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domingo, 9 de agosto de 2015

A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA

Lisandro Braga - Doutorando em Sociologia/UFG
e Professor de Teoria Política/UFMS


Resumo: O presente artigo analisa a concepção materialista da história a partir dos primeiros escritos filosóficos de Marx e Engels presentes na obra A Ideologia Alemã. Nessa obra já é possível encontrar os principais elementos analíticos de sua concepção materialista, porém esses se encontram em um estágio embrionário e só foram desenvolvidos de forma aprofundada após a publicação do Prefácio à Crítica da Economia, onde Marx apresentará aquilo que ele denominou como sendo o “fio condutor” dos seus estudos.
Palavras-chaves: Ser Social e Consciência, Materialismo Histórico-Dialético, Modo de Produção e Luta de Classes.

A Consciência é o Ser Consciente

Inicialmente apresentaremos, de forma introdutória, uma discussão acerca dos conceitos Ser Social e Consciência na obra A Ideologia Alemã de Karl Marx e Friedrich Engels, e para isso buscaremos compreender a trajetória intelectual desses pensadores, os elementos formadores das suas idéias centrais e já contidas nessa obra de forma embrionária.
Karl Marx nasceu no dia 05 de maio de 1818 na Alemanha, filho de uma família judia de classe média, iniciou seus estudos em direito na universidade de Berlim, mas logo depois se transfere para a filosofia onde será influenciado pelas idéias de Hegel e, posteriormente, dos “hegelianos de esquerda” (Bruno Bauer, Edgar Bauer, Arnold Ruge, Ludwig Feuerbach, Moses Hess etc). Conhecedor amplo da filosofia alemã, também estudou a filosofia antiga chegando a desenvolver como tese doutoral A filosofia da natureza em Demócrito e Epícuro (1838). Preparou-se para assumir uma cátedra na universidade de Bonn, mas tão logo assumiu foi expulso devido à produção

de alguns panfletos de caráter anticristão. A partir daí optou por trabalhar como jornalista, uma vez que possuiria maior autonomia intelectual para produzir.
Filho de uma rica família de fabricante de tecidos, Engels (1820-1895), ao contrário de Marx, não possuía uma formação acadêmica, cursou apenas um ano na universidade de Berlim. Sua formação era essencialmente econômica e originada na experiência vivida. Quando jovem foi enviado pela família para Manchester, grande pólo capitalista industrial, onde se familiarizou com o funcionamento do capitalismo ao relacionar-se com os dirigentes operários britânicos e visualizar a exploração a que estavam submetidos o proletariado britânico na qual “denunciou pela primeira vez em „Cartas de Wuppertal‟, escrita aos dezenove anos” (Fontana, 2004, p. 199).
Sem dúvida a mais forte influência sobre o pensamento filosófico de Marx está em Hegel. Durante um bom tempo foi um “hegeliano de esquerda” e junto com tais hegelianos aprofundaram o estudo da dialética de Hegel, mas também promoveram sua crítica. Esse foi o caso de Ludwig Feuerbach que efetivou a crítica à dialética idealista de Hegel através de uma ótica materialista. Influenciado por Feuerbach, Marx aprofunda seus estudos a partir de uma perspectiva materialista e avança na crítica à Hegel e também à Feuerbach. Isso não quer dizer que ele não reconhecia a importância desses dois filósofos na sua formação teórica, apenas demonstrava os limites de ambos e apresentava uma perspectiva diferenciada.
Para Hegel, a história é a história da razão, ou seja, das idéias, e a primeira tem o seu desenvolvimento garantido e determinado pela segunda. Já para Feuerbach a história é o desenvolvimento do ser humano ontológico, do ser genérico. Porém, Feuerbach não aprofunda sua análise sobre esse ser, possibilitando brechas para interpretação de que tal ser é abstrato, ou seja, a-histórico e a-transitório. Nesse sentido, Marx avança ao reconhecer que Feuerbach tem razão, mas se esquece de apontar que tal ser é fruto de um processo histórico, formado nas relações sociais e pelas relações sociais, historicamente determinadas. Percebe-se, então que Hegel conseguia ver a historicidade do mundo através da sua dialética do desenvolvimento da razão na história, e Feuerbach conseguia perceber a materialidade da história na essência humana, mas Hegel perdia a materialidade de vista, e Feuerbach perdia a historicidade. A tarefa que propôs Marx foi reunir materialidade e historicidade, fundando o que posteriormente foi chamado de materialismo histórico. A história não é o desenvolvimento da razão, e sim das relações sociais concretas (VIANA, 2006, p. 47-48).
Na sua obra A ideologia Alemã, Marx realizará uma espécie de “acerto de contas” com os filósofos neo-hegelianos, principalmente Feuerbach, Bauer, Strauss e Stirner. A principal crítica endereçada a tais filósofos consistia em denominá-los de “pensadores anacrônicos”, pois os mesmos buscavam desenvolver idéias importadas de outros países, mas que não possuíam base concreta na Alemanha. Contentavam em criticar o mundo a partir do campo das idéias sem, necessariamente, se preocuparem em confrontá-las com o mundo material que os circundava. Por isso Marx e Engels irão ironizá-los afirmando que para os Jovens-Hegelianos as representações, idéias, conceitos, em geral os produtos da consciência, por eles autonomizada, valem como os grilhões autênticos dos homens, do mesmo modo que para os Velhos-Hegelianos significam os verdadeiros elos da sociedade humana, percebe-se que os jovens-Hegelianos também só tenham de lutar contra essas ilusões da consciência (...) Os ideólogos Jovens-Hegelianos são, apesar das frases com que pretendem abalar o mundo, os maiores conservadores. Os mais novos dentre eles encontraram a expressão correta para a sua atividade quando afirma que lutam apenas contra frases. Esquecem, apenas, que a estas mesmas frases nada opõem senão frases, e que de modo nenhum combatem o mundo real existente se combaterem apenas as frases deste mundo (1984, p. 13).
Uma vez que a relação intrínseca entre ser e consciência social foi invertida pelos jovens hegelianos, a proposta materialista de Marx e Engels consistia em promover uma reinversão dessa relação, ao questionar a autonomia da consciência em relação ao ser e defender a superioridade do ser sobre a consciência. Ao contrário desses que partiam de pressupostos definidos única e exclusivamente por suas mentes e, dessa forma, consistiam em pressupostos dogmáticos e arbitrários, Marx e Engels partiam de pressupostos reais visto que partiam dos indivíduos reais, em condições materiais e históricas concretas, promovendo ações, também, reais e concretas e que só podiam ser verificadas por via empírica, ou seja, na prática. Constata-se então que Marx e Engels propunham uma concepção materialista da história humana. Aprofundaremos mais adiante a discussão sobre tal concepção.
Os dois autores afirmavam (com certo grau de ironia que era próprio deles, principalmente de Marx) que o primeiro pressuposto da existência humana é a existência de seres humanos vivos. O segundo pressuposto é a necessidade de garantir a produção e reprodução das condições materiais de sua existência. O modo de produção é o modo como os homens produzem e reproduzem os meios necessários para a reprodução da vida e faz isso desenvolvendo sua capacidade de trabalhar de forma
cooperada, logo o trabalho e a cooperação se tornam necessidades históricas. De acordo com Fontana, o estudo da história mostra que os homens produzem os meios de subsistência de acordo com certos modos de produção que são na realidade modos de vida – uma forma determinada de manifestar a vida -, o que explica que o que os indivíduos são depende das condições materiais de produção e das relações que se estabelecem entre eles no processo (2004, 202).
Em seguida à análise da produção e reprodução das condições materiais da existência e sobrevivência do homem, os autores de A Ideologia Alemã desenvolveram a tese de que o trabalho e a cooperação nas sociedades de classes ocorrem segundo a divisão social do trabalho, ou seja, a divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, divisão entre campo e cidade, indústria e comércio e a própria divisão de classes. Para eles as diferentes fases de desenvolvimento da divisão do trabalho significam tantas outras formas diferentes de propriedade; quer dizer, cada nova fase da divisão do trabalho determina também as relações dos indivíduos uns com os outros no que diz respeito ao material, ao instrumento e ao produto do trabalho (2007, p. 89).
Isso significa que a divisão social do trabalho produz as diferentes classes sociais e as diferentes e desiguais formas de apropriação do excedente do trabalho. A apropriação privada dos frutos do trabalho coletivo é uma das principais características dos modos de produção das sociedades divididas em classes sociais. Dessa forma, percebe-se que tais sociedades são marcadas pela contradição entre o interesse individual e o interesse coletivo. É exatamente por conta dessas contradições que o Estado surge e (a)parece ilusoriamente como sendo representante dos interesses coletivos, estando acima das classes sociais e dos seus interesses específicos. Não é à toa que “toda classe social que aspira se tornar uma nova classe dominante deve apresentar seus interesses particulares como sendo interesses gerais da sociedade. O conflito entre classes torna necessária a intervenção do Estado” (VIANA, 2007, p. 26).
Partindo da análise de que o homem se faz homem a partir do momento em que se vê coagido pela natureza a produzir suas condições materiais de existência e sobrevivência é que Marx concluirá então que a consciência não pode ser outra coisa se não o ser consciente, ou seja, o ser humano é o seu processo histórico de engendramento. O ser humano é o produtor de suas idéias, mas o ser humano concreto e histórico que tal como se acham condicionados pelo “modo de produção” 1. Portanto, segundo Marx e Engels, a produção de idéias, de representações, da consciência está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens ainda aparecem, aqui, como emanação direta de seu comportamento material [...] Os homens são os produtores de suas representações, de suas idéias e assim por diante, mas os homens reais ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento das forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência não pode jamais ser outra coisa que não o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real. Se em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo, como numa câmera escura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos na retina resulta de seu processo de vida imediatamente físico (2007, 93-94).
Somente com a divisão social do trabalho (trabalho material de um lado e trabalho intelectual do outro) é que a consciência pode ser apresentada como sendo autônoma e tal apresentação surge com a ideologia, ou melhor, com os ideólogos. Sobre o conceito de ideologia Marx afirmará que se trata de uma falsa representação da realidade, uma falsa consciência que está intimamente relacionada com os interesses das classes dominantes, visto que a existência de tal classe subentende, também, a existência de classes dominadas. Portanto, é do interesse das classes dominantes manterem as relações sociais que lhes possibilitam dominar e, conseqüentemente, é do interesse das mesmas falsear tal dominação uma vez que a revelação do processo de dominação e de suas bases de sustentação (a propriedade privada, o processo de extração de mais-valor etc.) promoveria uma maior compreensão do mesmo e a reação das classes exploradas contra o processo de opressão. É nesse sentido que Marx e Engels afirmaram, as idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias das classes dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, a sua força espiritual, dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual (Ibid, 47).
1 De acordo com Nildo Viana esse conceito deve ser entendido aqui, de forma simplicada, como o nível de “desenvolvimento das forças produtivas e formas de intercâmbio” conforme Marx e Engels descrevem na obra A ideologia Alemã, visto que o conceito modo de produção ainda não estava elaborado de forma complexa como estará em obras posteriores.
Importante afirmar é que a consciência para Marx e Engels não se resume ao papel passivo contido no ato de conhecer e expressar o real, mas também possui um caráter ativo, ou seja, a consciência como projeção apresenta uma visão do real e tal visão, dependendo da perspectiva de classe, busca afirmar ou negar a realidade existente. Portanto, “a consciência também diz o que deve ser, ou seja, apresenta-se como uma ética, uma norma de conduta e, ao mesmo tempo, uma manifestação de desejos e significados produzidos no contexto da divisão social do trabalho, o que produz antagonismo e projetos diferentes no interior de uma mesma sociedade” (VIANA, 2007, p. 29).
O ser consciente deve buscar mecanismos intelectuais capazes de apreender, analisar e compreender a realidade social. Porém, devido aos interesses de classe da burguesia sua consciência possui limites intransponíveis, ela não avança para além das fronteiras do capital visto que isso representaria sua abolição enquanto classe. Já o proletariado se vê coagido, devido à exploração na qual ele está submetido na sociedade capitalista, a compreender corretamente a realidade social desenvolvendo a partir da luta sua consciência de classe de forma dialética: afirmando-se como proletariado e ao mesmo tempo negando-se como proletariado.
Nesse sentido é que Marx e Engels, buscando expressar teoricamente os interesses do proletariado, afirmarão que a consciência nada mais é que o ser consciente e tal ser se constitui na práxis, uma vez que essa expressa a liberdade humana. Dessa forma, o ser humano afirma sua liberdade produzindo sua vida de forma autônoma e ao realizar sua potencialidade especificamente humana, o ser humano abole a oposição entre necessidade e liberdade e instaura sua unidade. Portanto, a liberdade é uma necessidade e a necessidade de liberdade tornando-se consciente é um sinal de liberdade (Ibid, 2007a, p. 32).

O Modo de Produção Capitalista 

A principal distinção que podemos observar entre a concepção materialista da sociedade (capitalista) e as demais concepções ideológicas e metafísicas é que a primeira compreende a sociedade como uma totalidade formada por diversas partes na qual uma delas exerce determinação fundamental sobre o todo.
De acordo com o materialismo histórico dialético, a totalidade é o que abarca o todo e esse é a sociedade, porém a sociedade é formada por diversas partes que, necessariamente, estão ligadas umas às outras exercendo múltiplas determinações sobre elas, mas uma dessas exerce uma determinação fundamental, sobre as demais, ou seja, sobre o todo (a sociedade) 2. Em todas as sociedades o modo de produção é a determinação fundamental visto que os seres humanos são, para continuarem a existir, coagidos a produzirem e reproduzirem suas condições materiais de existência.
Percebe-se, então, que o modo de produção condiciona as demais esferas da vida social uma vez que exerce uma determinação fundamental. No entanto, resta explicitar o que é o modo de produção e qual é a especificidade do modo de produção capitalista para, a partir daí, compreendermos a concepção materialista de Karl Marx.
Não há nos escritos de Marx nenhuma referência pormenorizada sobre o modo de produção nem tão pouco ao que ele denominava de superestrutura. O segundo termo aparece pouquíssimas vezes em suas obras e isso acabou por facilitar diversas interpretações e deformações do materialismo histórico dialético. Vale ressaltar que, o termo superestrutura não é um conceito (como modo de produção) e sim uma expressão metafórica, como observou Althusser. Segundo esse autor, este termo tem apenas a função de ilustrar o pensamento de Marx a respeito da relação entre modo de produção e formas jurídicas, políticas, ideológicas, ou seja, as formas de regularização das relações sociais, através da metáfora do edifício social, que possui “base” e uma “superestrutura”, sendo que esta só se sustenta graças àquela (Viana, 2007, p. 38).
Para que esse termo e sua utilização, que preferimos descartar e adotar o termo “formas de regularização das relações sociais” 3, não continue gerando mal-entendidos procuraremos esclarecê-lo à luz da produção teórica de Marx e de outros marxistas que procuraram facilitar essa compreensão.
Após a produção da obra A Ideologia Alemã (1847), Marx desenvolveu diversos escritos que formariam a base do método materialismo histórico-dialético. Um desses textos consiste no Prefácio à Crítica da Economia Política no qual apresenta uma espécie de resumo do materialismo histórico e que, segundo Marx, serviu de “fio condutor” para suas pesquisas. Karl Korsch, em sua obra Marxismo e Filosofia (2008), lembra que o próprio Marx costumava enfatizar que não se deve procurar nessas frases, tal como se apresentam, mais que “um fio condutor” para o estudo dos dados empíricos (isto é, históricos) da vida social do homem; posteriormente, Marx 2 O materialismo histórico dialético recebe várias abordagens, sobre perspectivas diferentes. Sobre o conceito de totalidade pode-se consultar as contribuições de Karl Marx, Karl Korsch, Lukács, Kosik etc. Sobre o conceito determinação fundamental, o mesmo foi desenvolvido por Hegel e em Marx aparece como essência.
3 Sobre as “formas de regularização das relações sociais” ver: VIANA, Nildo. Para uma teoria das formas de regularização das relações sociais. In: VIANA, Nildo. A consciência da história – Ensaios sobre o materialismo histórico-dialético. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.
manifestou-se mais de uma vez contra os que nelas procuraram ver algo mais que aquele “fio condutor” (2008, p. 135).
Vejamos, então, o que o próprio Marx dizia no prefácio:
A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social da existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social. A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração material – que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa – das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência desse conflito, levando-o às suas últimas conseqüências. Assim como não se julga um indivíduo pela idéia que ele tem de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção (...) (1977, p. 23-24).
Essas palavras mostram de forma resumida, mas com toda clareza e precisão, os principais elementos formadores do quadro geral daquilo que Marx, juntamente com Engels, convencionou denominar de “concepção materialista da história e da sociedade”. No entanto, para um leitor que não conhece a profundidade e complexidade da obra de Karl Marx não é fácil e, talvez, nem possível, compreender a importância teórico-metodológica dessas palavras, pois “não há nelas nenhuma advertência para evitar os mal-entendidos que, por seu conteúdo e sua forma, elas podem em alguma medida favorecer. Tais cuidados seriam supérfluos, dada a finalidade imediata dessas breves indicações” (Korsch, 2008, p. 134). Concordamos com Korsch quando diz que Marx só possuía uma forma de convencer seus leitores da eficácia do seu método, ou seja, aplicando-o à determinado
domínio da sua pesquisa: a “economia política”. Conforme disse Friedrich Engels, em contexto diferente, ao citar um provérbio inglês: “a prova do pudim está em comê-lo, ou seja, só a experiência comprova” (Apud Korsch, 2008, p. 146).
Apresentado esse resumo geral do materialismo histórico, tentaremos esclarecer alguns dos principais conceitos contidos nele, porém, devido aos limites desse artigo, faremos isso de forma bastante sintética.
Os modos de produção, tanto pré-capitalistas quanto capitalistas, são constituídos pelas forças produtivas (força de trabalho, meios de produção e meios de distribuição) e pelas relações de produção que consistem nas relações estabelecidas entre os indivíduos no trabalho de produção e distribuição dos bens produzidos. No entanto, se tratam de forças produtivas e relações de produção determinadas em um contexto social determinado.
Para os interesses desse texto, resumiremos nossa análise ao contexto das forças produtivas e das relações de produção, tão somente, na sociedade capitalista produtora de mercadorias. Porém, tal escolha não deve levar a uma interpretação limitada que acredita que o materialismo histórico dialético e a teoria marxista só se aplicam à compreensão da sociedade capitalista, pois em diversos aspectos tal método e tal teoria podem ser utilizados na compreensão, também, de relações sociais existentes em sociedades pré-capitalistas.
As relações de produção na sociedade capitalista são marcadas por duas características centrais que consistem no fato do proletariado trabalhar sobre o controle da burguesia (trabalho heterogerido) que comprou sua força de trabalho e o fato do produto do trabalho ser apropriado pela burguesia, via extração de mais-valor. Percebe-se então que o trabalho é processo de valorização (MARX, 1988).
No processo de produção de mercadorias o capitalista utiliza força de trabalho e meios de produção, porém somente a força de trabalho pode acrescentar valor à mercadoria, pois os meios de produção apenas repassam o seu valor às mercadorias. O valor adicionado à mercadoria pela força de trabalho é superior ao valor gasto pelo capitalista na compra de tal força e é desta forma que se apropria do mais-valor gerado pelo proletariado.
O fundamento da luta de classes no capitalismo, conforme já dizia Marx, está na disputa pelo controle do tempo de trabalho, pois, se, de um lado a burguesia visa ampliar a extração de mais-valor sobre o tempo de trabalho do proletariado, este visa diminuí-lo e, devido aos interesses antagônicos dessas classes, o processo de
valorização acaba por ser marcado pelo conflito. Por conta do caráter alienado do trabalho, o proletariado desenvolve várias formas de resistência na produção que vão desde as mais “passivas” (absenteísmo, operação tartaruga, tempo morto etc.) às mais radicais (greve geral, ocupação da fábrica, autogestão da produção etc.). Nesse sentido é que se pode compreender a necessidade que a burguesia tem de controlar, de forma cada vez mais minuciosa, o tempo de trabalho no processo de produção.
A acumulação capitalista é realizada através de uma relação entre classes (burguesia e proletariado) e essa relação é fundamentalmente marcada pelo conflito entre as mesmas. A burguesia devido aos seus interesses de classe deve, necessariamente, desenvolver formas cada vez mais eficazes para a extração de mais-valor, ou seja, para a exploração do trabalho. Por outro lado, o proletariado se vê coagido a lutar contra o capital por ser quem ele é nessa sociedade4. Nesse processo de luta de classes o proletariado acaba por criar dificuldades para a acumulação de capital e em determinados momentos sua luta radicaliza apontando para a superação da sociedade capitalista.
Por mais que a ideologia burguesa e de suas classes auxiliares tente desacreditar essa possibilidade histórica, não há como negar essa tendência da luta de classes. Tanto assim que a burguesia e o estado, principal forma de regularização das relações sociais e que possui um caráter conservador, estão sempre procurando meios de atenuar os efeitos das crises que ameaçam a continuidade do processo de produção do capital em escala ampliada.
Dessa forma, podemos perceber que a luta de classes se apresenta como fruto da contradição entre classes antagônicas (produtores e apropriadores), revela a contradição/determinação fundamental mencionada por Marx no Prefácio à Crítica da Economia Política e demonstra como se manifesta a dinâmica histórica da sociedade de classes.

Bibliografia consultada:

FONTANA, Josep. Marx e o materialismo histórico dialético. IN: FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
4 O ser do proletariado, como já dizia Marx, é essencialmente aquele que quanto mais eficaz torna seu trabalho, quanto mais riqueza é capaz de produzir mais miserável se encontra e, por conta disso, se vê obrigado a desenvolver formas de lutas que se afirmem na busca pela destruição do capitalismo (MARX, 2004).
KORSCH, Karl. Marxismo e filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1986.
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1977.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia Alemã. São Paulo: Centauro, 1984.
____. A ideologia alemã – Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes poetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo, 2007.
MARX, Karl. O Capital, vol. 1, livro 1. São Paulo: Nova cultural, 1988.
VIANA, Nildo. Introdução à sociologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
____. A consciência da História – ensaios sobre o materialismo histórico-dialético. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007a.
____. Escritos metodológicos de Marx. Goiânia: Alternativa, 2007b.

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