção de meios de produção, mas sim que houve um deslocamento de investimento para a produção de meios de consumo, o que significou um aumento proporcional deste em relação à produção de meios de produção, que, caso não ocorresse, geraria um ritmo ainda mais acelerado de desenvolvimento tecnológico que aumentaria excessivamente a composição orgânica do capital (2003, p. 71-72).
Apesar da “integração” da classe operária ao consumo, a contestação social da totalidade da acumulação conjugada tendeu à ampliação e formação de um forte movimento político-cultural de caráter internacional que, juntamente com a dificuldade de conter as contradições essenciais do capitalismo, levou à crise desse regime de acumulação[3]. No final da década de 1960 e início da década de 1970, tal regime de acumulação já apresentava sérios sinais de esgotamento que foram ainda mais intensificados pela radicalização da luta de classes, que atingiu diversos países, com destaque para o Maio de 68 francês.
Deste modo, não tardou muito para que a luta de classes viesse a desgastar e comprometer a manutenção do regime de acumulação conjugado em sua totalidade. Se por um lado, para manter-se, esse regime de acumulação se viu obrigado a integrar parcela da classe operária no mundo do consumo através de melhores salários, conquistados a partir de um maior poder de barganha sindical, maior estabilidade no emprego, seguridade social etc., por outro, uma parcela expressiva da classe operária se via excluída de tais melhorias e passava a alimentar grandes descontentamentos sociais (BIHR, 2010). Como evidencia Harvey (2008a), apenas certos setores da economia e de certos países, imperialistas, diga-se de passagem, se beneficiavam dos frutos da negociação fordista, outros vários setores se viam excluídos e estavam submetidos a atividades de alto risco, baixos salários, pouca garantia de estabilidade no emprego e quase nenhum “benefício fordista”. Criava-se, portanto, uma “fórmula segura para produzir insatisfação”:
As desigualdades resultantes produziram sérias tensões sociais e fortes movimentos sociais por parte dos excluídos – movimentos que giravam em torno da maneira pela qual a raça, o gênero e a origem étnica costumavam determinar quem tinha ou não acesso a emprego privilegiado. Essas desigualdades eram particularmente difíceis de manter diante do aumento das expectativas, alimentadas em parte por todos os artifícios aplicados à criação de necessidades e à produção de um novo tipo de sociedade de consumo. Sem acesso ao trabalho privilegiado da produção de massa, amplos segmentos da força de trabalho também não tinham acesso às tão louvadas alegrias do consumo de massa [...] O movimento dos direitos civis nos Estados Unidos se tornou uma raiva revolucionária que abalou as grandes cidades. O surgimento de mulheres como assalariadas mal-remuneradas foi acompanhado por um movimento feminista igualmente vigoroso. E o choque da descoberta de uma terrível pobreza em meio à crescente afluência [...] gerou fortes contramovimentos de descontentamento com os supostos benefícios do fordismo (HARVEY, 2008a, p. 132).
As transformações nas relações de trabalho impostas pela organização fordista do trabalho acarretou uma divisão na classe operária, pois de um lado encontrava-se a camada de operários qualificados, que compunha uma espécie de “aristocracia operária”, formada pela burocracia sindical, integrada às concessões fordistas e que representava apenas seus interesses de classe, do outro lado estava o crescente contingente operário composto pelos trabalhadores desqualificados, obrigados a suportarem toda a exploração da produção capitalista, praticamente excluídos das políticas integracionistas e que, portanto não era representado pela burocracia sindical[4]. Percebe-se logo que, aproximadamente entre 1945 a 1968, nos ciclos de constituição e consolidação do regime de acumulação conjugado, as políticas de integração do proletariado ao consumo, aliadas a integração dos partidos e sindicatos, juntamente com essas divisões da classe operária, promoveu o recuo do movimento operário revolucionário. No entanto, a partir do final da década de 1960 tal regime de acumulação ingressa no seu ciclo de dissolução, experimentando diversas crises que, aliadas com o retorno das lutas operárias e de outros grupos sociais com tendências radicais, culminara com seu esgotamento e substituição pelo regime de acumulação integral (VIANA, 2014).
Os Estágios das Lutas Operárias e a Luta Cultural Estudantil
O regime de acumulação conjugado vivenciou os três estágios das lutas operárias, assim como de outras lutas sociais, conforme compreendeu Karl Jensen em seu artigo intitulado A luta operária e os limites do autonomismo (2014). Segundo esse autor, as lutas operárias e de outros grupos sociais tendem a percorrer três estágios: o das lutas espontâneas, das lutas autônomas e das lutas autogestionárias (revolucionárias).
No caso das lutas operárias, as lutas espontâneas são aquelas praticadas cotidianamente no ambiente de trabalho e revelam uma recusa do capital. Essas se manifestaram em diversas ações em toda a história do capitalismo e no regime de acumulação conjugado não foi distinto. As formas de valorização fordistas são caracterizadas por uma arrebatadora alienação do trabalho que tendem a fazer com que o operário negue, sempre quando pode essa exploração através do trabalho moroso, do absenteísmo, da sabotagem etc. e passa a investir contra as mercadorias produzidas, contra as ferramentas e maquinaria envolvida nesse processo exploratório, vendo nisso uma reação a tal condição. Analisando esse período, Bihr revela que
esse tipo de revolta toma formas fundamentalmente individuais (e mesmo individualista) e de algum modo defensivas, cujo denominador comum é a fuga do trabalho e da produção: absenteísmo e turn-over[5] crescentes, busca de “pequenos trabalhos” ocasionais, e até mesmo ruptura com a condição de assalariado e volta às formas pré-capitalistas de produção (pequena produção mercantil, artesanal e/ou agrícola). As reivindicações dominantes são então as de autonomia individual e pelo fim do trabalho (2010, p. 60-61).
Nesse estágio das lutas a recusa ao capital é realizada sem uma consciência revolucionária, se restringindo a uma luta individual e cotidiana contra o capital (JENSEN, 2014). No entanto, as lutas operárias desse período não se limitaram apenas a esse estágio, pelo contrário percorreram todos os outros. Passada a euforia com as vantagens das concessões típicas desse período, a classe operária, formada sob a vigência dos processos de valorização fordistas, se rebela e uma onda de lutas operárias se desencadeia questionando toda a brutal alienação do trabalho (heterogestão), expressa pelas relações de produção capitalistas:
formada no quadro do próprio fordismo, esta não estava disposta a ‘perder sua vida para ganha-la’: a trocar um trabalho e uma existência desprovidos de sentido pelo simples crescimento de seu ‘poder de compra’, a privação de ser por um excedente em ter. Em poucas palavras, a se satisfazer com os termos do compromisso fordista[6] concluído por sua antecessora (BIHR, 2010, p. 60).
Juntamente com isso, o capitalismo passa a experimentar sua inevitável crise de acumulação provocada pela queda da taxa de lucro[7]. Queda essa que constrange o estado capitalista a tomar uma série de medidas com o intuito de combatê-la, o que remete ao aprofundamento dos processos de valorização (intensificação da tecnologia na produção, maior disciplinamento da força de trabalho, perda absoluta do proletariado sob o controle do seu trabalho, execução torturante de tarefas cotidianas extremamente repetitivas etc.) e à redução dos investimentos estatais, principalmente em políticas sociais e serviços públicos. Não obstante, a efetivação de tais políticas - manifestação das contra tendências capitalistas - consequentemente amplia o descontentamento social do proletariado e, também, de outros grupos sociais que entram na luta. Esse é o caso do movimento estudantil que, aliado ao proletariado, também protagonizara episódios de grande radicalidade nas lutas sociais em alguns países europeus, com destaque para a França.
A partir do final da década de 1960 as lutas operárias ingressaram no seu segundo estágio, o das lutas autônomas. Duas características essenciais dessas lutas são a ação coletiva (reuniões, assembleias, panfletagem, piquetes, greves etc.) e a recusa da (falsa) representatividade da burocracia partidária/sindical e suas práticas reformistas e vanguardistas (leninistas). Nesse estágio
a consciência de classe, apesar de suas contradições, já sabe que sua ação é uma recusa e a associação operária se forma. Devido a isto, as lutas operárias autônomas significam uma prática coletiva e contestadora que assume um nível de radicalidade elevado. Daí a reação burguesa e burocrática, bem como o conflito e luta encarniçada, ou seja, a radicalização da luta de classes (JENSEN, 2014, p. 07).
A greve geral[8] que assola a França nos meses de maio/junho de 1968 e toda a dinâmica que as lutas operárias assumem nesse contexto é uma expressão significativa desse estágio das lutas e de sua imensa radicalidade. No entanto, é necessário compreendê-la inserida na totalidade da luta de classes desse período, visto que a radicalidade das lutas operárias foi, em determinada medida, impulsionadas pela radicalidade do movimento estudantil e pela influência de suas lutas culturais[9] revolucionárias, junto a setores do proletariado francês:
Para muitos os dias de maio de Paris devem ter sido um acontecimento essencialmente noturno: batalhas noturnas com a CRS (Companhia Republicana de Segurança – A1), barricadas noturnas, debates noturnos nos grandes anfiteatros. Mas este era apenas um lado da moeda. Enquanto alguns discutiam até tarde da noite na Sorbonne, outros iam cedo pra cama, para poderem distribuir panfletos pela manhã nos portões de fábrica e na periferia. Panfletos esses que tinham que ser planejados, datilografados, reproduzidos, e cuja distribuição tinha que ser cuidadosamente organizada [...] E não foi pequena a sua contribuição para dar uma forma articulada à nova consciência revolucionária [...] A ideia geral era estabelecer laços com grupos de trabalhadores, por menores que fossem, que compartilhassem a visão revolucionária-libertária desse grupo de estudantes. Após estabelecido contato, trabalhadores e estudantes cooperaram na formulação conjunta dos panfletos[...] Produzido um panfleto, ele seria então distribuído conjuntamente pelos trabalhadores e estudantes do lado de fora da fábrica [...] O que era preciso, nesse exato momento, era um rápido e autônomo desenvolvimento da classe trabalhadora, a organização de comitês de greves eleitos que fizessem a ligação entre os sindicalizados e não sindicalizados em todas as empresas e indústrias em greve, reuniões regulares dos grevistas de modo que as decisões fundamentais permanecessem nas mãos do trabalhador comum, comitês de defesa dos trabalhadores para defender os piquetes das intimidações da polícia (relação comum entre piqueteiros explorados e a repressão estatal), um dialogo constante com os estudantes revolucionários com o objetivo de restituir à própria classe trabalhadora sua própria tradição de democracia direta e sua própria aspiração à autogestão, que foi usurpada pelos burocratas dos sindicatos e partidos políticos” (BRINTON, 2003, p. 63-66; grifo meu).
Uma multiplicidade de determinações possibilita apreender as razões para a emergência de um movimento estudantil com tendências radicais na França (assim como em diversos outros países[10]) durante a vigência do regime de acumulação conjugado. Um conjunto de acontecimentos históricos promoveu uma maior conscientização do movimento estudantil em todo o mundo, dentre eles se destacam as guerras imperialistas (Vietnã e outras ocupações na África), as lutas armadas contra as ditaduras militares na América Latina, a luta dos negros pelos direitos civis nos EUA, a revolução cultural na China etc. Juntamente com a consciência derivada desses acontecimentos, os estudantes passaram a perceber a quem serve a educação universitária, visto que o regime de acumulação conjugado exigia uma forma educacional adequada tão somente aos desígnios da acumulação de capital e suas formas de regularização, e por isso trataram de realizar uma crítica radical a essa “sinistra conspiração” [11].
O estado integracionista francês havia promovido uma expansão[12] do ensino superior em todo o país objetivando proporcionar quadros especializados de mão-de-obra adequada para a acumulação conjugada, isto é, um modelo de ensino cada vez mais tecnicista e burocrático. No entanto, com a crise da acumulação conjugada, a universidade francesa se vê atacada por uma série de reformas, com destaque para o plano Fouchet e o V plano, que visavam à redução de custos e, consequentemente, provocaram uma maior precarização da condição estudantil, tais como perda de bolsas de estudo, falta de moradia universitária, restrição de acesso via vestibular, redução do tempo para graduação, especialização tecnicista etc. Aliado a essa condição estudantil precária, os jovens estudantes ainda tinham que se preocupar com a ameaça do desemprego, o receio de não se inserirem no mercado de trabalho, uma ressocialização e perspectiva de futuro comprometida etc. (VIANA, 2014; 2015). Em síntese, motivos para a contestação social juvenil/estudantil é o que não faltava.
Outra determinação de ordem cultural foi decisiva para o avanço e radicalização das lutas estudantis e, posteriormente, operárias. Trata-se da cultura contestadora já existente na sociedade francesa e que foi amplamente recuperada e divulgada nesse contexto de contestação radical da sociedade capitalista:
As teses de Socialismo ou Barbárie, da Internacional Situacionista (especialmente a crítica do cotidiano e da sociedade espetacular, a ideia de revolução total e dos conselhos operários), de Henri Lefebvre (crítico da “sociedade burocrática de consumo dirigido”), além das obras de Daniel Guérin, André Gorz, Jean-Paul Sartre (este com grande influência direta no movimento estudantil), entre outros, inclusive que mais tarde serão adicionados no bojo do próprio movimento (como é o caso de Marcuse e da retomada dos pensadores anarquistas e comunistas de conselhos, bem como o maoísmo com ares esquerdistas da época, devido influência da revolução cultural chinesa), formam uma cultura contestadora que irá fornecer armas para um grande contingente de estudantes radicalizados deste período. Dentro dessa cultura contestadora, a ideia de autogestão estava presente em várias de suas tendências, não só nos grupos políticos e suas produções culturais citadas, mas em autores como Guérin, que buscava unir marxismo e anarquismo, André Gorz, que inclusive previu em 1967 a rebelião estudantil no ano seguinte (GORZ, 1969) e outros que pregavam a revolução total (LEFEBVRE, 1992; MARCUSE, 1999; DEBORD, 1997) [...] (VIANA, 2015, p. 14).
 A aliança estudantil/operária realizada com vigor pelos setores mais radicais, tanto do movimento estudantil quanto do movimento operário, veio acompanhada por uma dura oposição de classe: tanto a burocracia sindical da CGT (Central Geral dos Trabalhadores) quanto a burocracia partidária do PCF (Partido Comunista Francês) não via com bons olhos o desenvolvimento de um movimento operário autônomo. É claro que isso se deve ao fato, como já mencionamos anteriormente, de os interesses de classe do proletariado revolucionário não coincidirem com os interesses de classe da burocracia sindical/partidária (classes auxiliares da burguesia) e por isso tal classe social não mediu esforços para tentar barrar[13] essa aliança ameaçadora (BRINTON, 2003). A análise realizada por Thomas deixa claro o papel conservador da burocracia (CGT e PCF):
Entre maio e junho de 1968 o poder burguês francês sofreu uma das maiores contestações de sua história: 10 milhões de operários, a grande maioria da força de trabalho da França aderiu à greve geral e o movimento estudantil enfrentava o regime nas ruas [...] O principal aliado de De Gaulle (presidente francês) na crise aberta com a insurgência operária e estudantil foi nada menos que o Partido Comunista Francês e a CGT, que se bem havia perdido toda autoridade no movimento estudantil, conservava a direção dos principais batalhões do movimento operário (THOMAS, 2008, p. 69; grifo meu).
A percepção de que a burocracia é uma classe auxiliar da burguesia, aliada ao avanço da consciência revolucionária, possibilitou uma radical contestação dessas instituições burocráticas e abriu caminho para a busca de uma alternativa, isto é, as lutas autogestionárias e sua utopia concreta: a autogestão social (VIANA, 2014; 2015). Esse é o último estágio das lutas operárias, estágio no qual o proletariado não apenas contesta e recusa a burguesia e a burocracia como classe dirigente da sociedade capitalista, como também assume o controle revolucionário da fábrica e da sociedade como um todo. Nesse estágio se encontra presente a consciência e a ação revolucionária em direção à construção da sociedade autogerida (o reino da liberdade) e nele
a recusa do capital e da burocracia vem acompanhada pela associação coletiva que passa a autogerir as relações de trabalho e o conjunto das relações sociais. O combate ao capital e ao estado é acompanhado da consciência de que eles devem ser destruídos e que em seu lugar somente a autogestão pode garantir novas relações sociais, igualitárias. Nasce a consciência de um objetivo: a revolução social, o que pressupõe uma visão da totalidade das relações sociais e da articulação do movimento operário no sentido de generalizar o processo autogestionário. É imprescindível a percepção disto, pois o comunismo, tal como colocou Marx, não surge da mesma forma que o capitalismo, através do desenvolvimento da propriedade, e sim do domínio consciente dos seres humanos sobre sua vida social, ou seja, sem consciência revolucionária não é possível uma sociedade autogerida (JENSEN, 2014, p. 08).
Está claro para nós que o movimento operário, bem como o movimento estudantil francês não é um todo homogêneo, visto que somente alguns dos seus setores avançaram em direção à consciência e prática revolucionária e não a sua totalidade. Contudo, tais setores atingiram o estágio das lutas revolucionárias, visto que milhares de universidades e fábricas estiveram sob o controle dos conselhos estudantis/operários, a ideia de autogestão social ganhou terreno e suscitou um projeto autogestionário de sociedade: “a contestação total gerou um projeto de transformação total” (VIANA, 2015). Confirmou-se, assim, a tendência histórica do surgimento de experiências comunistas embrionárias no regime de acumulação conjugado, pois a França, mais uma vez, assim como na Comuna de Paris de 1871, esteve assombrada e ameaçada pelo espectro da autogestão social (comunismo). De acordo com o historiador João Alberto da Costa Pinto,
nunca uma potência capitalista estivera sob ameaça tão grave de destruição de suas instituições políticas. Estudantes e trabalhadores em voz uníssona recusaram-se durante mais de um mês a qualquer diálogo com as representações políticas tradicionais nas negociações entre capital e trabalho no capitalismo. Estudantes e trabalhadores generalizaram aquilo que Karl Marx definia como o “poder social”, com a grande recusa do movimento social as instituições capitalistas desabavam a olhos vistos na sua completa vacuidade de sentido histórico. Nem partidos, nem sindicatos, nem o parlamento ou qualquer outra agência governamental podia assumir-se como porta-voz da colossal manifestação social que varria as ruas do país. Da comuna de estudantes e trabalhadores definiram-se práticas sociais de novo tipo, de uma solidariedade radical nunca antes vista nessa proporção e magnitude na história das lutas anticapitalistas do século XX [...] O Maio de 1968 representa fundamentalmente as possibilidades societárias da autogestão generalizada. Representa, portanto, a luta pela supressão das práticas institucionais do modo de produção capitalista pela organização social de práticas institucionais de novo tipo, centradas na solidariedade dos trabalhadores, o poder político de novo tipo nascido nessas práticas de recusa definindo-se como poder social. O Maio de 1968 apontou como realidade concreta a sociedade comunista. Esse é o real sentido histórico do Maio de 1968, não uma manifestação estudantil que explodia contra as expressões formais da imaginação e da consciência alienada de estudantes e trabalhadores na sociedade capitalista. Não foi apenas uma “recusa” ou o “é proibido proibir” reclamado contra as instituições da repressão social, o efetivo sentido histórico dos acontecimentos do Maio de 1968 deu-se pelas práticas cotidianas da auto-organização dos trabalhadores e estudantes franceses como a negação absoluta do capitalismo e a afirmação da materialidade concreta da ordem comunista (PINTO, 2008, p. 01-02).
Sabemos que o avanço da tendência revolucionária depende de uma série de fatores, dentre eles, o essencial é a generalização da autogestão social, o que depende da correlação de forças nos enfrentamentos entre classes antagônicas, alianças duradouras entre classes e grupos revolucionários etc. A contratendência é um fator importante e que explica a dificuldade para generalizar a luta revolucionária, visto que a ação de outras classes sociais, principalmente a repressão estatal, emperra o avanço de tais lutas que, ao não se concretizarem, tendem a retrocederem para os estágios anteriores (JENSEN, 2015).  Foi isso o que ocorreu em diversas experiências autogestionárias históricas, inclusive no Maio de 68 na França, pois, do contrário, se as lutas operárias como um todo estivessem atingido o estágio autogestionário, a Europa teria experimentado uma revolução proletária, mas infelizmente esse, ainda, não foi o caso.

Palavras Finais
Uma série de medidas foi tomada pela burocracia estatal em aliança com a burocracia partidária/sindical (PCF e CGT, principalmente), dentre elas a que mais surtiu efeito foi a de promover uma divisão do movimento operário para posteriormente reprimir duramente seus setores mais radicalizados. Os primeiros dias de junho de 1968 experimentaram verdadeiras batalhas campais nas ruas e nas fábricas ocupadas e controladas pelos operários. A pujante resistência proletária, que mesmo após sofrerem a desocupação das fábricas, por diversas vezes voltavam a ser ocupada e auto-organizada pelos próprios operários, auxiliados pelos estudantes, foi derrotada com o uso de um verdadeiro aparato de guerra, contando com o uso de fuzis e granadas, visto que a repressão já não obtinha resultado apenas com balas de borracha e bombas de gás lacrimogênio. Muitos foram os operários e estudantes que ficaram feridos, tiveram partes do corpo, como mãos, pernas e pés arrancados pela explosão de granadas e vários outros assassinados a tiros e houve até mesmo os que morreram afogados na tentativa de fugir da repressão policial. Segundo Thomas,
naqueles dias é que foram assassinados pelas mãos da polícia e das forças de repressão Gilles Tautin, secundarista, que se afoga no Rio Siene, próximo da fábrica Renault de Flins enquanto tentava escapar da polícia, Philippe Mathérion que morre em uma barricada do Bairro Latino e Pierre Beylot e Henrin Blanchet, operários da Peugeot em Sochaux. As jornadas do dia 11 e 12 são extremamente violentas, tanto nas fábricas ainda em greve como no interior (THOMAS, 2008, p. 66).
Após o esmagamento do movimento operário/estudantil francês o capitalismo retorna a sua normalidade e um novo ciclo de refluxo da luta de classes se instala. Nesse primeiro momento após o refluxo, houve um reforço da dominação capitalista que fez surgir diversas iniciativas visando combater a crise de acumulação. Esse foi o caso da Comissão Trilateral e suas recomendações. Essas representavam um esforço tanto político-econômico quanto ideológico objetivando ofuscar as verdadeiras pretensões dessa nova ofensiva capitalista que estava por vir e suas previsíveis consequências para as classes exploradas de todo o mundo. Apresentavam-se como projeto burguês para resolver a crise ainda no interior do regime de acumulação conjugado, mas como isso não ocorreu, a solução concreta, portanto passou pela construção de um novo regime de acumulação: o regime de acumulação integral (VIANA, 2009). Contudo, é interessante perceber que o conjunto de recomendações e medidas almejadas pela Comissão Trilateral já continha os germes do que viria a constituir as formas do regime de acumulação integral. Dentre muitas, as que mais se destacam é a que prevê o aumento expressivo do lumpemproletariado (principalmente nos países de capitalismo subordinado) e a necessidade de um estado policial repressor[14]:
quanto mais a erradicação da pobreza for relegada a um futuro indefinidamente longínquo, mais se considerará a repressão política como uma tarefa de longo prazo. Porque só a repressão política é que permite uma longa convivência com a pobreza. O Estado-Nação anterior é assim substituído pelo Estado autoritário policial [...] Por conseguinte, começa-se a falar de uma “nova democracia”, que é simplesmente a declaração sistemática do fim da democracia liberal. A nova democracia é o estado policial (HINKELAMMERT, 1979, p. 103).
 Parece-nos que a Comissão Trilateral estava mais certa da necessidade desse estado policial nos países de capitalismo subordinado[15], no entanto a acumulação integral representaria também um aumento da exploração e precarização do trabalho, do avanço da pobreza, da expansão do lumpemproletariado e, consequentemente, das tensões sociais ainda nos países imperialistas. A percepção posterior disso fez soar o alerta das autoridades dos países imperialistas que, juntamente com o espectro da autogestão social que assombrou a Europa no final da década de 1960, passou a fortalecer seus aparatos repressivos, transformando-os em estados policiais violentíssimos. Eis aqui uma prefiguração do estado neoliberal, mas essa já é outra história.
Referências
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BIHR, Alain. Da grande noite à alternativa – o movimento operário europeu em crise. São Paulo: Boitempo, 2010.
____. Maio-junho de 1968 na França – o epicentro de uma crise de hegemonia (parte I). Revista Mediações. V. 12, n. 02, jul./dez. de 2004.
BRINTON, Maurice.  Paris: maio de 68. São Paulo: Conrad Livros, 2003.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
HINKELAMMERT, Franz J. O credo econômico da comissão trilateral. Em: ASSMANN, Hugo (org.). A trilateral – nova fase do capitalismo mundial. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1979.
JENSEN, Karl. A luta operária e os limites do autonomismo. Revista Marxismo e Autogestão. Ano 01, número 02, jul./dez. 2014.
NETO, Benedito. Marx, Taylor, Ford. São Paulo: Brasiliense, 1989.
PANNEKOEK, Anton. O sindicalismo. Em: https://www.marxists.org/portugues/pannekoe/1936/mes/sindicalismo.htm Acessado em: 09/02/2014.
PINTO, João Alberto. França: lutas sociais anticapitalistas no maio de 1968. Revista Espaço Acadêmico. Número 85, junho de 2008.
THOMAS, Jean Baptiste. Ce n’est qu’un début, continuons le combat!. Em: VIGNA, X. et al (orgs.). Cuando obreiros y estudiantes desafiaron al poder. Buenos Aires: Ediciones IPS, 2008.
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____. Luta cultural e propaganda revolucionária. Revista Enfrentamento. Ano 02, número 03, jul./dez. de 2007.
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____. Juventude, contestação e autogestão. Em: https://www.academia.edu/2402673/Juventude_Contesta%C3%A7%C3%A3o_e_Autogest%C3%A3o Acessado em 04/02/2015.
VIGNA, Xavier. Las huelgas obreras de mayo-junio de 1968. Em: VIGNA, Xavier et al (orgs.). Cuando obreros y estudiantes desafiaron al poder. Buenos Aires: Ediciones IPS, 2008.

OBS: Este artigo foi publicado originalmente na Revista Perspectivas em Dialogo - revista de educação e sociedade. Volume 03, número 05, ano 2016.





[1] Doutor em Sociologia/UFG, professor de Teoria Política na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas América Latina em Movimento/NEPALM.
[2] A sociedade civil é entendida aqui como o “conjunto das formas privadas de regularização das relações sociais. Em outras palavras, além do modo de produção dominante e dos modos de produção subordinados, temos as formas de regularização das relações sociais (“superestrutura”), que podem ser divididas em formas estatais e privadas. As formas estatais são constituídas pelo estado, pelas instituições estatais (fundações, autarquias etc.), pelos seus aparelhos (jurídico, policial etc.) por suas ideologias etc. enquanto que as formas privadas são a cultura, a sociabilidade, as instituições civis (igrejas, partidos, associações, escolas, hospitais etc.)” (VIANA, 2003, p. 82).
[3] Para maiores detalhes da crise do regime de acumulação conjugado (para alguns, regime de acumulação fordista) Cf. VIANA, 2009; HARVEY, 2008a; BIHR, 2007; 2010.
[4] Segundo Pannekoek, e com nossa concordância, “[...] o seu novo modo de vida tende a enfraquecer neles (nos burocratas sindicais – LB) essa tradição ancestral. No plano econômico, já não podem ser considerados como proletários. Eles caminham ao lado dos capitalistas, negociam com eles os salários e as horas de trabalho, cada parte fazendo valer os seus próprios interesses, rivalizando do mesmo modo que duas empresas capitalistas. Aprendem a conhecer o ponto de vista dos capitalistas tão bem como o dos trabalhadores; preocupam-se com os ‘interesses da indústria’; procuram agir como mediadores. Pode haver exceções ao nível dos indivíduos, mas regra geral, não podem ter esse sentimento de pertencerem a uma classe como têm os operários, pois que estes não procuram compreender nem tomar em consideração os interesses dos capitalista, mas lutam pelos seus próprios interesses. Por conseguinte os sindicalistas entram necessariamente em conflito com os operários (1936, s/p).
[5] Trata-se de um termo da língua inglesa que se traduz em “renovação”, “troca”, “reversão” e que na linguagem administrativa da burocracia dos recursos humanos (RH) de uma empresa representa a rotatividade de funcionários na empresa ou em determinados setores da empresa, geralmente marcados por um trabalho extremamente precário, como é o caso, por exemplo, dos trabalhadores de call centers e que revela a luta espontânea e individual contra o trabalho alienado.
[6] Destacamos que não há concordância da nossa parte com tal termo visto que para nós o mesmo é ideológico (falsa ideia sistematizada sobre a realidade), uma vez que não houve em momento algum qualquer “compromisso” ou “pacto” entre a classe operária e a burguesia e/ou a burocracia estatal/sindical/partidária. Pelo contrário, o que houve foi uma luta entre essas classes na qual a burguesia, auxiliada pela burocracia sindical, impõe à classe operária as regras desse novo regime de acumulação. No entanto, tais regras vieram acompanhadas de algumas concessões ao proletariado com o intuito de evitar maiores radicalização das suas lutas. Concessões essas, diga-se de passagem, que em nada alterou a relação de exploração da burguesia sob o proletariado que se fundamenta na extração de mais-valor, independente de aumentos salariais e políticas sociais em geral. Sintetizando, o regime de acumulação conjugado revelou, assim como os demais regimes de acumulação capitalista, uma contraofensiva da burguesia que, nesse caso, contou com apoio dos sindicatos que naquela conjuntura já eram instituições integralmente capitalistas.
[7] De Acordo com Bihr, “a obtenção constante de ganhos de produtividade tem como condição uma elevação da composição técnica do capital: da relação entre a massa do trabalho morto (matérias-primas e meios de trabalho) e a do trabalho vivo que ela mobiliza. Ora, se todas as outras coisas permanecem iguais, qualquer elevação da composição técnica do capital tende a provocar uma elevação da composição orgânica (da relação entre a massa do capital consumido e o valor criado pelo trabalho vivo), mas também um aumento do capital fixo em relação ao capital circulante e, portanto, uma diminuição da rotação do capital, dois fatores que diminuem inevitavelmente a taxa de lucro” (2010 p. 70).
[8] Segundo Thomas, “durante as semanas que se seguem a França estará completamente paralisada por um movimento de 5 a 7 milhões de grevistas. Calcula-se que no dia 17 (maio/1968) à noite 200.000 trabalhadores estão em greve. Ao meio dia do dia seguinte são um milhão, o dobro pela noite, 4 milhões na segunda-feira dia 20 e mais de 04 milhões a partir de quarta-feira” (2008, p. 56-57; grifo meu).
[9] Isso comprova a tese de Viana segundo a qual “cabe aos revolucionários não se omitirem e atuarem no sentido de reforçar a luta do proletariado. Para fazer isso, existem as mais variadas formas, desde a produção e divulgação de ideias revolucionárias; produção teórica e artística; ações políticas práticas, busca de organização e trabalho coletivo visando constituir elementos para apoiar a luta proletária, etc. Assim, um dos elementos fundamentais é a luta cultural visando corroer a hegemonia burguesa e acelerar o processo de desenvolvimento da consciência de classe do proletariado, efetivando a passagem da consciência concreta para uma consciência revolucionária, mesmo que em círculos mais restritos, e buscando sua expansão para círculos mais amplos. É neste contexto que se coloca a questão da propaganda revolucionária e da propaganda generalizada” (2007, p. 07).
[10] Esse é também o caso do movimento estudantil estadunidense: Como afirma Bottomore, “não admira que as ideias radicais tenham sido discutidas mais intensamente no movimento estudantil e, uma vez que as organizações estudantis desempenharam um papel ativo nos direitos civis, na luta contra a pobreza e no movimento pacifista, suas ideias foram amplamente divulgadas [...] A revolta em Berkeley, no outono de 1964, chamou a atenção para o movimento. Começou com as reinvindicações estudantis relativas à liberdade de expressão no campus, mas logo incorporou problemas muito mais amplos – a natureza da moderna universidade e suas relações com a sociedade, bem como o lugar dos estudantes na universidade – tendo-se comunicado agora, consideravelmente, a outras universidades nos Estados Unidos, no Canadá e até mesmo na Europa. A ideia de universidade que os estudantes atacaram e a que se opuseram foi a de ‘fábricas de conhecimentos’, na qual os estudantes são trabalhados tão eficientemente quanto possível com o fito de ocuparem carreiras na ordem social estabelecida externa à universidade [...] O segundo problema levantado bastante insistentemente pelo movimento estudantil foi o da organização e direção da universidade [...] Uma universidade é, ou deve ser, uma comunidade de universitários. Como tal, deveria ser auto-dirigida; e não governada de fora, pelos políticos, burocratas ou empresários” (1970, 82-84).
[11] “Não é acidental que a ‘revolução’ tenha começado nas faculdades de sociologia e psicologia de Nanterre. Os estudantes viram que a sociologia que lhes era ensinada era um meio de controle e manipulação da sociedade, e não um meio de compreendê-la de modo a transformá-la. No decorrer eles descobriram a sociologia revolucionária. Rejeitaram o nicho reservado para eles na grande pirâmide da burocracia, o de ‘especialistas’ a serviço do poder tecnocrático, especialistas do ‘fator humano’ na equação industrial moderna” (BRINTON, 2003, p. 18-19). O texto de João Bernardo intitulado Estudantes e trabalhadores no Maio de 68, disponível em http://www.pucsp.br/neils/downloads/pdf_19_20/2.pdf, traz uma grande quantidade de panfletos produzidos pelos estudantes radicais, nos quais alguns destacam essa enérgica crítica ao modelo educacional capitalista francês e que vale a pena citar o trecho de um longo panfleto dirigido aos trabalhadores: “No ensino superior existem 10% de filhos de operários. Será que nós lutamos para aumentar este número [...]? Seria melhor, mas não é isso o mais importante. [...] Que um filho de operário possa tornar-se director, não é esse o nosso programa. Queremos suprimir a separação entre trabalhadores e operários dirigentes [...] Recusamo-nos a ser utilizados em benefício da classe dirigente. Queremos suprimir a separação entre trabalho de execução e trabalho de reflexão e de organização. Queremos construir uma sociedade sem classes, e o sentido da vossa luta é o mesmo. [...] A forma da vossa luta oferece-nos, a nós estudantes, o modelo da actividade realmente socialista: a apropriação dos meios de produção e do poder de decisão pelos trabalhadores. A vossa luta e a nossa luta são convergentes” (BERNARDO, 2008, p. 25).
[12]Tom Nairn diz que de fins da década de 1950 aos fatos da comuna estudantil de maio de 1968 o número de estudantes universitários franceses saltara de 170 mil para mais de seiscentos mil, crescimento esse que não teve o mesmo acompanhamento na construção de novos prédios e outras instalações que pudessem acomodar esse crescimento numérico de estudantes. Só em Paris, essa massa estudantil chegava a 182 mil pessoas. Nairn conclui que como corolário desse crescimento esses estudantes praticamente ficavam impedidos de ter acesso a condições de estudo e manutenção adequada de sua sobrevivência” (PINTO, 2008, p. 03).
[13] Vale a pena conferir a obra Paris: Maio de 68 de Maurice Brinton, pois está repleta de relatos sobre as estratégias medíocres da burocracia do Partido Comunista Francês e da burocracia da Central Geral dos Trabalhadores que revelam seu conservadorismo e reacionarismo burguês. A seguir, uma dessas passagens: “O respeito pelos fatos me obriga a admitir que muitos grupos seguiram as ordens da burocracia sindical. As repetidas calúnias ditas pelos líderes da CGT e do Partido Comunista produziram seu efeito. Os estudantes eram chamados de ‘agitadores’, ‘aventureiros’, ‘elementos suspeitos’. A ação proposta por eles ‘levaria apenas uma a uma intervenção violenta da CRS’ (que se manteve totalmente fora de vista durante toda a tarde). ‘Isso era apenas uma manifestação, não um prelúdio à Revolução’. Agindo cruelmente na parte mais ao fundo da multidão, e atacando fisicamente a parte mais à frente, os ajudantes de burocratas da CGT conseguem fazer com que a maior parte dos manifestantes dispersem, muitas vezes sob protesto. Milhares foram ao Champs de Mars. Mas centenas de milhares foram para casa. Os stalinistas ganharam, mas as discussões iniciadas certamente irão repercutir nos meses seguintes” (BRINTON, 2003, p. 41-42).
[14] Para Andrew Young, ideólogo da Comissão Trilateral, isso estava muito claro, pois “o desemprego e a repressão política são, certamente, parte de um mesmo problema social” (Apud HINKELAMMERT, 1979, p. 103).
[15] Nos países latino-americanos a construção do estado policial se deu através da chegada de ditadores militares ao poder do estado e representou uma verdadeira transição para os posteriores estados neoliberais que, após o fim das ditaduras, mantiveram-se como verdadeiros estados policiais repressores. Esses foram e continuam sendo os casos do Chile, Argentina, Brasil e vários outros.

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