Música para o Espírito

domingo, 2 de agosto de 2015

Cotas Raciais e Micro-reformismo Pós-Moderno


Lisandro Braga

Como explicar a existência do racismo na atualidade? De onde vem esse racismo que atinge quase metade da população nacional que vive em precárias condições de sobrevivência? O capitalismo contemporâneo baseia-se na competição social em busca de privilégios, status, poder e ascensão social que acaba por jogar os trabalhadores uns contra os outros, dividindo-os e enfraquecendo-os. Acreditamos que é nesse sentido que o racismo fortalece o capitalismo, ou seja, dividindo a classe explorada para melhor dominá-la. E essa, talvez, seja uma das principais razões para que o racismo permaneça mesmo após a abolição da escravidão, sendo uma realidade cruel e inegável no Brasil e no mundo.
Diante dessa realidade, têm surgido diversas discussões nos meios acadêmicos, nos movimentos negros, nas instituições políticas e na sociedade civil como um todo, acerca da necessidade de adoção de mecanismos que possam reverter esse quadro de “exclusão” social da população negra brasileira. A proposta mais discutida é a que defende políticas públicas de inclusão dos negros nas várias instituições públicas e/ou privadas através da reserva de cotas para as populações que tem sido vítimas de processos históricos marginalizantes.
O problema, para nós não se resume a encontrar argumentos que justifiquem ou não a adoção de reserva de cotas para negros nas universidades públicas, mas sim se o simples acesso à universidade consiste no principal obstáculo para a resolução da desigualdade racial, ou se o Estado neoliberal - com o seu caráter de classe que tem como função assegurar e conservar a dominação e a exploração da classe minoritária e dominante sobre a classe majoritária e dominada - juntamente com sua política, cada vez maior, de afastamento da responsabilidade dos assuntos sociais sob a alegação de que esses pertencem ao âmbito privado possa adotar medidas que reverta a situação da grande maioria da população negra brasileira que ocupa os extratos sociais mais inferiores? E se seria possível a abolição das desigualdades raciais sem a abolição das desigualdades de classes?
Apesar da crença consolidada de vivermos em uma democracia racial, na qual a miscigenação tem servido de argumento para afirmar o quanto é harmoniosa a relação entre brancos e negros, as estatísticas de bem estar social têm nos mostrado o quanto é imensa a distância que separa a população branca da população negra em relação à participação nos
 Historiador e cientista político do núcleo de pesquisa marxista da Universidade Estadual de Goiás - UEG.
diversos setores e instituições sociais – alimentação, saúde, educação, moradia, segurança, lazer. A falta de conhecimento sobre os verdadeiros motivos que explicam essa distância tem contribuído para a produção, reprodução e manutenção do preconceito racial, tanto do branco contra o negro, quanto do negro contra seu próprio grupo de pertença étnico-racial.
O argumento – racista - mais utilizado para explicar os problemas e as dificuldades enfrentadas pelos negros é o que encara a cor da pele e as características fenotípicas como diferenciador de raças vistas como superiores e/ou inferiores. Dessa forma,
“a questão racial está, portanto, manipulada de forma a conservar os segmentos e grupos dominados dentro de uma estrutura já estabelecida e assim se confunde o plano miscigenatório, biológico, com o social e econômico. As oportunidades de trabalho e ascensão social não são idênticas para negros e brancos, mas joga-se sobre o negro a culpa de sua inferioridade social, econômica e cultural” (SOUZA apud FERREIRA, 1991, p. 38).
Argumentos desse tipo têm favorecido a introjeção, por parte do negro, de um julgamento de inferioridade que o faz acreditar que sua situação social se deve ao fato de pertencer a determinado grupo étnico-racial e não à falta de oportunidades que lhes tem sido negadas há séculos nesse país.
Vivemos em uma sociedade racial e culturalmente desigual, onde os valores determinados por uma cultura branco-européia são vistos como superiores, em detrimento da desvalorização de outras matrizes culturais, como a do negro, pois, no Brasil, as características étnico-raciais estão intensamente associadas a condições sociais deploráveis. Este fato vem se desenvolvendo historicamente desde os tempos da escravidão, foi mantido após a abolição e, apesar de algumas conquistas, ainda está presente.
O racismo é fruto do capitalismo comercial europeu do século XVI, que, ao necessitar de extensa mão-de-obra para as lavouras produtoras de matérias-primas e gêneros tropicais na América, elaborou teorias que “justificaram” a escravidão, excluindo da raça humana os negros, que passaram a ser considerados “desalmados” e, portanto, passivos de tornarem-se escravos. Percebe-se, então, que o racismo é fruto da necessidade da burguesia comercial européia de acumular capitais, e “formou-se como parte do processo através do qual o capitalismo tornou-se o sistema econômico e social dominante. As suas transformações posteriores estão ligadas às transformações do capitalismo” (CALLINICOS, 2005). Apesar de essa explicação ser, até certo ponto, convincente, por si só a escravidão e toda herança colonial gerada pela mesma não são suficientes para explicar as desigualdades raciais contemporâneas. Outro fator histórico importante, para compreender o racismo no Brasil, é a forma como ocorreu a Abolição da
escravidão. A respeito desse fato, as palavras de José Murilo de Carvalho são esclarecedoras: “A libertação dos escravos não trouxe consigo a igualdade efetiva. Essa igualdade era afirmada nas leis mas negada na prática. Ainda hoje, apesar das leis, aos privilégios e arrogância de poucos corresponde o desfavorecimento e a humilhação de muitos” (Carvalho, 2002, p.53).
A abolição da escravidão no Brasil não foi acompanhada de políticas públicas de inclusão do negro na sociedade de mercado, pelo contrário, o que ocorreu foi a total marginalização dessa população. Pois,
“No Brasil, aos libertos não foram dadas nem escolas, nem terras, nem empregos. Passada a euforia da libertação, muitos ex-escravos regressaram a suas fazendas, ou a fazendas vizinhas, para retomar o trabalho por baixo salário. Dezenas de anos após a abolição, os descendentes de escravos ainda viviam nas fazendas, uma vida pouco melhor do que a de seus antepassados escravos. Outros dirigiram-se às cidades, como o Rio de Janeiro, onde foram engrossar a grande parcela da população sem emprego fixo. Onde havia dinamismo econômico provocado pela expansão do café, como em São Paulo, os novos empregos, tanto na agricultura como na indústria, foram ocupados pelos milhares de imigrantes italianos que o governo atraía para o país. Lá, os ex-escravos foram expulsos ou relegados aos trabalhos mais brutos e mais mal pagos” (Ibidem, 2002, p. 52).
Diante de tal realidade têm surgido, ultimamente, diversas discussões nos meios acadêmicos, nos movimentos negros, nas instituições políticas e na sociedade civil como um todo, acerca da necessidade de adoção de mecanismos que possam reverter esse quadro de exclusão social da população negra brasileira. A proposta mais discutida e que tem gerado milhares de posicionamentos antagônicos sobre como implementá-la, é a que defende políticas públicas de inclusão dos negros nas várias instituições públicas e/ou privadas através da reserva de cotas para as populações que tem sido vítimas de processos históricos marginalizantes. Tal proposta tem sido amplamente discutida por alguns intelectuais, geralmente pertencente a determinadas instituições de ensino superior, simpáticos às teorias pós-modernas e que procuram compreender a realidade do capitalismo contemporâneo – se é que eles acreditam na existência do mesmo – como sendo uma multiplicidade fragmentada e difusa, na qual não podemos mais afirmar a existência de um único modo de produção, nem de uma única forma de relação social. Para tais intelectuais, as pessoas não se identificam mais como pertencendo a essa ou aquela classe, mas sim através de identidades particulares como negros, mulheres, gays, lésbicas, que não são definidas por uma base econômica.
Portanto, se não há um sistema único – o capitalismo -, o mesmo não pode ser combatido, nem sequer superado, e o máximo que se pode esperar são reformas estatais gradativas. É dentro desta perspectiva que se pode entender as políticas de cotas raciais.
Para que possamos compreender tais políticas, torna-se necessário defini-las: a política de cotas faz parte de um conjunto de ações afirmativas que pretendem através de ações públicas ou privadas proverem oportunidades ou outros benefícios a pessoas e/ou grupos, com base em sua pertença étnico-racial que foram, e ainda são, vítimas de condições desiguais de oportunidades construídas historicamente.
No caso do Brasil, essa política direcionou-se para a adoção de reserva de cotas para os negros nas universidades públicas. Porém, tal proposta tem sido amplamente contestada por diversos setores da sociedade sob diversas alegações, como por exemplo, a que defende que esse mecanismo contraria o princípio do mérito individual, pois determinados grupos serão privilegiados com a reserva de cotas, uma vez que indivíduos negros poderiam ter acesso a uma vaga na universidade com média inferior a de indivíduos brancos que correria o risco de ficar fora da universidade mesmo com média superior à do negro.
Além do mais, continua as argumentações contrárias, seria algo bastante complicado, adotar cotas para negros no país, uma vez que o Brasil é um país mestiço. Como definir quem é negro no Brasil? O que se percebe, em tais argumentos, é a presença, ainda marcante, do mito da democracia racial que pretende afirmar o eufemismo brasileiro de que somos todos morenos, e que, sendo assim, seria impossível definir quem é branco e quem é negro no Brasil. Em um país onde as pessoas têm preconceito de ter preconceito, a adoção de cotas, segundo esse argumento, “significariam o reconhecimento de raças e distinções de raças no Brasil e isso contraria o credo brasileiro de que somos um só povo, uma só nação” (Guimarães, 1999, p. 176)
Em relação à falácia do discurso meritocrático, vale, aqui, ressaltar que quando se trata de indivíduos competindo em condições extremamente desiguais, a noção de mérito torna-se uma ilusão, uma ideologia e que, portanto, tal discurso não se justifica. Outro argumento contrário à adoção de cotas para negros consiste em afirmar que, estando a grande maioria dessa população nos níveis sociais mais baixos da sociedade, com baixa escolaridade, não seria mais adequada a adoção de medidas de cunho universalistas, tais como, políticas de melhoria do ensino público, de universalização do acesso à assistência médica e daí por diante, ou seja, uma ampliação da cidadania para população mais pobre do país, e dessa forma, os negros não seriam os mais beneficiados?
A idéia geral que perpassa toda a discussão em torno da adoção de cotas raciais nas universidades brasileiras, baseia-se numa visão dualista da sociedade que seria formada pelos incluídos e pelos excluídos/marginalizados. Partindo desta premissa, é que vários teóricos têm discutido a necessidade da adoção de cotas raciais nas universidades públicas como uma forma de tentar reverter o quadro de exclusão social em que se encontra o segmento
racial negro, criando condições que facilitem – nesse caso o acesso à universidade – a inclusão dos negros no mercado de trabalho, no mercado de consumo, na participação da cidadania etc. Porém, torna-se necessário desvendar o véu que ofusca a realidade das relações sociais em sua totalidade, com seus constructos ideológicos, tais como os termos inclusão, exclusão e o conceito da marginalidade. Segundo Viana,
“A ideologia da exclusão social se fundamenta numa concepção dualista da sociedade, na qual existiriam os incluídos e os excluídos. Assim se obscurece o fato de que a realidade concreta é constituída como uma totalidade. Esta totalidade é a das classes sociais, que lhe fornece sua dinâmica através de suas lutas. Assim, na concepção dualista da sociedade, só existiriam os incluídos e os excluídos, tal como se fossem independentes e separados, faltando aqui também a idéia de relação, no interior de uma totalidade” (2003, p. 2).
A tese da marginalidade vem sido discutida desde a década de 70 na Europa e também na América. A preocupação com tal discussão na América Latina se justifica pelo alto índice de desemprego, pobreza e miséria no continente. Tais índices têm gerado preocupações tanto do ponto de vista do capital que procura amortecer os conflitos sociais, quanto do ponto de vista do proletariado que busca intensificar o processo das lutas de classes.
Analisar a sociedade tendo como ponto de partida a divisão entre os que se encontram incluídos e os que se encontram excluídos é um tanto quanto problemática, pois acaba por obscurecer o fato de que a realidade concreta da sociedade capitalista é formada por uma totalidade: a existência de classes sociais distintas, com interesses distintos que são movidos pelos conflitos entre as classes. Além disso, a ideologia da inclusão/exclusão acaba por homogeneizar tais segmentos e encará-los como fenômenos isolados e independentes um do outro, pois ao encarar a sociedade como estando dividida entre incluídos e excluídos, enxergando nos primeiros um ideal a ser atingido, a resolução dos problemas dos segundos se resumiria em encontrar mecanismos que garantam sua inclusão.
Dessa forma, todo problema social acaba por se resolver através da inclusão dos excluídos na participação social, ou seja, na integração à sociedade capitalista e, consequentemente na sua reprodução e no afastamento de qualquer ameaça que tais incluídos possam representar a sociedade dominante.
Os defensores das políticas de ações afirmativas – juntamente com o novo pluralismo, multiculturalismo e a política da identidade que formam a agenda pós-moderna - alegam que as cotas seriam responsáveis pela construção de uma verdadeira democracia no país, uma vez que incluiria, na participação social, uma parcela da população próxima a 50% da população nacional e que vive à margem do sistema. No entanto, tais defensores se negam a
discutir os reais mecanismos e suas relações de poder que permitem a reprodução do racismo no mundo contemporâneo e o benefício que ele gera para as classes dominantes. A ocultação de tais mecanismos dificulta a luta contra as reais condições geradoras das desigualdades raciais: o sistema capitalista. Tal sistema baseia-se na competição social em busca de privilégios, status, poder e ascensão social que acaba por jogar os trabalhadores uns contra os outros, dividindo-os e enfraquecendo-os. É, portanto, nesse sentido que o racismo fortalece o capitalismo, ou seja, dividindo a classe explorada para melhor dominá-la, já que
“os trabalhadores são obrigados, devido a existência do exército industrial de reserva, a competir pelo emprego. Isto cria conflitos internos na classe trabalhadora e a preferência dos empregadores pelo trabalhador branco provoca conflitos raciais que ofuscam a verdadeira causa do desemprego e dos baixos salários – o que é a dinâmica do modo de produção capitalista – e amortecem a luta de classes” (Viana, 1994, p. 12)
Não só os trabalhadores negros tendem a perder com o racismo, mas também os trabalhadores brancos. A idéia de que os trabalhadores brancos se beneficiam do racismo, não passa de uma ideologia das classes dominantes para ocultar o verdadeiro interesse que as mesmas possuem na manutenção do racismo, que tem como único objetivo manter as classes exploradas - formadas tanto por trabalhadores brancos quanto por trabalhadores negros - desunidas na luta contra a opressão. Segundo Callinicos, em seu texto capitalismo e racismo1,
“O racismo ajuda a manter o capitalismo funcionando, e assim perpetua a exploração dos trabalhadores, brancos e negros. Os trabalhadores brancos aceitam idéias racistas não porque lhe tragam benefícios, mas por causa do modo pelo qual a competição no mercado de trabalho entre grupos diferentes de trabalhadores é reforçada pelos esforços conscientes e inconscientes dos capitalistas, engendrando divisões raciais em larga escala. No máximo, o que trabalhadores brancos recebem é o consolo imaginário de serem membros da raça superior, o que contribui para que não percebam quais são os seus interesses reais” (CALLINICOS, 2005).
Emancipação negra: uma questão de raça ou de classe?
Em última instância, as ações afirmativas pretendem construir uma sociedade democrática que valorize as diversas identidades raciais e gere “igualdades de oportunidades” através de concessões realizadas pelo Estado - o que na nossa concepção é bastante contraditório, devido ao caráter de classe do mesmo que tem como função assegurar e
1 Capitalismo e Racismo foi traduzida de Race and Class, Bookmarks,
Londres, janeiro de 1993. Alex Callinicos é membro do SWP da Grã-Bretanha.
conservar a dominação e a exploração de classe -, porém, abstendo-se da negação do capitalismo e negando qualquer proposta de emancipação do homem que envolva o conceito marxista de classes, sob a alegação de que esse não consegue explicar a complexidade da fragmentação de identidades que caracteriza o mundo pós-moderno. Tal proposta, portanto,
“(...) se orienta para nos fazer abrir mão da idéia de socialismo e substituí-la pelo – ou incorporá-la ao – que se supõe seja uma categoria mais inclusiva, a democracia, um conceito que não „privilegia‟ classe, como o faz o socialismo tradicional, mas trata igualmente todas as opressões (...) Nenhum socialista duvida da importância da diversidade ou da multiplicidade de opressões que precisam ser abolidas. E democracia é – ou deveria ser – o que propõe o socialismo. Mas não fica claro que o novo pluralismo – ou o que passou a ser chamado de „política da identidade‟ – é capaz de nos levar muito além da afirmação de princípios gerais e de boas intenções” (Wood, 2003, p. 220).
As opressões, sejam elas de raça ou de gênero, se encontram dentro de um sistema social mais amplo no qual a categoria classe social ganha destaque - sem que necessariamente, outras “identidades” sejam menosprezadas – pois, procura compreender as desigualdades na perspectiva da existência de grupos opressores e grupos oprimidos dentro do sistema capitalista. Dessa forma o materialismo histórico dialético busca colocar as relações sociais de produção nos alicerces da sociedade, sem, no entanto, reduzir e simplificar a maneira como essas relações estruturam a opressão. Pelo contrário, pois os estudos histórico-materialistas, ao invés de estudarem determinadas formas específicas e fragmentadas de opressão – como racismo e sexismo - buscam compreender e analisar como essas opressões funcionam dentro do sistema que envolve o domínio de uma classe sobre outra.
“Porque a opressão não resulta do fato de alguns indivíduos apresentarem certas características como „da classe‟. Ao contrário, os marxistas consideravam que pertencer a uma classe social significa ser oprimido ou opressor. Classe significa nesse sentido categoria totalmente social, o que não acontece com o fato de ser mulher ou de ter um certo tipo de pigmentação da pele” (Eagleton, 1998, p. 62).
O marxismo não nega que os novos movimentos sociais e seus objetivos de emancipação de raça, etnia e gênero possuem forças promissoras. Porém, seus objetivos deveriam ser incorporados ao projeto mais abrangente e totalizador do socialismo com o intuito de fortalecê-lo no combate ao capitalismo – o verdadeiro responsável pela criação e manutenção do racismo - e não no sentido de submeter-se a ele, fechando qualquer possibilidade de rompimento e superação do mesmo.
A adoção de cotas para a população negra não é suficiente para que a mesma atinja a desejada “igualdade de oportunidades”, pois tal medida consiste em uma política
pública que visa reformar o sistema capitalista uma vez que apenas amplia a inclusão de trabalhadores negros no mercado, sem, no entanto, contestar a forma pelas quais tais trabalhadores, assim como os trabalhadores brancos, são explorados pelo capitalismo.
Acreditamos que a emancipação da população negra possa realmente ocorrer quando a mesma aliar seus interesses específicos – o fim da desigualdade racial gerada pelas práticas racistas e discriminatórias – a outros interesses mais totalizantes como a luta contra a opressão de uma classe sobre outra e canalizá-los contra seu gerador comum, o capitalismo. Esse deveria ser o foco da luta contra todas as condições desumanas a que estão submetidos milhares de trabalhadores – tanto negros quanto brancos - “proletarizados” e não “proletarizados” em todo o mundo.
O racismo, conforme afirmou Callinicos,
“só pode ser abolido, portanto, através de uma revolução social conquistada por uma classe trabalhadora unida, em que negros e brancos lutem juntos contra o seu explorador comum (...) a meta da luta anti-racista deve ser a libertação dos oprimidos como parte de uma batalha mais ampla contra o próprio capitalismo. O racismo surgiu e cresceu com o capitalismo e ajuda a sustentá-lo. A sua abolição depende, portanto, de uma revolução socialista que rompa as estruturas materiais às quais estão vinculadas” (CALLINICOS, 2005).
O preconceito racial contra o negro no Brasil surgiu concomitantemente com o desenvolvimento do capitalismo mercantil, e suas mudanças posteriores, também, estão envolvidas com a necessidade de reprodução do capitalismo. Tal sistema econômico veio se articulando no intuito de tirar proveito do racismo através da divisão que o mesmo gerava, e ainda gera, na classe trabalhadora, levando ao enfraquecimento da mesma, e consequentemente, facilitando o aumento da extração de mais-valor através dos níveis salariais diferenciados para brancos e negros e mediante a cooptação de parcela dos trabalhadores brancos, que como já foi dito anteriormente, recebiam o consolo de pertencerem à raça superior. Isso nos leva a perceber a estratégia do capital de desviar o foco da realidade concreta – a exploração capitalista – criando para isso um inimigo imaginário – os negros.
O que é válido ressaltar aqui, é que o capitalismo tem demonstrado que consegue facilmente conviver com as lutas fragmentadas e isoladas propostas pelas teorias pós-modernas e pelos “novos movimentos sociais”, uma vez que esses não apontam para uma luta pela superação do capitalismo. O que se percebe é que tais movimentos e seus intelectuais acabaram por se render ao capitalismo, alegando que o mesmo ou não existe ou não pode ser superado. E que o máximo que se pode obter são reformas gradativas, que nesse caso significa a aprovação por parte do Estado de
reserva de cotas para os negros nas universidades públicas, como forma de pagar a “dívida histórica” que a sociedade tem com a população negra.
É claro que por trás de todo esse discurso, existe uma razão concreta e um projeto político governamental, que consiste em diminuir gastos sociais criando cotas ao invés de investir numa educação pública de qualidade, pois é menos dispendioso reservar cotas, e assim substituir parcela da população branca por parcela da população negra – detentora do “capital cultural”2 e não a parcela mais pobre – do que ampliar os números de vagas nas universidades públicas.
Portanto, a política de cotas não passa de um micro-reformismo de caráter pós-moderno que não possui nenhuma articulação com um projeto de transformação social, pelo contrário, pois tal medida acaba reproduzindo o capitalismo, uma vez que força o processo de proletarização da mão-de-obra dos setores que será “beneficiado” com tal política. Além do mais, tais medidas acabam promovendo a cooptação dos indivíduos beneficiados com as cotas, e gera uma imagem benéfica do Estado que passa a se apresentar como instituição neutra, acima dos interesses das classes sociais, que representa e protege os setores populacionais mais pobres e desprotegidos. Dessa forma se intensifica o processo de fetichismo do Estado e oculta seu caráter de representante da burguesia, do capital e de todas as suas medidas de exploração dos trabalhadores, tais como o esmagamento das conquistas trabalhistas etc.

Bibliografia:
CALLINICOS, Alex. Capitalismo e racismo. In: www.mp.pe.gov.br/arquivo/gt_racismo/artigos_doutrina/artigos.pdf Acessado em: 16/08/2005.
CARVALHO, José M. de. Cidadania no Brasil – o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
2 “Bagagem” cultural e intelectual adquirida em relações sociais favoráveis pela condição material e financeira que determinados indivíduos recebem e transmitem na família, na escola, no bairro, no acesso ao lazer, tais como teatro e cinema, e em vários outros espaços de convívio que tais condições materiais lhes propiciam.
FERREIRA, R. Franklin. Afro-descendente: identidade em construção. São Paulo: EDUC; Rio de Janeiro: Pallas, 2000.
GUIMARÃES, Sérgio. Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 1999.
VIANA, Nildo. Capitalismo e Racismo. Revista ruptura. Ano 2, No 03, Dez. 1994.
______. Exclusão social ou lupemproletarização? Revista letralivre. Rio de Janeiro, Ano 7, Num. 37, 2003a.
WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo – a renovação do materialismo histórico. São Paulo: BoiTempo, 2003.

Nenhum comentário:

Postar um comentário