GT: Controle operário e autogestão
Resumo:
Anton Pannekoek e todo o seu desenvolvimento teórico estão intimamente
ligados ao processo histórico de desenvolvimento do movimento operário europeu e da
luta de classes desencadeada por ele em alguns países europeus nas primeiras décadas
do século XX. Esse período é marcado pela radicalização das lutas operárias que
avançavam em direção à construção do comunismo, entendido como a autogestão
social. É possível perceber que Pannekoek, assim como Marx e outros marxistas
autênticos, não partiram de idéias pré-concebidas para explicar o real, mas pelo
contrário, visualizava no desenvolvimento das lutas operárias em seu estágio
autogestionário, no qual o proletariado emancipa-se das instituições burocráticas tais
como sindicatos e partidos políticos, criando organizações autogeridas como os
conselhos operários, o embrião da sociedade comunista.
Nascido na Holanda em 1873, Pannekoek iniciou, ainda jovem, seus estudos em
ciências naturais se especializando em astronomia. Filiou-se ao Partido Operário Social
Democrático da Holanda e desde cedo se posicionou ao lado da sua ala esquerda junto à
Herman Gorter e Frank van der Goes. Juntamente com Gorter fundaram um jornal que
expressava suas concepções esquerdistas que passava a implementar críticas aos
dirigentes de partidos oportunistas. Posteriormente rompem com esse partido e formam
o Partido Social Democrata que tão logo se alinhara às diretrizes bolcheviques levou
Pannekoek a romper de uma vez por todas com as instituições partidárias, rejeitando o
parlamentarismo como instrumento de transformação social.
Em meados de 1905/1906 Pannekoek transfere-se para a Alemanha onde atuará
diretamente nas lutas sociais locais proferindo conferências, palestras, produzindo
diversos artigos e ministrando cursos na escola do SPD para os melhores estudantes
oriundos dos quadros dos partidos e sindicatos que se formariam para assumir a direção
de tais organizações. Devido à radicalidade de sua concepção, logo Pannekoek viria a
incomodar a ala reformista dos partidos e sindicatos locais, assim como a polícia
prussiana que decide interromper o curso sob a alegação de que Pannekoek não era de
nacionalidade alemã. Após tal proibição Pannekoek passa a garantir sua sobrevivência e
a da sua família escrevendo para vários jornais socialistas alemães, tal como o Neue
Zeit.
Na cidade de Bremen Pannekoek organizou ações junto à classe trabalhadora
com o intuito de contribuir com sua educação teórica e política, porém mais uma vez a
radicalidade de seu pensamento, a defesa da greve geral como uma das principais
armas do proletariado e o crescimento da sua credibilidade junto às instituições
operárias locais volta a gerar conflitos com os dirigentes sindicais. Segundo Mendonça,
os anos em Bremen testemunharam uma sólida e constante
radicalização do pensamento de Pannekoek que passou a
exercer marcada influência não apenas sobre o partido local,
mas sobre parcelas expressivas da social-democracia alemã e
internacional [...] Cada vez mais impressionado pela iniciativa
operária – que freqüentemente com ações inesperadas
ultrapassava as instâncias do partido e dos sindicatos – desde
meados de 1910 ele escreveu vários artigos na Bremer
Bürgerzeitung sobre as questões do método e do modelo
revolucionário, nos quais sempre sustentou a necessidade do
uso da greve geral. Este posicionamento deixou-o mal visto
junto a muitos no interior do partido, em especial sindicalistas
e defensores da concepção segundo a qual a social-democracia
deveria ampliar sua influência nas instituições e na sociedade
alemãs de forma ‘responsável’ (2009, p. 37).
Daí para frente, a ruptura de Pannekoek com a social-democracia tornava-se
inevitável. As ações autônomas e espontâneas do operariado alemão influenciaram
definitivamente o pensamento de Pannekoek que passava a ver nas ações coletivas da
classe o caminho para a construção da nova sociedade.
Diante do inevitável conflito bélico que as disputas imperialistas coagiam as
nações capitalistas européias a enfrentarem, Pannekoek assume uma postura
antibelicista. O apoio da social-democracia à guerra serviu para unir os vários grupos
oposicionistas. Na Alemanha os oposicionistas se aglutinam em torno de Rosa
Luxemburgo e Karl Liebneckt formando a Liga Spartacus que, posteriormente, junto
com os comunistas internacionalistas formariam o Partido Comunista Alemão; na
Holanda os oposicionistas à guerra imperialista se aglutinam em torno de Pannekoek,
Gorter, Holand-Host.
Nessa mesma época eclode a Revolução Russa e ao contrário da maioria dos
comunistas desse período, Pannekoek, assim como Rosa Luxemburgo, não ofereceram
apoio incondicional e acrítico a esse episódio histórico, demonstrando, assim, algumas
discordâncias com a forma como ocorreu esse acontecimento e não deixando se levar
pela euforia que atingiram vários militantes de esquerda que
possuem uma necessidade inconsciente de se agarrar a experiências
e movimentos em outros países para se sentirem ‘do lado do
desenvolvimento histórico’, o que demonstra a insegurança psíquica
de muitos revolucionários, que assim apelam para o modelo
soviético, cubano ou ‘guevarista’, ou qualquer outro (VIANA,
2007, p. 10-11).
A Revolução Russa foi encarada inicialmente como uma experiência
revolucionária do proletariado, por isso saudada e apoiada pelos radicais alemães e
holandeses, apesar das profundas discordâncias com os leninistas. Na prisão Rosa
Luxemburgo já alertava para os riscos do autoritarismo bolchevique que irá se
confirmar com as práticas de Lênin ao chegar ao poder em 1917, silenciando todo o
movimento operário radical que firmava suas práticas na auto-organização da produção
independente das imposições do partido bolchevique. Para Lênin era inaceitável o
desenvolvimento de um movimento operário autônomo ao partido bolchevique.
As práticas repressivas e contra-revolucionárias dos bolcheviques, juntamente
com o desenvolvimento da consciência operária em direção à necessidade de ruptura
completa com as instituições ditas representativas do operariado (partidos e sindicatos)
possibilitarão a vários comunistas, tal como Anton Pannekoek, revisar teoricamente as
práticas operárias que passavam a construir uma nova forma de produção material da
vida através de organizações verdadeiramente democráticas no interior das fábricas: Os
sovietes (conselhos operários).
A partir das experiências dos sovietes na Rússia (1905), na primeira fase da
Revolução Russa (fevereiro de 1917) e na Revolução Alemã (1917- 1921), Anton
Pannekoek abstraiu do movimento operário a essência da sua prática revolucionária, ou
seja, a auto-organização da luta operária contra a opressão do capitalismo e a construção
de novas formas sociais a partir da autogestão da produção. Passava a concordar na
íntegra com a máxima de Marx em relação à ação do sujeito histórico potencialmente
revolucionário (proletariado) que assim afirmava: “A emancipação dos trabalhadores é
obra dos próprios trabalhadores”.
No período que vai de 1920 a 1940 Anton Pannekoek realizou diversas
atividades e produções intelectuais, porém todas elas completamente desligadas de
qualquer atividade política “homogeneizada por Moscou”. Sistematizou inúmeras
críticas ao reformismo kautskiano afirmando que tal ideologia foi responsável por dar
ao marxismo uma forma mecanicista na qual sustentava que o socialismo seria atingido
pela via pacífica e parlamentar. Escreveu diversos artigos de cunho epistemológico e,
especificamente nos anos 20, dedicou-se às pesquisas científicas e às aulas de
astronomia e física nas quais resultaram em trabalhos de surpreendente nível técnicocientífico.
A partir de 1927 volta a se preocupar com uma produção teórica e política que
buscasse melhor compreender o movimento operário, suas tendências e contra
tendências. Nessa época consolida uma crítica sistematizada ao bolchevismo e escreve
uma de suas principais obras intitulada Lênin filósofo (1938).1
Outra importantíssima
obra de Pannekoek foi publicada em 1947 intitulada De arbeidersraden (Os Conselhos
Operários). Essa obra foi produzida em um contexto de intensa adversidade para
Pannekoek e sua família visto que a Holanda nesse período encontrava-se sob ocupação
nazista, tornando-se um lugar extremamente miserável e com grande taxa de
mortalidade, tanto por conta dos bombardeios quanto pela fome e pelo penoso frio do
inverno de 1943/44. Segundo Mendonça,
Mazelas de tamanha profundidade não deixaram os Pannekoek
incólumes. Durante o último inverno da guerra, à exceção de sua
filha Anneke que estava nos EUA com o marido, sua mulher
Anna adoeceu e foi internada num hospital, seu filho Antoine
Johannes – que havia se tornado um dos maiores geólogos
holandeses – foi preso pelas tropas japonesas na Indonésia
enquanto lá trabalhava e colocado num campo de concentração
tendo sido libertado somente depois da rendição do Japão. E o
próprio Anton, então com setenta anos, teria morrido de fome e
frio sozinho em sua própria casa se não fosse encontrado
moribundo por um colega professor da universidade que foi
visitá-lo e o socorreu, tratou e assistiu até a recuperação de Anna
(2009, p. 72)
1
De acordo com Malandrino em sua obra Scienza e socialismo: Anton Pannekoek (1873-1960), citado
por Mendonça, a obra Lênin filósofo foi “escrita a partir do momento em que o holandês tomou
conhecimento da obra de Lênin ‘Materialismo e empiriocriticismo’ (...) Em suas memórias, Pannekoek
afirma que as razões que o levaram a escrever este livro foram: ter percebido que Lênin se colocou no
campo do materialismo burguês e a conexão de tal posição filosófica com a Revolução Russa. Ele
considerou necessário publicá-lo mesmo que, por causa da escassez de recursos financeiros, poucos
exemplares pudessem ser impressos ‘para fazer emergir o verdadeiro caráter do partido comunista
russo e para aprofundar as bases do marxismo” (Malandrino Apud Mendonça, 2009, p. 68).
Enfim, Anton Pannekoek e todo o seu desenvolvimento teórico estão
intimamente ligados ao processo histórico de desenvolvimento do movimento operário
europeu e da luta de classes desencadeada por ele em alguns países europeus nas
primeiras décadas do século XX. Esse período é marcado pela radicalização das lutas
operárias que avançavam em direção à construção do comunismo, entendido como a
autogestão social. Conforme afirmou Paul Mattick – teórico conselhista –
a vida de Anton Pannekoek coincide quase inteiramente com a história
do movimento operário. Conheceu o seu aparecimento enquanto
movimento de protesto social, a sua transformação em movimento de
reforma social, o seu eclipse como movimento de classe independente
no mundo contemporâneo. Mas Pannekoek conheceu igualmente as
suas possibilidades revolucionárias nas sublevações espontâneas que,
de tempos a tempos, interrompem o curso tranqüilo da evolução social
(MATTICK, 1960).
A partir disso é possível perceber que Pannekoek, assim como Marx e outros
marxistas autênticos, não partiram de idéias pré-concebidas para explicar o real, mas
pelo contrário, visualizava no desenvolvimento das lutas operárias em seu estágio
autogestionário, no qual o proletariado emancipa-se das instituições burocráticas tais
como sindicatos e partidos políticos, criando organizações auto-geridas como os
conselhos operários, o embrião da sociedade comunista. Portanto, “o comunismo não é
para nós [comunistas – LB] um estado de coisas que deva ser estabelecido, um ideal pelo qual a
realidade terá que regular. Chamamos comunismo ao movimento real que supera o atual estado
de coisas” (Marx & Engels, 1984, p. 42). Assim, Pannekoek torna-se um dos grandes
expoentes da teoria marxista revolucionária: O Comunismo de Conselhos.
Pannekoek foi desenvolvendo suas teses com o passar do tempo, sendo que
algumas idéias manteve até o final de sua vida e aprofundou algumas, enquanto que
outras ele repensou e reconsiderou. Para analisar as idéias de Pannekoek é necessário ter
em mente o seu percurso intelectual. O seu pensamento atravessou algumas fases.
Vamos resumir rapidamente estas fases para compreender mais adequadamente o seu
pensamento.
Pannekoek, obviamente, não nasceu marxista. Antes de aderir à SocialDemocracia,
havia se comprometido com o liberalismo. Sua formação universitária na
área de ciências naturais não contribuíram com um estudo mais profundo das questões
sociais e somente após um período liberal e de primeiras leituras de autores mais
críticos e contato com pessoas e professores do espectro mais à esquerda, que irá
possibilitar sua adesão à social-democracia em 1899 (Mendonça, 2009). Essa é a
primeira fase de seu pensamento político marcado pelo marxismo.
A sua participação na social-democracia se deu, no entanto, com seu
alinhamento com a ala esquerda, representada por Herman Gorter e Henriete RolandHost.
O movimento grevista na Holanda reforçou essa tendência de radicalização e por
isso ele participou do grupo tribunista, nome derivado do jornal De Tribune. Suas
concepções, nesta época, já diferenciavam Pannekoek da tendência hegemônica da
social-democracia. Além da inspiração em Marx, a leitura de Dietzgen também irá ter
ressonância no pensamento de Pannekoek.
Neste período, Pannekoek será um dissidente no interior da social-democracia e
nesse processo irá produzir obras como “Marxismo e Darwinismo” (1909), “As
Divergências Táticas no Interior do Movimento Operário Europeu” (1909), “Ações de
Massas e Revolução” (1912), entre outras, que revelam concordâncias e discordâncias
com a social-democracia. Nesta época, Karl Kautsky era o grande ideólogo da socialdemocracia,
sendo o substituto de Engels desde a morte deste, e representante da
“ortodoxia” e principal opositor do “revisionismo” (Bernstein). A social-democracia
alemã era a grande referência internacional e tinha congêneres em todo o mundo.
Pannekoek compartilhava alguns aspectos da social-democracia, tal como a
proeminência do pensamento de Marx e Engels, a aceitação de uma organização
partidária, etc. E tinha algumas divergências em relação à tendência hegemônica, o que
lhe permitia ser um dissidente.
Em “Marxismo e Darwinismo”, ele tanto revela concordância com o kautskismo
quanto discordância. Como concordância se observa uma certa respeitabilidade
oferecida a Darwin e o darwinismo, como citações de Kautsky, e como discordância a
crítica que ele apresenta2
. Em “As Divergências Táticas no Interior do Movimento
Operário Europeu”, ele mostra concordâncias ao criticar o revisionismo e o
“anarquismo” no interior da social-democracia e como discordância mostra o papel das
“classes médias” e do burocratismo na luta política e seu caráter negativo, reconhecendo
a existência de uma “aristocracia operária”, ao mesmo tempo em que aponta a defesa da
autonomia proletária. O que revela uma característica permanente do pensamento de
Pannekoek nesta obra é a sua afirmação sobre os dois grandes fatores de força do
proletariado, o saber (a consciência ou “espírito”) e a organização (fundados na
solidariedade de classe), o que revela a inspiração em Dietzgen, no primeiro caso.
Em “Ações de Massas e Revolução”, a discordância se manifesta mais
claramente diante de uma questão mais pontual: a questão de greve de massas. Neste
período, a posição de Kautsky e da maioria da social-democracia (Valdeverde na
Bélgica, por exemplo, que irá debater com Rosa Luxemburgo) era contra a greve,
“estratégia anarquista”, e a posição de alguns dissidentes (Rosa Luxemburgo, Parvus,
Mehring e Pannekoek), era favorável à greve. Essa divergência será fundamental para se
perceber que em pequenas oposições podem se revelar ou manifestar grandes
divergências, mesmo que os debatedores não tenham consciência disso.
Na verdade, a posição particular sobre um elemento acessório e menos
importante pode ser derivado de falta de informação, equívocos, etc., ou de uma
predisposição mental individual ou ainda uma base intelectual (ideológica ou teórica)
que fornece a fonte de tais oposições. Nestes dois últimos casos, a oposição por
questões pontuais apenas revelam pressupostos (predisposição mental, o que remete a
valores, concepções, sentimentos, etc. ou ideologias/teorias que manifestam
perspectivas de classe) que remetem a divergências sobre questões fundamentais, o que
revela que por detrás de determinados posicionamentos existe toda uma base intelectual
que é antagônica, expressando, portanto, um conflito de interesses de classe. A oposição
de Kautsky e Pannekoek nesta questão particular apenas revelava uma divergência de
perspectiva de classe que ainda não estava clara e manifesta no segundo e por isso não
pôde perceber o caráter mais profundo do que estava em jogo, o que só faria
posteriormente.
A cisão de 1914 entre a social-democracia hegemônica, cada vez mais
conservadora, e os dissidentes, derivada do apoio dos representantes social-democratas
no parlamento aos créditos de guerra, produziu novas oposições em vários países, sendo
que Lênin, na Rússia e Rosa Luxemburgo na Alemanha, foram os mais enérgicos na
formação das novas tendências. Vários pequenos grupos surgiram nesta época e na
Alemanha surgiram os grupos de “comunistas internacionalistas”, de Otto Rühle, o
grupo dos Delegados Revolucionários e a chamada Esquerda de Breme, que contava
com Pannekoek e Gorter. Neste período, há a transição para a substituição do nome
2
Kautsky buscou unir marxismo e darwinismo, sobrepondo ao materialismo histórico o
evolucionismo progressista darwinista, bem coerente com sua concepção política gradualista e
reformista, sendo a base da ideologia kautskista da “darwinização” do marxismo (Korsch, 1971).
“social-democracia” para o nome originalmente colocado por Marx para representar a
tendência revolucionária-proletária, comunismo. Esse período seria mais curto e
também manifestaria divergências no seu interior (que foi mais forte na oposição entre
Lênin e Rosa Luxemburgo, a nível de polêmica internacional entre a antiga ala
esquerda). A eclosão da Revolução Russa de 1917 e a tomada do poder estatal pelo
Partido Bolchevique acaba gerando uma proeminência bolchevista, que provocará
adesões e apoios (grande parte das tendências de esquerda apoiaram o bolchevismo ao
invés de aderir a ele, o que só ocorrerá efetivamente após as derrotas das tentativas de
revoluções proletárias em vários países até por volta de 1923). Após o bolchevismo
tomar o poder estatal e até revelar sua face ditatorial ao resto do mundo (não se tinha
informações precisas sobre a Rússia no resto do mundo), poucos se aventuraram a
criticar Lênin e o regime bolchevique na Europa (Rosa Luxemburgo foi uma exceção),
o que era mais comum na própria Rússia (de Makhayski até as oposições no interior do
próprio Partido Bolchevique).
Porém, as informações aumentavam, a repressão bolchevique se manifestava
cada vez mais intensamente, a eclosão de tentativas de revoluções proletárias na
Alemanha, Hungria e Itália e acirramento das lutas operárias na Europa, e a prática
bolchevique, principalmente no interior da III Internacional Comunista e os textos de
Lênin, especialmente, O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, um ataque aos
grupos radicais e antiparlamentaristas no continente europeu, promoveram uma nova
cisão. Embora existissem várias tendências nessa época, no que alguns convencionaram
denominar “socialismo radical”, e, por isso, não existia homogeneidade, também não
haviam fortes conflitos entre elas, que preferiam criticar e se opor à social-democracia
reformista. Porém, a crítica à social-democracia tinha diferenças entre as tendências
antiparlamentaristas e a tendência bolchevique. Para os antiparlamentaristas, a
participação no parlamento era negada (basta ver o abstencionismo de Bordiga, na
Itália, e o antiparlamentarismo de Pankhurst, na Inglaterra, ambos criticados por Lênin).
No entanto, no caso alemão, a divergência com a social-democracia era mais profunda e
ia até a raiz das bases sociais dos Partidos Social-Democratas: a burocracia. Apesar de
Gorter e Pannekoek terem manifestado uma posição antiparlamentar, seu ataque era,
principalmente, a oposição entre “chefes” e “massas”, ou seja, a relação estabelecida
pela social-democracia entre o partido e a classe e entre os integrantes do partido, um
esboço de uma crítica à burocracia. Ao cortar a raiz de uma árvore, incomodou todas as
outras árvores. Eles expuseram a raiz do problema, que era comum ao bolchevismo.
Assim, para quem lê O Esquerdismo, verá as críticas a Bordiga e Pankhurst, mas poderá
também observar que muito mais páginas foram gastas com Gorter e Pannekoek e com
a discussão entre “massas” e “chefes”, devido à raiz comum, burocrática, entre socialdemocracia
e bolchevismo.
O Partido Bolchevique no poder quis substituir a proeminência da socialdemocracia
alemã e impor, através das críticas de Lênin e da Internacional Comunista,
uma nova hegemonia. Os conflitos logo surgiram e Hermann Gorter seria um dos
primeiros a se manifestar através de sua crítica em “Carta Aberta ao Camarada Lênin”,
uma resposta ao livro O Esquerdismo. Da mesma forma, Pannekoek também irá marcar
sua ruptura (não no sentido de que fizesse parte, mas sim de que fornecia determinado
apoio e não mostrava grandes divergências até então) com o bolchevismo. Isto se deu
com sua obra Revolução Mundial e Tática Comunista, de 1920, na qual avalia
negativamente o bolchevismo e abre caminho para sua adesão ao comunismo de
conselhos.
Após isto, Pannekoek cada vez mais se coloca numa posição semelhante a de
outros militantes e teóricos da época (Otto Rühle, Paul Mattick, Herman Gorter, etc.) e
as experiências das revoluções proletárias serviram para que a ênfase nas formas de
auto-organização proletária, os conselhos operários, se tornasse mais nítido. Neste
contexto, a crítica a partidos e sindicatos se torna mais ampla, bem como a oposição às
burocracias em geral e ao capitalismo de estado russo.
A contra-revolução que tomou conta da Rússia, Alemanha e vários outros países,
o recuo do movimento operário revolucionário e, logo após, a ascensão do nazifascismo
e da Segunda Guerra Mundial, marca a participação mais limitada de
Pannekoek nas lutas políticas, voltando às suas atividades como astrônomo e professor.
Porém, irá produzir várias obras e artigos, entre as quais Lênin Filósofo, no qual mostra
que as discordâncias com o bolchevismo tinham raízes muito mais profundas do que se
imaginava e que mostravam uma questão de perspectiva de classe. O bolchevismo, no
fundo, era semi-burguês, tal como seu suposto “materialismo”.
Outra obra importante, que alguns consideram sua maior obra, foi Os Conselhos
Operários, de 1947. Nesta obra, Pannekoek apresenta sua teoria dos conselhos
operários, retomando vários escritos anteriores e fornecendo uma síntese e revisão ao
mesmo tempo, bem como ampliando temáticas. O elemento fundamental do texto reside
na sua tese da formação e significado dos conselhos operários, mostrando como
concebia o processo de engendramento deles através da luta operária. Retomava a
crítica à Revolução Bolchevique e ao capitalismo de Estado, bem como colocava,
novamente, a importância atribuída ao saber e à organização. Este é um elemento
permanente nas obras de Pannekoek, inclusive em seus artigos.
A necessidade da organização do proletariado é pensada por Pannekoek desde os
seus primeiros textos e culmina com esta obra. Desde suas primeiras incursões sobre a
questão sindical e partidária, para depois observar seu caráter burocrático e nãoproletário,
até a percepção de outras formas organizacionais, os conselhos operários e os
grupos de reflexão, são capítulos da evolução do seu pensamento que não abandonam a
preocupação básica e fundamental de seu pensamento.
Por outro lado, outra preocupação fundamental e básica em seu pensamento é a
questão da mente, da consciência, ou do “espírito” (palavras diferentes para dizer a
mesma coisa, no sentido que lhe atribui Pannekoek). A consciência de classe do
proletariado deve brotar simultaneamente com as formas de auto-organização
proletárias. A emancipação proletária significa a gestação de novas formas
organizacionais, tal como os conselhos operários, bem como uma nova mentalidade,
uma consciência de classe desenvolvida e bem distinta da mentalidade burguesa.
Neste contexto, refletir sobre o pensamento de Pannekoek significa verificar sua
contribuição ao marxismo e luta operária a partir de suas reflexões e ações, uma das
mais ricas contribuições ao movimento operário do século 20. Pannekoek esteve no
bojo das lutas operárias do início do século 20 e presenciou a radicalização e tentativa
de revolução proletária na Alemanha, bem como observou as ações operárias em outros
países. Também acompanhou a derrota do movimento revolucionário, a ascensão nazifascista
e Segunda Guerra Mundial. A sua obra Os Conselhos Operários é uma síntese
das experiências e reflexões de Pannekoek durante este período e é por isso que ele
discute o processo de formação dos conselhos, seu papel, sua importância – além de
análises breves de questões específicas, como a Revolução Russa – e discute não só a
questão organizacional proletária como também a questão do pensamento e das
ideologias (no sentido amplo do termo), além de analisar a guerra e o fascismo.
Esta obra, juntamente com as demais que a precederam, são uma das mais
importantes contribuições ao marxismo, pela radicalidade e pelo compromisso com o
movimento revolucionário do proletariado e também devido ao fato de ter buscado
questionar o pseudomarxismo em suas várias variantes e as apropriações burocráticas
das lutas operárias, além de ter conseguido perceber a importância social e histórica dos
conselhos operários. Assim, Pannekoek é um dos grandes continuadores de Marx e do
marxismo. Obviamente, como em todos os pensadores, há lacunas, falhas, problemas,
embora em grau muito menor do que nos demais intelectuais que se dizem marxistas,
bem como evolução, aprofundamentos, desdobramentos, avanços e recuos, como não
poderia deixar de ser e que ocorre com todos os pensadores. Isto não retira os seus
méritos e apenas mostra que ele é um ser humano e não um Deus. Assim, os seus
pequenos equívocos, suas lacunas, que podem ser insuportáveis para os espíritos
dogmáticos, não deixam de promover o reconhecimento de sua contribuição inestimável
ao marxismo e às lutas operárias.
A questão da organização, ao contrário do que muitos pensam, é uma das
questões fundamentais do pensamento de Pannekoek, ao lado da questão da
consciência. Isto, no entanto, também pode gerar mal entendidos e por isso iremos
colocar alguns elementos aqui que se esclarecem esta questão e alguns serão retomados
no restante da coletânea.
A afirmação segundo a qual a questão da organização é fundamental para
Pannekoek pode gerar a ideia de que ele poderia pensar os conselhos operários de forma
fetichista. No entanto, não é este o caso. A questão das organizações recebeu tratamento
diferenciado por Pannekoek, dependendo da época em que escrevia e do tipo de
organização. Lembrando que o pensamento de Pannekoek atravessou algumas fases e
que nestas algumas idéias permaneceram, algumas foram abandonadas e novas foram
gestadas, é preciso compreender a concepção de organização em Pannekoek vinculado a
este processo.
Em primeiro lugar, as reflexões iniciais de Pannekoek sobre organização se deu
no bojo de sua participação – crítica e dissidente – dentro da social-democracia, que
apenas enxerga as duas formas tradicionais de organização integradas no capitalismo: os
sindicatos e partidos. Estas organizações, que nasceram das lutas operárias, como bem
demonstraram Marx e Pannekoek, passam de órgãos da luta proletária para órgãos de
reprodução do capitalismo com seu processo de crescente burocratização. Esse processo
não ocorre de uma só vez, imediatamente. Em primeiro lugar, surgem os partidos e
sindicatos como produtos das lutas dos trabalhadores, com a repressão e recusa da
burguesia e do Estado capitalista. É o seu momento heróico. A luta avança e partidos e
sindicatos são legalizados e aceitos pela burguesia ao instaurar um novo regime de
acumulação, o regime de acumulação intensivo, que instaura a democracia partidária e o
Estado liberal-democrático em substituição à democracia censitária e Estado liberal
(Viana, 2003). Porém, o que a burguesia oferece com a mão esquerda, retira com a mão
direita. A burguesia legaliza e aceita partidos e sindicatos, mas o próprio processo de
legalização significa a imposição da legislação burguesa sobre estas organizações, além
das necessidades financeiras impostas, bem como pelo novo papel que elas ganham (os
partidos passam a poder eleger candidatos e disputar cargos e governos; os sindicatos se
reduzem a representação da força de trabalho com limites legais). Além disso, partidos e
sindicatos se integram cada vez mais na sociedade burguesa, por estarem cercados por
ela e também por, nesse processo, criar a sua burocracia própria, uma camada de
dirigentes que passa a constituir interesses próprios. Neste contexto, partidos e
sindicatos legalizados são o primeiro passo para a burocratização.
Esse processo de burocratização vai crescendo paulatinamente. Os Partidos
Social-Democratas, quanto mais o tempo passava, mais cresciam: aumentavam
militantes, recursos, e, com o crescimento eleitoral, aumentava os cargos, o poder
financeiro, e a burocracia partidária, com seus intereresses próprios e recursos
crescentes (Michels, 1982). Porém, a base ainda era formada em grande parte por
trabalhadores (operários, camponeses, etc.) e o seu discurso nasceu do marxismo e de
outras tendências socialistas e assim ainda mantinha uma fraseologia revolucionária
cada vez mais distante da prática e dos interesses reais. Os sindicatos seguiram um
percurso análogo e aumentaram cada vez mais sua burocracia e poder financeiro. Nada
mais natural, portanto, que este processo se torna-se cada vez mais visível e mais
conflitos fosse gerado no interior destas organizações. Neste contexto, Pannekoek
(assim como Gorter, Rosa Luxemburgo, Parvus e muitos outros) eram expressão do
descontentamento dos setores que negavam este caminho, mas ainda não tinham uma
percepção mais clara do que estava em jogo e por qual motivo.
Foi necessário o aprofundamento da burocratização para que se tornasse
perceptível isso e uma demonstração que acabasse com todas as ilusões sobre partidos e
sindicatos. No caso dos partidos, isso ocorreu com a prática do Partido SocialDemocrata
Alemão, ao aprovar os créditos de guerra. Porém, a dissidência interna
passou a ser externa provocando cisões e novos partidos, que logo tiveram o mesmo
triste e frio destino burocrático. Apesar disso, o movimento revolucionário do
proletariado eclodiu e colocou em xeque as burocracias partidárias e sindicais,
mostrando seu caráter contra-revolucionário. O caso russo deixou isto ainda mais claro,
pois mesmo sendo comandado por uma burocracia radicalizada e sem as mesmas bases
que a burocracia partidária dos gigantes e poderosos partidos social-democratas da
Europa, acabou realizando a contra-revolução burocrática na Rússia e instaurando um
capitalismo estatal. Isto, para aqueles que tinham vínculos reais com o movimento
revolucionário do proletariado, só podia significar uma nova cisão, mas agora mais
profunda, uma ruptura não com determinadas direções partidárias/sindicais ou formas
de organização do partido ou sindicatos e sim com toda e qualquer forma de partido e
sindicatos. Esse foi o trajeto do movimento operário e que foi seguido por Pannekoek (e
por vários outros, como Rühle, Wagner, etc.). Pànnekoek passou de uma época na qual
criticava as influências das ideologias e camadas pequeno-burguesas em partidos e
sindicatos para uma outra na qual se questionava não apenas isso mas também as
relações internas nestas organizações, até chegar o momento da ruptura final, quando o
caráter contra-revolucionário destas organizações ficou evidente.
Ao mesmo tempo que partidos e sindicatos revelaram seu verdadeiro papel no
processo de lutas operárias, emergiram novas formas de organização gestadas e geridas
pelos próprios trabalhadores, os conselhos operários. Os militantes e teóricos que
buscam expressar teórica e politicamente o movimento revolucionário do proletariado
logo perceberam a importância e o significado histórico dos conselhos operários e
Pannekoek, bem como o conjunto dos chamados “comunistas de conselhos” (Gorter,
Rühle, Mattick e outros), foram os primeiros a perceber e reconhecer isso. É nesse
período que amadurece o pensamento de Pannekoek sobre a questão da organização, a
recusa de partidos e sindicatos é completada pela defesa dos conselhos operários como
órgãos da revolução social e da gestão da sociedade futura. Neste contexto, a autogestão
social pelos conselhos operários é a expressão do comunismo.
Isto, porém, não faz de Pannekoek um fetichista dos conselhos operários, como
alguns erroneamente pensam. Em primeiro lugar, Pannekoek pensava que os conselhos
operários são mais um princípio organizativo do que uma determinada forma
organizacional e que, portanto, poderia assumir formas diferentes. Em segundo lugar,
Pannekoek pensava os conselhos operários como sendo órgãos da revolução social e
não como organizações que deveriam, por exemplo, funcionar no interior do
capitalismo e que, portanto, seriam deformados e estes devem ser combatidos. Em
terceiro lugar, ao invés de enfatizar o tipo de organização que constitui os conselhos,
Pannekoek estava mais preocupado em analisar as lutas operárias e como elas
engendram os conselhos de trabalhadores.
Assim, Pannekoek mantém a sua preocupação fundamental com o processo de
organização dos trabalhadores, mas o desloca de partidos e sindicatos para os conselhos
operários, embriões do comunismo. Por isso Pannekoek se tornou o grande teórico dos
conselhos operários e um dos pontos altos como manifestação teórica do movimento
revolucionário do proletariado.
Um questionamento pode ser feito ao terminar esta breve análise sobre a questão
da organização em Pannekoek: como fica a questão das organizações dos
revolucionários? Eis que Pannekoek não dedicou nenhum escrito mais aprofundado
sobre esta questão. Após abandonar a ideia de partido – embora algumas vezes utilize a
palavra “partido” –, Pannekoek oscilou entre a concepção de Otto Rühle de
“organização unitária” e a da necessidade de uma organização de revolucionários sob a
forma de grupos de discussão e propaganda, chegando a postular, em alguns momentos,
o papel de “direção espiritual” do proletariado (ao contrário das concepções
burocráticas que querem a direção prática do movimento operário). Apesar disso,
Pannekoek em seus últimos textos fecha com a posição de “grupo de discussão”, tal
como se vê em seu debate com Cornelius Castoriadis.
Referências:
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia Alemã. São Paulo: Centauro, 1984.
MATTICK,Paul. Anton Pannekoek – biografia por Paul Mattick. IN: http://guydebord.blogspot.com/2009/06/anton-pannekoek-pannekoek-biografia-por.html
.
Acessado em: 12/02/2010.
MENDONÇA, José Carlos. Teoria da organização política em Anton Pannekoek. 2009.
Dissertação (Mestrado em sociologia política) – Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 2009.
VIANA, Nildo. Pannekoek: Teórico dos conselhos operários (prefácio). IN:
PANNEKOEK, Anton. A revolução dos trabalhadores. Editora barba ruiva, 2007.
_____ . Manifesto Autogestionário. Rio de Janeiro: Achiamé, 2008.
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